Quantas vezes durante toda a sua vida, você, que é mulher, foi silenciada? E quais os dispositivos que usaram para isso? Ordem? “Cale a boca e não fale sobre isso”. Ameaça? “Fale sobre isso e tiro seus filhos de você”. Maledicência? “Você é uma louca cruel e mentirosa”. Descrédito? “Isso é mentira, ela inventa coisas”. Uma liminar judicial? “Você está proibida de falar sobre isso, sob pena de multa”.

O silenciamento de mulheres sempre foi ferramenta de controle. E permanece como dispositivo cotidiano: nas relações familiares, em outras relações sociais, na mídia e, também, de maneira bastante grave, pelo sistema de Justiça e com o aval do Estado.

A violência contra as mulheres não é somente a física e disso já sabemos. E o silenciamento é uma de suas principais e mais frequentes manifestações. Representa uma forma de violência psicológica devastadora, reconhecida inclusive pela Lei Maria da Penha. E os danos causados pelo silenciamento – psíquicos e sociais – vão além dos que dizem respeito à mulher que foi vítima: constitui-se como uma violência de gênero, uma vez que age como instrumento de ameaça a todas as outras mulheres. É um alerta coletivo: “Calem a boca, todas vocês”. Uma violência estrutural, portanto, que o exercício de poder promovido pela desigualdade de gênero se compraz em manter. Quando o Judiciário violenta mulheres por meio do silenciamento, ele automaticamente avaliza outras práticas de violência de gênero, em todas as dimensões: dentro dos lares, nos espaços públicos e privados, no mundo do trabalho e, assim, promove a violência que deveria combater.

As histórias de violência que nós, mulheres, com muita dor vivemos não são histórias individuais, não nos pertencem apenas, nem se restringem ao âmbito privado. São histórias coletivas. E contar essas histórias é parte da luta por nosso reconhecimento como sujeitos de direitos, autônomas e livres. Quando nos impedem de contá-las, impedem-nos de sermos, de acessarmos o direito que todas temos de sermos vistas e da violência que vivemos ser combatida. Permitir que as mulheres falem sobre o que viveram é garantir que todas possamos falar e, assim, que possamos combater as estruturas desiguais de poder que mantêm a violência contra nós.

O que está acontecendo com a apresentadora Titi Muller é apenas um dos casos cotidianos de silenciamento como ferramenta de manutenção da violência contra as mulheres, mas é emblemático porque mostra duas coisas:

1) a violência estrutural do Judiciário contra as mulheres, em especial contra as mães, e

2) como ter fácil acesso ao Judiciário, por meio de influência e jogo de poder, coloca as pessoas em risco de violação de direitos.

Titi Muller foi casada com o músico Tomás Bertoni, integrante de uma banda chamada Scalene, que eu sinceramente nunca tinha ouvido falar, e tem um filho de 3 anos com ele. Em 2021, em decorrência de repetidos episódios de violência que viveu, Titi se divorciou. Essas violências, físicas, psicológicas e verbais, e que aconteceram inclusive durante sua gravidez e puerpério, foram admitidas por Tomás durante o processo de separação. Ou seja, ele assumiu que a violentou. E as violências não cessaram com o divórcio, pelo contrário – exatamente como vivem tantas  mães solo após uma separação -, elas continuaram, o que garantiu à Titi que uma medida protetiva fosse expedida contra seu ex-marido no último dia 13 de fevereiro. Uma medida protetiva é um dispositivo garantido pela Lei Maria da Penha às mulheres que estão em situação de violência, caso dela, e só é expedida após a análise feita por um juiz. Mas antes mesmo disso, Titi viu na exposição das violências que viveu uma forma de tentar coibir que elas continuassem. E falou sobre essas violências nas redes sociais. E, claro, Tomás Bertoni não gostou – porque para a perpetuação de ciclos de abuso, o silêncio é ouro. E entrou na justiça para tentar silenciar Titi.

E conseguiu.

