Nos últimos 10 anos, temos visto o avanço da discussão sobre os efeitos prejudiciais do sexismo na infância. Mas o que é o sexismo na infância? É tratar meninas e meninos de formas diferentes, considerando que, apenas porque são meninas ou meninos, devem se comportar de formas específicas.

Infelizmente, essa maneira sexista de criar as crianças começa quando elas ainda estão na barriga, geralmente após o exame de ultrassonografia que determina o sexo biológico, se ali naquele útero vive um bebê com vagina ou um bebê com pênis. A partir disso, a família se prepara para receber esse bebê de uma determinada maneira, se for uma menina, e de outra, se for um menino. Isso passa pelas cores das roupas, do quarto, pelos brinquedos e, também, pelo que é dito sobre a nova criança que vai chegar ao mundo.

“A princesinha do papai”

“O garotão da família”

E a partir daí, uma série de expectativas são depositadas sobre esse bebê, mesmo que não saibamos quem ele se tornará.

Então o bebê nasce, veste suas roupas de cores específicas, dorme em seu quartinho decorado com determinados personagens, tudo isso planejado em função de seu sexo biológico, e desta criança passam a ser exigidos determinados comportamentos.

E isso é tão enraizado social e culturalmente que todas e todos sabemos responder às seguintes perguntas: quem é a criança criada para ser doce, suave, cuidadosa, ter gestos delicados, não se envolver em brincadeiras muito agitadas e cuidar de bebês? E quem é a criança criada para ser corajosa, briguenta, emocionalmente dura, sem chorar, cujos brinquedos envolvem velocidade ou confronto violento? Sabemos as respostas…

É claro que muito disso vem sendo desconstruído nos últimos anos, porém não sem sofrimento, e ainda de maneira muito incipiente. Sabemos como é difícil pautar os efeitos prejudiciais do sexismo na infância, porque esta pauta não contempla os valores conservadores tradicionais, que se beneficiam de determinados papéis atribuídos a uma menina, a uma mulher, a um menino ou um homem, mesmo que façam seres humanos sofrerem. Mesmo que desconsiderem humanidades.

Acontece que dentre as expectativas depositadas sobre a menina e o menino (e aqui estamos falando apenas dessas duas possibilidades, já que o sexismo não subentende o amplo espectro de diversidades), também estão expectativas ligadas ao relacionamento amoroso.

E há um treinamento intensivo e recorrente, presente nos desenhos e filmes infantis, nas propagandas comerciais, nos livros, gibis, vídeos do YouTube e todas as demais mídias. Embora hoje já tenhamos princesas valentes e destemidas, o estereótipo da princesa ainda permanece atrelado a um ideal de feminilidade. E esse ideal também fala sobre que tipo de relacionamento as mulheres podem ter.

Desde muito pequenas, muitas meninas são educadas para agradar. À própria mãe, ao pai, à família, aos amigos. Delas são cobrados comportamentos passivos, como se toda menina precisasse ser escolhida o tempo todo. Como mercadorias numa prateleira. De toda menina é esperado um relacionamento, um casamento, a maternidade. Nós, mulheres adultas, sabemos exatamente que a compulsoriedade da maternidade não começa na idade adulta, começa ainda na nossa infância, quando se subentende que nosso caminho está obrigatoriamente atrelado a ter filhos, mesmo que não queiramos, mesmo que sequer tenhamos pensado nisso. Os meninos são educados para serem aventureiros, grandes empresários, homens bem sucedidos, acumuladores de riquezas, que se refletem em carros, propriedades e muitas outras coisas.

Essa dicotomia de expectativas não é prejudicial apenas para as mulheres, mas também para os homens: nos mantêm reféns de um modelo arcaico e que faz milhares de pessoas sofrerem e se sentirem fracassadas.

É muito difícil as meninas crescerem num contexto como esse e entenderem que, não, uma mulher não precisa da presença de um homem para ser validada. Uma mulher não precisa se casar para ser vista e aceita. Uma mulher não precisa atrelar o seu caminho à tarefa do cuidado. Uma mulher pode colocar sua vida pessoal, seus valores, seus interesses, sonhos, desejos, como prioridade total. Sim, ela pode. Ela pode ser sua total prioridade.

O destino de uma mulher não é buscar um relacionamento ideal. O destino de uma mulher é encontrar a si mesma e ser respeitada por ser quem é. Só que chegar a essa conclusão pode ser muito difícil, muito doloroso, e geralmente inclui uma trajetória de muitos quilômetros de sofrimento, sentimentos de inadequação, momentos em que se passa por cima dos próprios valores, auto-anulação, permissões para sermos secundarizadas e tantos outros desrespeitos que aprendemos a fazer com a gente mesmo ao longo da vida.

