A memória é um bichinho interessante. Ela não se constrói de maneira linear. O que fica marcado mais forte é aquilo que se cerca de afetividade. E são essas memórias afetivas que vão construindo nossa percepção de mundo e nossa personalidade. Quando mergulhamos nessas memórias afetivas, podemos ressignificar o mundo e dar sentido à nossas experiências. E às vezes, somos tomados de assalto por essas memórias. Um cheiro, um sabor, um objeto, um lugar, despertam uma memória que estava lá no fundo, cheia de significados que na hora a gente não percebia, mas que se fixaram na nossa mente de algum jeito. Algumas dessas memórias são tão pouco lineares que a gente não percebe com clareza. Aquilo desperta uma sensação de familiaridade, de acolhimento, assim mesmo, sem forma definida.

Uma das memórias mais antigas que eu tenho, é do meu avô costurando. Meu avô não era um homem muito cheio de gentilezas. Tinha mãos grosseiras e muito grandes, do trabalho pesado na fábrica e depois na oficina de encadernação que funcionava nos fundos de casa. Mas meu avô estava sempre costurando. Quando puxo na memória a imagem dele, muito antes do terno alinhado quando saía para o baile, vem a imagem da camiseta regata (meu avô era daqueles avôs que usavam camiseta regata branca por baixo da camisa), sentado em algum lugar, com um ovo de cerâmica na mão. E eu, tão pequena ainda que tinha pouco mais que a altura do joelho dele, observando enquanto com cuidado virava do avesso uma meia, vestia no ovo de cerâmica e cerzia os furos.

Quando meu avô consertava alguma coisa, muitas vezes trazia junto uma história do passado. Do tempo da guerra, quando ele era criança e havia fila para pegar a cota de pão de cada família. Da pobreza imigrante cheia de pequenos sofrimentos. De épocas de carestia, de ausência. De uma época onde, mesmo tendo dinheiro, não havia o que comprar. Meu avô não era nada nostálgico do passado. Quem viesse para ele com aquelas ideias de que “antigamente era melhor” tomava um sermão. Para a geração dele, consertar, reformar, fazer em casa, não era uma opção, um questionamento, um reflexo da cultura do “Faça Você Mesmo”. Era a única possibilidade em uma situação de extremos.

Durante muito tempo, a sociedade de consumo nos vendeu a ideia de que nada é um símbolo maior de fartura do que o desperdício. O século vinte viu o surgimento de formatos de propaganda que não vendem produtos, mas ideias, conceitos. Não falam da durabilidade de um produto, mas falam que aquele objeto vai fazer você mais feliz. Não é à toa que quando a gente fala de família tradicional, a gente cita comercial de margarina. Muito mais fácil do que vender margarina é vender a ideia de uma família idílica. Muito mais fácil vender a ideia de que sua vida é mais completa porque compra todo ano um novo modelo do mesmo eletroeletrônico, porque justificar isso sem ser pela emoção é impossível. Tentam forçar nossa memória afetiva a se dobrar às vontades do mercado. E no tempo de correria que a gente vive, onde o mote do tempo é dinheiro corre por trás das nossas telas nos empurrando para uma existência ansiosa e aos saltos, ficamos mais suscetíveis a comprar esses conceitos. E em um tempo onde propagandas têm as crianças como público alvo, fica muito mais fácil ser atingido por isso. Porque nossos avós também foram levados a acreditar que melhor do que consertar algo, era jogar fora e comprar um novo, e para eles, isso foi uma sensação vitoriosa, uma possibilidade nova.

O preço que pagamos por isso, como sociedade e planeta, só agora é visto com clareza. Não é fácil desvestir esses conceitos. Eu tive um privilégio, que foi conviver com adultos construtores e consertadores de coisas  (um amigo meu diria que nas veias dessa família corre miçanga, não sangue) – e isso fez toda a diferença para que eu, sem pensar muito no assunto, prefira consertar o que está aqui, faça trocas de roupas infantis com outras mães, construa um brinquedo aqui e outro ali. Mesmo assim também caio na armadilha, e me vejo desejando um objeto porque ele é vendido de um jeito tão convincente que até dói.