O Judiciário, por meio de uma liminar, proibiu Titi Muller de falar sobre ele nas redes sociais. Ela foi, exatamente como descreveu em entrevista, amordaçada. E o motivo para isso, segundo o próprio Tomás, foi “(…) o processo de separação de um casal com filho jamais deveria ser espetacularizado”. Ou, usando termos de muitas décadas atrás, “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” ou ainda “Roupa suja se lava em casa“, expressões que sempre permitiram que a violência contra a mulher se perpetuasse no seio dos lares. Oras, se isso que ele chama de “processo de separação de um casal com filho” está acontecendo mediante a prática de violências cotidianas contra uma mulher, que também se reflete na criança, não apenas deve ser exposto como, se for necessário, também espetacularizado, de forma que o “espetáculo” de violência que uma mulher vive todos os dias possa ser também visto por todos. Ou a violência só é boa quando é pay-per-view?

Redes sociais da internet não são dispositivos secundários na defesa de nossos direitos, hoje se constituem como ferramenta importante, levando governos e a própria sociedade civil a estimular que sejam utilizadas para fortalecer a voz dos cidadãos, especialmente quando esses cidadãos compõem grupos historicamente violentados e cujos direitos são sistematicamente negligenciados, caso das mulheres. E isso nem é novidade, falo sobre isso em minha segunda tese de doutorado, que defendi em 2016. Ou seja, sabemos e reconhecemos já faz tempo que ações mediadas pela internet e que visam dar visibilidade às violências vividas pelas mulheres – como os movimentos #metoo, #meuprofessorabusador, #meuamigosecreto,  #meteacolher, entre outros – representam marcos importantes da luta contra a violência de gênero. E impedir que se fale sobre elas constitui uma violação significativa de direitos. Ou a internet agora só veiculará a voz do abusador?

A liminar que silencia Titi foi aceita com o argumento de que era necessário assegurar a imagem e a integridade moral de Tomás. Agora eu deixo a vocês uma pergunta: como foi que o Judiciário fez isso contra uma mulher, avalizando uma prática de silenciamento que se baseia em desigualdade de gênero? Teria a ver com o fato de que Tomás Bertoni é filho de Torquato Jardim, que foi ministro da Justiça no governo Michel Temer, ou isso é só um detalhe? Todo mundo aqui sabe a resposta.

A diferença de poder entre homens e mulheres acontece todos os dias em todos os momentos, mas sua validação pelo Estado mantém a estrutura de violência que impede que sejamos reconhecidas como detentoras de direitos e de autonomia. “Não falarás sobre teu marido, especialmente quando ele não for mais teu marido” é um contrato sexual silencioso que grita a plenos pulmões, uma autorização explícita para que violências sejam praticadas no âmbito privado. Usar a nossa voz para contar a nossa história é um direito inerente à nossa existência e não se pode proibir isso sem colocar em risco toda a luta contra a opressão, a violência e a desigualdade. Impedir uma mulher de falar sobre sua história é impedir que nossa história seja contada e, assim, é um exercício ativo de apagamento das mulheres.

Quando um homem bate em uma mulher é o silêncio que ele busca. Quando uma mulher é impedida de ocupar espaços públicos e de poder, é sua ausência que se deseja, portanto, seu silêncio. Quando se pratica a maledicência contra uma mulher, é seu silêncio que se busca através da aniquilação de sua credibilidade. E não vamos esquecer do feminicídio, a prática de silenciamento definitivo. Por que haveríamos de dar menos importância, portanto, ao silenciamento praticado por um sistema de justiça que, à semelhança da sociedade à qual deveria defender, deseja silenciar ativamente as mulheres a fim de manter a desigualdade de poder?

Nós pagamos, desde sempre e ainda hoje todos os dias, um preço alto por nossa liberdade e para nos fazermos ouvidas. Mas continuaremos a pagar.

Titi não pode falar. Mas nós podemos. E estamos em muitos lugares.

No G1.

No Universa, Uol

 

Também no Uol

Na CNN

Na Revista Forum

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Meu trabalho é orientar e apoiar mulheres nas diversas dimensões de suas vidas – maternidade, educação sem violência, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico.

Para apoio e orientação individualizados: mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br ou nos chame pelo WhatsApp que te explicamos como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.

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Sou Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Também sou Doutora em Ciências pela mesma universidade e sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP. Será um prazer poder te ajudar.