Essa carta foi escrita há um certo tempo. Mas, infelizmente, esse assunto parece estar sempre – e cada vez mais – em pauta: a medicalização das crianças e da infância.
Com cada vez mais frequência, comportamentos absolutamente normais das crianças estão sendo classificados e rotulados como impróprios, indesejados e, pior, doentios. Doentios no sentido de “representar uma doença”. Essa é a sociedade de hoje, que classifica como doente o natural e como aceitável a padronização.
Quando falamos sobre o assunto com as mães, que representam grande parte dos interessados no tema, muitas vezes a discussão se torna acalorada porque as pessoas têm uma tendência bastante egocêntrica de achar que aquilo que se critica no global é direcionada para elas próprias, como se todos estivessem dedicando horas de suas vidas a atacá-las pessoalmente, numa espécie de paranoia “egotrípica”, vamos dizer assim.
É uma carta que fala especificamente sobre a inexistência de embasamento científico para muitos dos rótulos que estão sendo dados por aí, sobre a educação atual, sobre o desrespeito às diferenças e a falta de acolhimento para quem precisa de acolhimento.
Escrita pela pediatra Dra. Maria Aparecida Affonso Moysés, que é doutora em medicina e livre docente em pediatria social pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, professora titular em pediatria da mesma instituição e um dos maiores nomes brasileiros, atualmente, na pesquisa da medicalização do comportamento e da aprendizagem, coordenando o Laboratório de Estudos sobre Aprendizagem, Desenvolvimento e Direito, a carta é direcionada a mães, especialmente mães daquelas crianças que, com cada vez mais frequência e menos acurácia, são diagnosticadas como hiperativas, desatentas ou disléxicas.

Carta a uma mãe
Por Cida Moysés

Desculpe meu atrevimento em te escrever, pois não nos conhecemos pessoalmente.

Talvez este seja o problema: não nos conhecemos. Então me atrevo novamente e peço: esqueça por instantes tudo que já ouviu falar de mim.

Nunca disse que a ciência médica não propicia avanços na qualidade de vida das pessoas, ou que não há crianças e adolescentes com dificuldades para aprender ou para agir/reagir segundo os padrões mais aceitos.
Defendo que TODA CRIANÇA TEM DIREITO DE APRENDER E É CAPAZ, devendo ser atendida em suas necessidades e especificidades.
Não é esquisito que o diagnóstico de uma doença que só atinja a linguagem escrita seja baseado na própria linguagem escrita? Mesmo em exames mais sofisticados como o PET, a pessoa deve ler um texto, que já se sabe que ela lê mal. Se o tratamento é pedagógico, por que falar em doença?
Perguntemos: QUEM espera que fique sentada? Para complicar, 50% dos que têm dislexia também têm Tdah e aí precisam tomar psicotrópico, aquele que deixa a criança contida, quieta, sem sonhos pois focada, que pode provocar arritmia, hipertensão, parada cardíaca, dependência química etc.

Você nunca me ouviu dizer que os pais de jovens com dificuldades jogam seus problemas sobre os filhos, são os culpados de tudo e só querem se desresponsabilizar. Sei muito bem o quanto sofrem, buscando o melhor. Sei que você sabe que não tenho filhos, mas isso não é defeito nem impede que compreenda e acolha crianças e pais, suas dores físicas e afetivas. Aliás, nesses mais de 30 anos como pediatra, não me lembro de alguma mãe falar que não se sentia bem atendida por mim. Afinal, o que busco na formação de futuros médicos é que sejam capazes de se identificar com medos e dores do outro sem que precisem passar pela mesma situação. Então, o que tenho defendido como médica, pesquisadora e professora de pediatria e que provoca tantos mal entendidos e ressentimentos entre nós?
Dizer que não há comprovação científica de que existam doenças que comprometam exclusivamente

