É como se fosse um corredor bem comprido pelo qual você começa a caminhar logo que o bebê nasce. Ali, nos primeiros dias, você nem enxerga o que está no final. Nem dá pra pensar nisso. Tanta coisa pra aprender, tanta vida pra adaptar…  E aí os meses vão passando, você vai caminhando, caminhando e as placas no tal corredor começam a aparecer: 

Faltam 90 dias pra voltar a trabalhar…

“Já pensou em como vai ser?”

“Com quem você vai deixar?”

“Creche ou babá?”

“Mãe ou marido?”

“Avó ou vizinha?”

Faltam 30 dias para voltar a trabalhar…

“Quanto tempo antes preciso estar com tudo resolvido?”

“E a adaptação?”

“Será que vou conseguir voltar?”

“Vamos fazer umas contas? Será que dá para eu largar o trabalho?”

“E se eu abrisse um negócio?”

Faltam 15 dias…

“Ainda não sei com quem vou deixar a criança”

“A creche está com fila de espera”

“Não tenho grana para pagar uma cuidadora”

“A avó mora longe”

“Vou passar quase 10 horas fora de  casa todos os dias”

“Não vou ver minha filha crescer”

“Ela só mama no peito…”

Muito antes do tal dia do retorno ao trabalho chegar, ele já passa a perseguir as mães que têm carteira assinada, porque, afinal, a solução para quando o fim da licença maternidade chegar não pode vir junto com o retorno às atividades. É preciso se programar. Seja qual for a decisão de onde e com quem deixar a cria, há de haver acordos e, se possível, alguma adaptação anterior. Nessa hora, acredito que muitas mães que têm a opção de não voltar a trabalhar acabam fazendo isso. Mas é importante ressaltar que a maioria das mulheres cuja renda é fundamental para as despesas da família não pode nem cogitar essa alternativa. 

Confesso que eu fui das que pensou em mil possibilidades. A única que me deixava tranquila era não voltar a trabalhar. Mas essa não era uma opção. E olha que tenho consciência de que estou falando de um lugar extremamente privilegiado: tive seis meses de licença maternidade, moro na mesma cidade que minha mãe, tenho um companheiro com quem dividir gastos e tarefas de casa e tenho uma rede de apoio de pessoas próximas. Mas tenho certeza de que sejam quatro meses depois do parto, ou menos se você for autônoma, sejam seis meses depois, se você for funcionária pública ou trabalhar em uma “Empresa cidadã”, seja um ano depois ou até mais, o retorno ao trabalho com a consequente privação de tempo junto à cria nunca é fácil. 

Entendo quem chega até a desejar este dia, as tão faladas “férias para a mãe”, que ficou em tempo integral com o bebê desde que ele nasceu. Deve ser libertador para algumas mulheres voltar ao trabalho. Mas, por aqui, o sentimento era de angústia. Imagino uma angústia ainda maior se abatendo sobre as mães que trabalham sem vínculo formal: as diaristas, as vendedoras ambulantes, as salgadeiras, as que ganham o pão do dia a cada dia e que sequer podem se dar ao luxo de ter uma licença, as que deixam seus filhos sob o cuidado de alguém para garantir que não falte o mínimo em casa. Trabalhar depois de ser mãe deve ser ainda mais difícil para quem não tem tempo de estreitar laços e passar um tempo com a cria. Apesar de dolorido, o fim da licença maternidade já representa o privilégio que é ter a licença. 

Sempre quis ser mãe e sentia que seria daquele tipo prático, sem grandes dramas. Tenho até de admitir que a maternidade carregou uma certa leveza pelos lados de cá, muito por causa da cria tranquila, pelo companheiro presente e por ter minha mãe dando aquela força sempre que necessário, mas não consigo colocar mais nenhuma atribuição que tinha antes acima de “ser mãe”. Jornalista, designer, esposa, filha, amiga, concursada de uma empresa pública, tudo fica tão menor do que o que considero atualmente meu papel mais importante de todos: mãe! E olha que sempre trabalhei e sempre fui muito dona do meu nariz. Nunca achei que me entregaria à maternidade tão profundamente assim. Confesso, de coração partido e com muita vergonha, que eu não era uma pessoa extremamente compreensiva com alguns ditos “privilégios” das mães no ambiente de trabalho e também não me doía quando via que as mães que trabalhavam comigo entravam no mesmo pacote de todos os colegas na hora das férias, do plantão, da viagem a trabalho. Hoje vejo com outros olhos. Uma pena ter precisado me tornar mãe para entender o quão importante é o papel de todas as pessoas que cercam a mulher que tem um bebê no sucesso da criação dele: família, amigos, colegas de trabalho, vizinhança. sim, a história da aldeia (“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”) nunca fez tanto sentido. 