Talvez eu compre mais canetas e cadernos do que seria necessário, porque o apelo simbólico é muito grande. Mas é um exercício constante esse, de repensar nossos hábitos de consumo e a forma como construímos memórias. Não faltam motivos racionais para entender que reformar e reutilizar é necessário. O planeta não aguenta a quantidade de gente e lixo que está se equilibrando em cima dele. O impacto financeiro também não é difícil de perceber. Mas nesse jogo de poder entre a propaganda e a gente, talvez o segredo para criar novos hábitos, novas relações com o consumo e com os objetos que nos cercam, seja perceber que criar memórias afetivas é um processo que nos enriquece durante a vida toda. Dar significado faz com que essa vida fique menos corrida – afinal, tempo é uma convenção relativa, e a forma como percebemos o tempo tem muita relação com o que fazemos com as nossas mãos.

Lidar com crianças me deu outra dimensão sobre consertar e construir. Em meus anos de magistério, descobri que consertar a pulseira que quebrou ou tirar linha e agulha de dentro do meu armário para um conserto rápido em um estojo nos levavam, por uns breves instantes, eu e aquela criança para uma dimensão mágica onde eu ganhava super poderes. O olhar de maravilhamento mesmo no aluno que era mais avesso ao contato. Porque quando um objeto se quebra, a criança não está só vendo o objeto quebrado, mas está tendo contato com todo o conceito de finitude e lidando com emoções muito grandes, que nós adultos quase sempre desligamos, por autodefesa mesmo.

Quando a pulseira quebrada voltava para sua forma original, quando a capa que caiu era recolocada no caderno, muito mais do que o objeto consertado, eu transmitia um conceito:

“Eu me importo. Eu te ajudo a desvendar esse mundo e a lidar com as coisas dele que são difíceis de entender. Nós podemos resolver juntos os problemas que surgirem”.

O espaço entre o adulto e a criança, que nossa sociedade tenta empurrar para ter o tamanho de um abismo, diminui quando, sob o olhar que às vezes parece desatento, mas que está prestando bem mais atenção do que você imagina, consertamos alguma coisa que importa para eles. Por isso, quando a criança aprende o caminho até um adulto consertador de coisas, ela muitas vezes vai correr até ele com algo quebrado nas mãos.

"Conserta!” ela diz.

Mas também poderia dizer:

“Eu tenho medo, mudanças são difíceis. Transforma esse momento em algo com que eu consigo lidar, por favor”.

E então consertamos. Porque, eu vou dizer, essa sensação de ter super poderes é muito boa. Faz bem para a gente fazer a nossa metade do caminho até aquela criança que deu aquele passo de confiança até nós. Dá significado. E eu me vi, de repente, não a menininha que observava um velho costurando, mas sendo a adulta, com uma criança chorosa no colo, explicando como funcionava agulha e linha e contando histórias do meu avô.

Dando uma olhada rápida em volta, eu percebo a influência daqueles muitos momentos vendo meus avós e meus pais consertando e construindo coisas. Os bancos de madeira que tiramos de uma caçamba de construção, perfeitos, só sujos de concreto, que a gente lavou na calçada com a mangueira para tirar o cimento enquanto meu filho saltava em volta brincando com a água, e que raspamos e lixamos com a “ajuda” dele. A empolgação do menino enquanto pintávamos todos juntos, família e amigos, os bancos. A conversa sobre como tinham sido feitos com cuidado, parecidos com os bancos de sítios do interior, e divagamos sobre a pessoa que os tinha construído, que histórias tinham levado alguém que sabia fazer bancos de madeira a trabalhar na construção civil para uma grande empreiteira, como seriam úteis na festa de aniversário do pequeno que seria dali a alguns dias. Construindo uma memória afetiva para ele e para nós, enquanto acontecia a reforma dos bancos.

Quando um brinquedo querido se quebra, muitas vezes a criança dá um significado novo para ele. E se os adultos permitirem, ela segue brincando com aquele objeto. Quem ensina a criança a olhar com maus olhos o brinquedo desgastado pelo uso são os adultos. Para as crianças, imersas no tempo mítico como elas são, as marcas de desgaste são parte da magia, das memórias que construíram junto com aquele objeto. E nisso, muitas vezes somos nós quem aprendemos com elas. Esse respeito por aquilo que existe como se aquele objeto tivesse sentimento e merecesse uma segunda chance. É uma via de mão dupla, esse aprendizado. A camiseta manchada que ganhou um aplique de feltro, a calça muito querida que virou bermuda, a boneca de pano feita de retalhos, e que de repente valem mais do que nunca.