aprendizagem e comportamento não é dizer que não existam pessoas com dificuldades, sofrendo por isso. Não aceitar que uma doença inata atinja 10% da população é obrigação de médicos bem formados; em medicina, só usamos porcentagem para falar de doenças socialmente determinadas! Comprovar uma doença exige um rigor científico não encontrado nos autores que defendem a existência de dislexia e Tdah. Esse rigor é diferente de inventar testes/exames para provar a doença. Ao contrário: comprovada a doença, buscam-­-se exames que permitam diagnosticar com mais segurança; do mesmo modo, melhorar com tratamento não prova que estava doente! Daí os questionamentos em todo o mundo, por pesquisadores de diferentes áreas. E aí, algo estranho: ao invés do debate acadêmico, que é o que mais acontece em ciência, tenta­-se desqualificar os que questionam, inclusive com agressões grosseiras.

Você sabe, a ciência só avança pelo questionamento, nenhum conhecimento é eterno. Desculpe, essa é uma longa discussão teórica. Por favor, voltemos a seu filho. Aceite meu convite e vamos tentar vê-­lo e ouvi-­lo como ele é. A maioria das crianças diagnosticadas como disléxicas são absolutamente normais, que apenas aprendem de modos diferentes. Aliás, não aprendemos todos do mesmo modo. Dizer isso não significa abandoná-­lo à própria sorte (ou azar); ao contrário.
Você já se perguntou por que seu filho precisa ter um laudo de doente (sem eufemismos: se está no DSM é doença!) para ter acesso a outros modos de ensinar?
Desculpe a intimidade, só mais uma pergunta: além do acesso a outros modos de ensinar, que benefício real esse diagnóstico trouxe pra sua família? Tenho certeza que você luta para que seu filho aprenda e não simplesmente para que não seja reprovado! Não devemos lutar pelo direito de todos, se
m necessidade de laudos ou rótulos, sem estigmas? Vamos lançar esta campanha? Vamos olhar agora como foi feito o diagnóstico de TDAH em seu filho? Por meio de um questionário com 18 perguntas, mal formuladas, vagas, a serem respondidas de modo ainda mais vago (bastante, demais, pouco). Com seis respostas positivas, está selado o diagnóstico de uma doença neurológica, que deverá ser tratada com psicotrópicos por toda a vida.
Você não estranha que uma doença neurológica não precise se manifestar em todos os contextos da vida, mas apenas em dois? Qual a lógica para “atenção no videogame” não anular “desatenção na escola”? Apenas como exemplo, vejamos algumas perguntas: Parece não estar ouvindo quando se fala diretamente com ele (quem fala o que?); Evita, não gosta ou se envolve contra a vontade em tarefas que exigem esforço mental prolongado (o que é esforço mental prolongado? Geralmente o que não gosto ou não sei!); Distrai-se com estímulos externos; Responde as perguntas de forma precipitada antes delas terem sido terminadas.
Na busca de defeitos, não há circunstâncias, interesses, modulações; não há vida. A transformação de padrões sociais em biológicos, em critérios de doença neurológica, fica ainda mais patente em perguntas como: Sai do lugar na sala de aula ou em outras situações em que se espera que fique sentado.
Você já leu a bula do remédio que dá pro seu filho? A maioria dos jovens com esses diagnósticos são

normais, apenas não se enquadram em padrões sociais que te convenceram que são normas biológicas. É cruel acabar com questionamentos, devaneios e utopias, com as possibilidades de outros futuros. Pode ser que seu filho esteja sofrendo assim. Porém, existe sim um número pequeno, mas real, de jovens que têm dificuldades mais sérias. Eis a outra face da moeda, ainda mais perversa.

Ao invés de buscar entender o que acontece com eles, de pesquisar causas e modos de superação, admitindo que ainda não se sabe qual o problema de cada um, estão sendo todos enquadrados em diagnósticos que os aprisionam sem resolver o problema real. Talvez este seja o caso de seu filho. Está na hora de abandonar certezas e ter a coragem de admitir que a medicina não sabe por que alguns jovens têm dificuldades extremas. Talvez você deva se perguntar se, junto com seu filho, também não é refém de diagnósticos equivocados e terapias que não tratam. Se quiser continuar essa conversa, pode contar comigo.
Um abraço
Cida Moysés



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