Quero deixar muio claro algo com relação ao texto “Uma história cotidiana de angústia, desencontro, amor e reencontro“, publicado em 14 de fevereiro neste blog, em que conto o que vivi presenciando uma situação de violência contra a criança. E faço isso por três motivos: 1) para evitar que haja qualquer tipo de interpretação equivocada sobre meu comprometimento frente a violência infantil familiar; 2) para levantar um ponto bastante complicado – e polêmico – na complexa questão da violência, seja ela contra a mulher, o idoso, a criança, ou qualquer outro ser humano; 3) e, ainda mais importante, porque hoje trabalho com o acolhimento de mulheres violentadas e essas mulheres não podem ter qualquer tipo de dúvida com relação ao meu forte compromisso contra a violência.

Acho que já deu pra perceber qual é minha posição com relação à violência contra a criança, não deu? Ou contra a mulher. Ou contra qualquer ser humano vítima de violência. Eu JAMAIS vou me preocupar em acolher, primeiro, o agressor. 
Na verdade, nunca me preocupei em acolher agressor algum, pelo contrário. Queria mais era salvar o agredido e, até então, todas as vezes que intervi foi nesse sentido, de “atacar” o agressor e evidenciar seu comportamento violento. Porém, com três anos me dedicando a estudar a violência, percebi que esse comportamento é tão ineficaz no combate à perpetuação do ciclo da violência quanto não fazer nada. E é preciso considerar outros pontos para que não sejamos superficiais, iludidos ou deslumbrados com nosso poder de super heroínas e super heróis, se quisermos erradicar a violência de fato. 

Primeiro: quando interferimos em uma situação de violência como a que descrevi, por exemplo – mãe batendo numa criança –, achar que estamos salvando a criança é ilusão. É só pra acalmar a nossa própria consciência, algo como “Sou bacana, impedi uma criança de ser violentada”. Não impediu. Impediu apenas de ver a agressão. Você vai virar as costas e a agressão vai continuar em casa. Às vezes com ainda mais força, porque o agressor é vingativo, ele desconta ainda mais a sua ira sobre o agredido quando é constrangido. 

É preciso, com urgência, acolher a vítima, acolher o agredido. E, após o acolhimento e amparo da vítima, SIM, é preciso olhar para o agressor. Exatamente o que aconteceu na situação que descrevi no texto: a criança JÁ havia sido acolhida, ela JÁ estava recebendo atenção e cuidado, começou a receber acolhimento assim que a própria mãe desmoronou – sábia decisão da outra moça, porque qualquer pessoa que tentasse intervir no meio da agressão, seria fortemente agredido também, provavelmente fisicamente, por aquela mãe em total situação de descontrole. Tendo a mãe desmoronado, ela abriu a guarda. Tendo a criança já recebido acolhimento, pareceu-me algo bastante coerente com os princípios humanos que tantos de nós defendemos acolher aquela mulher. Aliás, pareceu-me, claramente, a única coisa que realmente poderia prevenir a ocorrência de violências futuras, chegando em casa, no dia seguinte ou em qualquer outra nova situação de descontrole. Se aquela criança já não estivesse recebendo acolhimento, com certeza eu jamais me preocuparia em oferecer acolhimento primeiro à mãe. 

Então é uma questão de coerência com o que defendemos em todas as demais áreas.
Quando a gente trabalha com mulheres violentadas no parto, por exemplo, nós as acolhemos. Mas o fato de acolhê-las não impede que o agressor (profissional da saúde) violente novamente (outras mulheres). A única coisa que pode efetivamente diminuir a o potencial violento desse sujeito é informação, esclarecimento. Ignorar o agressor não vai contribuir em nada para a mudança futura, embora nos dê a falsa sensação de que, por termos acolhido o violentado, fizemos uma coisa bacaninha e por isso somos legais.

Se em algum momento alguém sentiu que eu estava vitimizando a agressora ao acolhê-la, que eu estava contemporizando sua atitude vil de violentar uma criança, com certeza pensou isso por não conhecer a mim e meu trabalho de fato, nem o grande esforço que faço pessoal e profissionalmente para combater a violência contra a criança. Porque se conhecesse a mim ou meu trabalho saberia que não há a menor possibilidade disto ter acontecido.

É fundamental que saibamos de outra coisa bastante importante: nos países em que houve diminuição gritante das taxas de violência contra a criança, foram feitos grandes esforços de educação familiar, de programas de educação para a disciplina positiva, em que famílias agressoras recebem orientação para a mudança de comportamento. Isso funciona. E não é, nem de longe, vitimização do agressor. É reconhecimento de que pode ser até legal você segurar a mão do cara na hora e impedir aquela criança de tomar um tapa, mas não será isso que mudará o panorama de violência ao qual ela estará sendo exposta quando ninguém estiver olhando. 

Espero que a reflexão que proponho acima possa ajudar algumas poucas pessoas que não compreenderam muito bem o teor do texto a entender um pouco melhor a opção por acolher a criança E TAMBÉM o agressor. 

Nunca somente o agressor, nunca antes o agressor. Mas também ele. 
É preciso sim, sempre, considerar o agressor e o que fazer com ele. Porque qualquer coisa que seja feita focando exclusivamente no agredido, na vítima, não interromperá em definitivo o ciclo da agressão – seja violência contra a mulher, contra o idoso, contra a criança, qualquer de suas formas. 
É preciso, primeiro, sempre, acolher a vítima.
Mas depois agir sobre o agressor. 
Mesmo que essa segunda parte seja mais difícil. E mais polêmica.
E agir sobre o agressor não subentende contemporizar a violência, mas lutar para que ele não faça mais vítimas.




Leave a Reply