Somos muitas vezes levados a ver as crianças como seres incapazes. Em uma sociedade etarista como a nossa, acreditar na capacidade da criança é um ato de rebeldia. Minha primeira experiência para perceber essa capacidade incansável da criança foi como estagiária em uma escola municipal de arte. Em pânico, vi crianças de sete e oito anos trabalhando em projetos pessoais, em oficinas de xilogravura e de construção de bonecos. Usando goivas, tesouras, agulhas pontudas. Acho que nunca vou esquecer a sensação de pavor absoluto dos primeiros minutos, enquanto o professor, com seu jeito de Papai Noel, com cinco ou seis crianças penduradas nele, mostrava de forma paciente como se fazia um alinhavo. Meu pânico durou até o momento em que um menino de sete anos de idade me explicou como cortar um molde em tecido seguindo normas de segurança, e eu me dei conta de que aqueles pequenos sabiam mais sobre o assunto do que eu.

Ao mesmo tempo, é preciso respeitar o tempo deles. O tempo de observar o que o adulto faz, sem dizer nada, e muitas vezes por não mais que alguns segundos por vez.

O tempo de fazer perguntas – por que faz isso? Como faz? O que é?

O tempo de pedir que você faça algo que ele achou interessante,  mas que não tem ainda como fazer por conta própria.

O tempo de perguntar se pode te ajudar.

O tempo de pedir para que você ajude no projeto dele. Até que, algumas vezes, pode chegar o momento em que se apropriou daquele conhecimento, e vai vir te dar instruções sobre como fazer melhor.

O conceito da criança de prestar atenção não é o mesmo conceito do adulto. Talvez para você ele esteja brincando do outro lado da sala enquanto você, olhando aquele tutorial no youtube, está xingando mentalmente o instante em que teve a ideia de descobrir como trocar sozinho a resistência do chuveiro. Mas enquanto brinca, ela está te observando. Está construindo a memória, a presença, o conceito de que adultos também procuram aprender, e que as coisas não precisam ser descartáveis.

É preciso paciência. Com eles, e com a gente. nem sempre o resultado sai como se queria. Às vezes, até dar certo, é preciso refazer várias vezes. E então, elas e nós aprendemos a persistência do processo de aprender. Algumas crianças se envolvem logo. Te veem fazendo e querem de cara fazer também. Outras, vão demorar mais. A primeira vez que costurei eu tinha catorze anos, e antes disso não queria nem chegar perto de uma agulha – no entanto, dois anos depois, pedi de aniversário uma máquina de costura, que me acompanha até hoje, depois de algumas dezenas de idas ao técnico, porque não dá para saber fazer tudo e mecânica de máquinas de costura é uma ciência que não domino (e é interessante lembrar que pedir ajuda para quem domina uma técnica desconhecida também é estreitar os laços da comunidade onde vivemos, um aprendizado que também se leva para a vida).

Sempre é tempo de ter um novo olhar sobre as coisas. Eu aprendi de pequena, mas precisei reaprender – convivendo com as crianças – que era possível ter esse outro olhar. Mas o mesmo tempo de telas ansiosas é o tempo onde o acesso a técnicas mil está muito mais perto de nós. Do conserto da tomada até a camiseta em tie-dye, do bicho de pano feito do cobertor que rasgou até o simples tubo de super cola que conserta o brinquedo de plástico, ninguém precisa ser um artesão profissional para encontrar aquele pedacinho seu que é capaz de adquirir esse super poder consertador de coisas.

Olhe em volta. Cada dia nos trás novas oportunidades de repensar nossa relação com os objetos, de construir novas memórias afetivas. De dizer não para essa ideia de que é preciso jogar tudo fora, e ao invés de comprar conceitos vendidos pelas propagandas, construir esses conceitos de verdade, junto com as nossas crianças. 

 

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