Existem coisas que me são caras demais. Essas são as mais difíceis de escrever. Assim é quando o assunto é a educação da minha filha.
Dentro de casa, temos uma ideia mais ou menos definida sobre como queremos educá-la e já a estamos educando. Nossa filha é criada junto ao pai e à mãe, presença constante, quando um não está, está o outro, e não é escolarizada nem queremos tão cedo. Lutamos muito para que assim fosse, modificamos nossa rotina anterior em cem por cento para chegar até aqui, abrimos mão de muitas coisas – que não nos eram fundamentais – para propiciar isso a ela, a nós. Hoje ainda, enquanto eu fazia o almoço, meu companheiro terminava de montar um “carro” para ela no gramado, feito de dois bancos, uma espuma de colchão em cima, outra embaixo e estava lá o “carro” dela. Ela muito feliz. Ele olhou para mim e disse: “Olha essa alegria. Com tão pouco…“. Então fiquei ali pensando… Pouco? Nada disso é pouco. Muito pelo contrário. É muito! Muitíssimo. Por um segundo me emocionei pensando em tudo o que vivemos antes e vivemos hoje para que isso fosse possível. Por termos escolhido estar com ela 24 horas por dia, viemos os dois para casa trabalhar. É aqui que trabalhamos. Minha bancada de trabalho fica entre a sala e a cozinha. Um espaço muito iluminado e agradável que montei para estar no meio de tudo – e é também por isso que minha produção intelectual fica concentrada nos períodos noturnos. Ele trabalha exatamente no mesmo lugar, mas no andar de cima. Enquanto escrevo aqui, sei que ele desenha lá. Da minha bancada, vejo a Clara correr no quintal de trás ou brincar de cola colorida no quintal da frente. Vejo-a correr para o banheiro tentando segurar o xixi a tempo de se sentar no vaso (tentando não me chamar para ver se dá conta sozinha…), nessa fase de desfralde. Estou pertinho da fruteira para quando ela quer alguma fruta que precisa ser descascada. Estou ao alcance dela. Lá em cima, de onde ele trabalha, ele a vê brincando em seu quartinho, sobre nossa cama ou imitando alguma grande cantora dos anos 70 no espelho (Aretha é sua favorita…). E é frequente eu ouvir passos dos dois dançando juntos.

Tempo realmente livre. Criação não direcionada. Livre acesso aos meios.
Livre escolha de atividades.
Completamente sem televisão há duas semanas.
E nem percebeu…

Lindo isso, né? Nem sempre. Nossos prazos estão sempre apertados, trabalhamos sempre com a corda no pescoço, estamos sempre na correria, por vezes precisamos abrir mão de um ou outro trabalho ou convite por não conseguirmos assumir mais. Mas o tempo da Clara é o tempo da Clara. Dedicamo-nos ao máximo para estar com ela de maneira ativa e participativa. Pelo menos uma vez por dia estamos com ela na areia da praia, ou em algum parquinho, ou passeando por aí, ou pedalando. Ou o pai ou a mãe, muitas vezes ambos, na dependência de nossas loucas agendas.

Clara completou 3 anos e 4 meses. E desde sempre as pessoas nos perguntam sobre quando ela irá para a escolinha. Até fizemos uma tentativa certa vez, por termos compreendido errado as solicitações dela, mas vimos que estávamos nos precipitando e em pouco mais de uma semana, voltamos atrás. Hoje, quando me perguntam sobre (e serei sincera, me perguntam muito pouco, porque os que me cercam sabem exatamente o que penso), respondo: não sei quando irá.