De acordo com a Constituição, o limite máximo da jornada de trabalho é de 8 horas diárias e 44 horas semanais, realidade de muitas mães brasileiras. Isso significa 8 horas de trabalho + horário de almoço + deslocamento. Quem gasta mais de uma hora para ir e mais de uma hora para voltar, já tem aí pelo menos 11 horas longe da criança. Há quem fique ainda mais.

Se estiver sob o regime da carga horária máxima prevista em lei, a maioria das mães vai passar mais tempo no trabalho do que com a cria. E vai voltar a trabalhar antes da criança começar a comer [a Organização Mundial de Saúde e o nosso Ministério da Saúde recomendam que as crianças que mamam no peito sejam alimentadas exclusivamente desta forma até completarem seis meses de idade, sem nenhum outro alimento complementar ou bebida]. Na contramão do que é recomendado pelos órgãos de saúde, a CLT garante que a empregada gestante tenha direito à licença-maternidade de 120 dias, ou seja, dois meses a menos do que o tempo mínimo para amamentação exclusiva. 

Não parece um contrassenso que a própria lei esteja posta de forma a barrar ciclos recomendados para o bom desenvolvimento de uma criança?  

No final da minha licença maternidade pegamos um voo ao lado de um americano que começou a puxar papo ao nos ver com a nossa filha no colo. Ele disse que tinha acabado de ter uma filha e que ele tinha uma licença paternidade de 7 semanas porque a empresa em que ele trabalhava tinha essa preocupação de que o pai estivesse presente no começo da vida do bebê e, claro, como suporte para a mãe. Agora, a esposa dele, que trabalhava em outra empresa, veja só, tinha apenas 6 semanas de licença maternidade. MENOS DO QUE ELE! Eu fiquei imaginando como uma mulher consegue voltar ao trabalho apenas seis semanas depois de parir. Para mim, nessa época, tantas fichas ainda estavam caindo, o sono completamente desregulado, o peito vazando loucamente, as roupas nem pensavam em voltar a caber… Ver meu marido voltar a trabalhar depois de ter passado todo o mês de férias dele comigo já foi dolorido. Imagine se fosse eu que tivesse de voltar?! Onde e com quem se deixa uma criança de UM MÊS E MEIO? 

Como uma sociedade se projeta para um futuro de sucesso se “arranca” os bebês dos colos das mães quando eles ainda nem entenderam que nasceram?

Um mês e meio é um extremo mais preocupante, mas quatro meses me parece ainda muito cedo para que uma mãe fique longe do seu bebê metade do dia [e não estamos falando em um período apenas. Estamos falando em metade das 24 horas]. Como manter a amamentação recomendada pelos órgãos de saúde [não estou desconsiderando as mães que precisam dar fórmulas para seus bebês, só levanto a questão conflitante do que é recomendado pelo nosso órgão máximo de saúde e o que é a realidade da maioria das mulheres que trabalham com carteira assinada]? 

Existe a teoria dos “primeiros mil dias”, que diz que tudo o que acontece no comecinho da vida de uma criança [desde o primeiro dia de gestação até os dois anos de idade] pode influenciar o resto da vida dela. De acordo com a teoria, nesse período, cada célula do corpo está sendo formada e programada e todos os fatores que influenciam a criança podem mudar o destino dela, não só em termos biológicos, mas também em questões intelectuais e sociais. 

É como se todas as escolhas que são feitas gerassem uma programação genética que vai influenciar até a vida adulta da criança. “Tudo o que é feito durante os primeiros mil dias faz a diferença para o futuro da criança”, diz a teoria. 

Considerando que a gestação leva, em média, 270 dias e que a licença maternidade prevista na CLT tem 120 dias, estamos falando em 390 dias, menos da METADE dos mil dias. Depois disso, a maioria de nós perde o “controle” sobre os outros 610 dias. E muitas de nós vamos trabalhar em ambientes que não dão a mínima sobre a forma como vamos conciliar a vida de trabalho e a maternidade.

“Ah, ela vai ter essa facilidade só porque é mãe?”.

Siiiiiiiiim! Essa deveria ser a resposta para essa pergunta em muitos casos. “Sim, ela vai precisar sair no meio da reunião porque tem de buscar a filha na escola”; “Sim, ela vai se atrasar porque o filho vomitou na hora de sair de casa”; “Sim, ela não vem trabalhar hoje porque conseguiu uma consulta de última hora porque a filha está com o peito chiando há dias”; “Sim, ela vai sair mais cedo porque hoje é aniversário dos gêmeos dela”; “Sim, ela vai se ausentar por algumas horas porque hoje tem apresentação na escola e a caçula nem dormiu essa noite achando que a mãe não iria”; “Sim, ela não está tendo um bom dia porque as duas filhas dormiram muito mal essa noite e ela não conseguiu pregar os olhos”; “Sim, ela vai ter um prazo maior para entregar o relatório porque foi semana de provas e ela precisou estudar com o filho que estava de recuperação”; “Sim, ela vai tirar férias na alta temporada para coincidir com as férias dos três filhos”;  “SIM, SIM, SIM, ELAS TÊM FILHOS!!!”.