E neste ponto quero falar de mim. Tenho 42 anos, quase 43, no momento em que escrevo. E digo sem medo de errar que a maior parte dos meus relacionamentos amorosos foi marcada por essa confusão entre ser quem esperam que uma mulher seja e ser quem de fato eu sou. Primeiro que poder conhecer verdadeiramente quem se é, num mundo em que te pressionam tanto para ser quem você precisa ser para servir aos interesses dos outros, já é muito difícil. Ser verdadeira, autêntica, saber do que se gosta e do que não se gosta, é um privilégio imenso num mundo em que a gente precisa correr para não ser violentada em ruas com pouca iluminação, ou num mundo em que temos que trabalhar o dobro para sermos igualmente reconhecidas. Sem contar que ainda são poucas as que têm acesso a esse debate.

Eu passei a refletir sobre minha vida enquanto mulher apenas aos 31 anos, quando me vi grávida sem ter planejado estar, quando comecei a sentir na pele quando uma mulher tem valor e quando ela não tem, perante a sociedade. Ver minha barriga crescer por ter um bebê dentro me mostrou o porquê e o quando de ser valorizada como mulher: por ser vista como um instrumento para um fim. Não importa quem eu sou, quem eu ame ou como eu ame. Importa que, para os olhos da coletividade, estava fazendo o que tinha que fazer: gerando alguém. E foi a partir daquele momento que passei a rejeitar isso e que destinei minha vida a conhecer a mim mesma, a me valorizar, a romper com padrões e a trazer outras mulheres mães comigo. Abandonei uma carreira. Comecei outra. Saí de um relacionamento. E foi um susto olhar para o passado e ver em quantos relacionamentos insatisfatórios eu havia me envolvido apenas porque nós não aprendemos a fazer diferente.

Aprendemos que é preciso suportar tudo. Aprendemos que é preciso um salvador, um herói, cheio de sua masculinidade tóxica, para nos salvar. Sem perceber que, geralmente, são essas mesmas pessoas que produzem os problemas graves dos quais precisamos posteriormente ser salvas, salvas por outras mulheres.

Os poemas que nos fizeram bater as pestanas não foram escritos por mulheres, como hoje podem ser com mais frequência. Foram escritos por poetas. Homens. Geralmente machistas, geralmente misóginos, que diziam que além de bonitas, tínhamos que ter um certo quê de qualquer coisa. E que nos diziam que amor não é amor sem doer.

Eu fui apenas uma de tantas jovens que cresceu com o ideal de amor romântico que por muito tempo fez tão mal a mim, talvez até hoje. Porque o amor romântico coloca a mulher sempre na expectativa, sempre como coadjuvante, sempre como incompleta, sempre aceita ou espera, o que é pior, uma dose de sofrimento, de sacrifício, de abnegação, como se precisássemos escalar uma montanha para que lá em cima possamos receber o prêmio máximo.

Não há prêmios máximos.

Um relacionamento amoroso saudável não é um prêmio, não é um fim em si mesmo. Ele faz parte de uma construção. Primeiro, a partir de cada uma das pessoas envolvidas.

A ideia de duas metades se procurando é extremamente tóxica. Porque subentende duas pessoas incompletas, inacabadas, geralmente machucadas, que precisam desesperadamente que outra pessoa lhe devolva a si mesmo.

É preciso ser muito inteira para poder viver um bom relacionamento também de maneira integral.

Hoje, como mãe, como pesquisadora da vida das mulheres, como pessoa preocupada e engajada com a melhoria da qualidade da vida das mulheres e das crianças, luto contra o sexismo para que as nossas meninas, os nossos meninos e as crianças que ainda não sabem quem são (e nem precisam saber), possam ter vidas amorosas mais saudáveis que as nossas. Que essas crianças possam crescer sem serem estimuladas a procurar alguém por se verem como incompletas. Ao contrário. Que sejam tão bem cuidadas e amadas com tanto respeito, por serem quem são e não quem esperam que elas sejam, que elas não passem sequer um dia de suas vidas procurando alguém. Que elas saibam que a única busca que tem sentido é por nós mesmas e, assim reencontradas, possamos cuidar uns dos outros.

Uma mulher não precisa de um namorado ou de uma namorada. Ela pode ter, se quiser. Mas que isso, em nenhum momento, represente sofrimento, meta, ideal. Porque nessa busca, nesse caminho, sem perceber, ela pode deixar a si mesma para trás.

E pra encerrar essa conversa, quero recitar um poema de alguém famoso, alguém que marcou uma parte das meninas da minha geração.

“Uma mulher tem que ter qualquer coisa além de beleza

Qualquer coisa de triste

Qualquer coisa que chora

Qualquer coisa que sente saudade

Um molejo de amor machucado

Uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher

Feita apenas para amar

Para sofrer pelo seu amor e pra ser só perdão”.

Oras, Vinícius.

Vai te catar!

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.