Diversos estudos têm sido realizados em todo o mundo sobre o padrão dos sonhos durante esses infindáveis meses da pandemia de COVID-19. Tais pesquisas mostraram mudanças profundas tanto no padrão de sono quanto no conteúdo das experiências oníricas, diretamente relacionadas a aspectos emocionais presentes nas pessoas investigadas. Os adultos estão sonhando com mais frequência, sendo o conteúdo desses sonhos frequentemente marcado por angústia, surpresa ou situações desconfortáveis. Estudos realizados com a população italiana, uma das primeiras e mais intensamente atingidas pela COVID-19, mostraram que a alta frequência de pesadelos parece estar associada a um sono insatisfatório, aquele sono em que as pessoas acordam com frequência ou não atingem um nível profundo o suficiente para descansar. E, principalmente, ao aumento de psicopatologias como depressão, ansiedade e altos níveis de estresse. Um dado interessante é que as pessoas parecem se recordar com mais frequência dos sonhos agora do que antes da pandemia. E não parece surpresa o fato de que indivíduos com maiores níveis de estresse estão tendo mais pesadelos e sonhos assustadores, quando comparados aos menos estressadas em função da pandemia.

Para quem tem consciência da gravidade da situação, nada disso parece novidade, afinal grande parte de nós também está vivenciando algo parecido. Porém, é de se esperar que os grupos sociais mais atingidos pelas consequências da pandemia tenham manifestações ainda mais intensas. E, de fato, é o que está acontecendo. Estudos mostram, inclusive, um efeito de gênero sobre o conteúdo das experiências oníricas durante a pandemia: mulheres apresentam menos emoções positivas em seus sonhos e mais experiências negativas relacionadas a ansiedade, tristeza, raiva, saúde e morte. E estamos falando de adultos, pessoas que, pelo menos em tese, têm condições de verbalizar, elaborar e melhor compreender o contexto.

Mas e as crianças? Como está seu padrão de sono? Como estão seus sonhos?

Realizar estudos sistemáticos sobre o padrão de sono e de sonho das crianças, num momento como esse, é extremamente delicado e envolve questões éticas. Por isso, não existem muitos estudos a respeito. Mas a observação cotidiana, o olhar atento e amoroso sobre o assunto dentro dos lares não apenas pode acontecer como é recomendável.

Desde o início da pandemia, minha filha, por exemplo tem relatado uma frequência muito maior de sonhos, bem como tem despertado muito mais. Como cientista com formação em neurociência, também entendo os sonhos como atividade cerebral inconsciente, quando, enquanto dormimos, conseguimos elaborar emoções como medos, angústias, alegrias, expectativas. Tenho aproveitado os momentos das manhãs, quando ela está comigo, para conversarmos sobre isso. Sempre pergunto se ela sonhou e ela me conta, de maneira leve e tranquila, se sonhou e com o quê sonhou. Meu objetivo com isso não é analisar seus sonhos, mesmo porque não tenho nenhuma pretensão de tentar saber o que vai no interior da criança apenas por seus sonhos – e é por isso que me mantenho sempre disponível para que ela possa conversar sobre o que lhe aflige. O objetivo é permitir que ela fale sobre, que reflita, que verbalize, que elabore. E quando vemos, estamos conversando sobre o cotidiano, nossas angústias, o que esperamos daqui pra frente. É um momento de afeto, de acolhimento, para que ela se sinta segura e acolhida, o que é especialmente importante neste momento. Ela tem sonhado muito com amigas, com amigos, com passeios. Vez ou outra, um ou outro sonho mais aflitivo, mais angustiante, e aí sei que naquele dia darei mais colo, mais atenção, mais presença.

O universo simbólico das crianças é muito rico e, uma vez que o substrato neurobiológico da cognição ainda se encontra em desenvolvimento, elas acabam comunicando melhor o simbólico do que o concreto. Por isso os desenhos das crianças, por exemplo, são indicadores tão especiais de seus estados emocionais e da interpretação que fazem de diferentes situações.

Um dos relatos mais frequentes neste momento a respeito das crianças diz respeito a profundas alterações em seus padrões de sono. Mães, pais e cuidadores acreditam se tratar apenas de mudanças de rotina trazidas pela maior permanência em casa e pela alteração dos horários de atividades habituais, como acordar, almoçar, estudar, jantar e dormir. Porém, não se trata apenas disso. Não podemos simplesmente acreditar que as crianças não estão absorvendo o impacto emocional do que está nos acontecendo. Elas estão ao nosso redor, ouvem as notícias, leem as matérias, sabem que há mortes, perderam pessoas queridas e sabem que não há previsão para que isso acabe. Por mais que não verbalizem suas angústias, levam com elas. E, com frequência, é no momento do sono que isso acaba aparecendo, tanto na forma de sonhos mais agitados quanto num padrão de sono interrompido, mesmo para crianças que dormiam de maneira mais profunda e constante.

E o que fazer a respeito?

Primeiro, se sua criança já tem idade para compreender, converse com ela sobre o assunto. Diga que isso também está acontecendo com muitas outras pessoas e que você está ali para acolhê-la a qualquer hora da noite, a fim de que ela se sinta segura. Estimule que ela te conte como dormiu, se sonhou, com o quê sonhou, mostre-se disponível para ouvi-la. Muitas vezes, apenas o ato de ouvir atenta e ativamente já ajuda a diminuir os níveis de angústia das crianças, faz com que se sintam acolhidas e protegidas, ajuda a diminuir a ansiedade.

E é nesse momento que a higiene do sono se mostra ainda mais importante:

  • evite os estímulos de telas e demais eletrônicos nos momentos que antecedem o sono
  • diminua a intensidade de luzes
  • aproxime o horário do banho do horário de dormir, para que o relaxamento produzido pelo banho se estenda para o sono
  • reduza os estímulos do quarto
  • evite oferecer ou permitir o consumo de doces e outros alimentos ricos em açúcar à noite, para evitar picos de energia
  • se você conta histórias antes de dormir, conte algumas que levem ao descanso, que fale sobre personagens que estão fazendo coisas calmas e tranquilas.

Práticas que ajudam as crianças a se acalmarem e a diminuírem seu ritmo são sempre bem vindas próximo ao horário de ir para a cama. E contribuem muito para que tenham um sono mais tranquilo e sonhos menos intensos, especialmente neste momento de vida alterada.

Não podemos impedi-las de viverem o que toda a humanidade está vivendo. Mas podemos ajudá-las a enfrentarem de maneira mais emocionalmente saudável. Inclusive quando estão dormindo.

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.