Não é “só porque ela tem filho”. É porque a sociedade coloca sobre ela uma enorme responsabilidade no que essa criança vai se tornar no futuro, porque ela QUER acompanhar o desenvolvimento dessa criança. Porque ela quer continuar trabalhando, mas quer ver a criança dar o primeiro passinho, porque ela quer apresentar os primeiros alimentos para a cria, porque ela quer que esse filho, filha ou esses filhos se sintam acolhidos, amados, seguros. 

E você, que não tem filhos, ainda acha que não tem nada a ver com isso? Que depende só da mãe? Pense com o coração, se você não for mãe ou se você não se lembrar do que passou quando seus filhos eram pequenos. Depende mesmo só da mãe? 

As respostas para as perguntas: “Com quem o bebê vai ficar”; “Creche ou babá?”; “Tem creche?”; “Volto ou não a trabalhar?” podem ser diferentes pra cada mulher. As pessoas com quem contar também. A realidade social, o tempo afastada do trabalho com a cria, a possibilidade de pagar uma instituição ou uma cuidadora, a dificuldade de uma vaga na creche pública, os dilemas sobre a volta, tudo isso pode variar de mulher para mulher. Mas o que é urgente para todas nós é a necessidade de que a sociedade como um todo some esforços junto conosco nesta tarefa tão árdua que é educar uma criança; que os ambientes de trabalho sejam solidários; que seja senso comum que uma mulher com um bebê tem necessidades diferentes da que não tem; que o jogo de futebol da criança importa; que a doença da criança importa; que, para aquela mãe, conseguir buscar a criança na hora certa na escola importa; e que atender a cria em caso de machucado no parquinho importa. E, como muitas mães vão passar mais tempo no trabalho do que com a própria cria, deveria ser importante para todos que a rodeiam se ela está bem ou não, se a criança está bem ou não. 

Importante destacar aqui que não estou, de forma alguma, assumindo que a criação dos filhos é mais responsabilidade da mãe que do pai, que os pais não poderiam ter as mesmas angústias ou participar de forma equânime na criação dos filhos. Mais uma vez, falo do lugar que ocupo e dos questionamentos que permeiam meus horizontes como mãe, das perguntas que tenho me feito desde que me tornei mãe e da forma como acredito que a sociedade deve apoiar uma mãe ou, para ser mais abrangente, uma família com filhos. 

Se a solidariedade não começar na rede de apoio da mãe, incluindo amigos e família e se estender ao ambiente de trabalho, se as pessoas que rodeiam uma mãe não tomarem para si uma parte da responsabilidade sobre o que acontece com aquela mãe, se não for um sentimento compartilhado por cada pessoa que se dispõe a enxergar as necessidades da mãe, se não for natural pensar que uma mãe nunca deveria estar sozinha nessa jornada, estaremos falhando como sociedade acolhedora de nossas crianças, como sociedade que cria nossas crianças para um futuro melhor. Mais que isso. estaremos falhando com todas as mulheres. 

Você mãe que sofreu ao voltar a trabalhar, você mãe que está sofrendo porque vai voltar a trabalhar, aqui meu abraço. Desejo que o retorno seja caloroso, que vocês sejam recebidas com palavras e gestos de acolhimento e, o mais importante, com atitudes solidárias “só por serem mães”. 

E que comecem os trabalhos!

P.S. Depois que escrevi o texto, voltei a trabalhar. Sofri tanto por antecipação que o retorno acabou sendo bem melhor do que esperava. Fui recebida com carinho pelos colegas que se interessaram em saber como estava a mãe que voltava depois da licença. Recebi mensagens de amigas queridas em apoio ao retorno. Apesar de estar morrendo de medo, tive minhas pequenas felicidades. Mas também minhas dificuldades: minha filha estranhou, chegou a me ignorar duas vezes na hora do reencontro depois do trabalho. Acredito muito que enquanto não houver caminhos legais, comuns à maior parte da sociedade, que garantam uma efetiva participação das mães e pais na criação dos filhos por mais tempo na primeira infância, a rede de apoio de cada mulher que ganha um bebê, ou de cada família que cresce, pode fazer a diferença e garantir o que está muito além das leis. 

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