Sinceramente? Até o momento, tenho verdadeira rejeição a escolarizar minha filha.
Muita gente acha isso contraditório, porque, afinal de contas, eu passei 33 anos da minha vida dentro de estabelecimentos de ensino. Quando tudo parecia ter sido concluído, eis que volto novamente. Então as pessoas me perguntam: como posso rejeitar a escolarização sendo eu tão escolarizada?
Não te parece óbvia a resposta?
É justamente por isso!
Justamente por ter uma vasta experiência de vida dentro de estabelecimentos de ensino, conheço suas profundas limitações.
Está equivocado quem pensa que eu tenho horror a escolas. Não tenho. Se tivesse, não estaria de volta a uma. Horror eu tenho ao que hoje as escolas têm representado. Ao fim para o qual ela está servindo. Ao modo como ela está estruturada. À lógica da qual ela faz parte. E ao fato de que muitas vezes as crianças são escolarizadas sem qualquer reflexão anterior a respeito.
E digo, sem nenhuma tranquilidade, pelo contrário, com muita angústia: no meu entorno, não conheço ainda nenhuma (eu disse nenhuma) escola ou filosofia educacional que tenha me parecido afim ao que gostaria de compactuar para a educação formal da minha filha. Sei que aquilo no qual eu acredito existe. Mas não existe perto de mim, pelo menos não ainda.

Sim, esse é o modelo escolar predominantemente vigente.

Então eu travo uma batalha íntima comigo há muito tempo. Uma batalha que parece se acirrar conforme ela cresce. E é com informação que quero vencer essa batalha. Com informação sensível e fora do óbvio. Quero continuar a fazer questionamentos. Quero ouvir pessoas que fizeram outras escolhas. Quero participar de rodas de bate-papo com quem viveu o diferente, ou com quem quer viver o diferente. Porque, afinal de contas, um lado eu conheço e conheço muito bem. Quero agora conhecer um outro lado.

Por esse motivo, decidi começar a estudar informalmente o assunto e a participar de vivências a respeito de educação ativa, escolarização, desescolarização, novos paradigmas educacionais, a fazer leituras, a assistir vídeos e documentários, a compartilhar em grupo descobertas sobre educação infantil. E escolhi, para começar esse mergulho, uma breve vivência com Ana Thomaz. E não poderia ter começado de melhor maneira. Foi uma tarde inteira ouvindo e sentindo essa mulher tão especial falar e compartilhar sobre sua jornada, sua história, a história de seus filhos. Coisas tão absolutamente profundas e fundamentais, tantas vezes simples e puras. Sem fugas ou subterfúgios, sem auto-enganos, sem enganar nossos filhos.

Não falarei detidamente sobre cada aspecto do que ela compartilhou conosco porque foram muitos e profundos compartilhamentos, que obviamente gerarão outros textos daqui pra frente. Mas algumas coisas me marcaram de maneira tão forte que, desde então, venho prestando mais atenção a esses aspectos em minha vida diária, em nossas vidas diárias. Algumas reformas estão sendo feitas e os resultados – belos resultados – nós já estamos colhendo.

Ana falou sobre coisas que muitas vezes nos passam desapercebidas.
Sobre como essa sensação de estar “felizinho” sempre, que tantos recursos da vida moderna hoje facilitam e favorecem (como a televisão, os passatempos fugazes, a tecnologia, entre outros) mais nos empobrecem que auxiliam. Pelo simples fato de que, enquanto estamos “felizinhos”, estamos perdendo o contato
com a gente mesmo, deixando de nos conhecer a fundo, de saber do que realmente gostamos, o que realmente queremos. O mesmo para as crianças. Como deixá-las constantemente “felizinhas” ou “atarefadinhas” ou  “entretidinhas” mais desconectam-nas de si próprias do que permitem que se conheçam, que conheçam seus gostos e preferências.
Sobre a aceitação incondicional da existência do outro, coisa que falta tanto hoje e que é a base, em última análise, de todo o desrespeito às diferenças e da tendência à padronização que hoje, muito prejudicialmente, se busca.
Sobre o significado muito maior de nossas crianças buscarem o conhecimento e o apreenderem a partir de um forte interesse pessoal, particular, delas, do que serem expostas a inutilidades que podem, apenas, minar seu interesse natural pelo mundo, pela vida, pela descoberta.
Sobre a imensa importância (embora pareça ser tão difícil) de ser mãe sem explicar, sem ameaçar, sem recompensar, apenas agindo depois de meditar a respeito e fazer-se um silêncio interno.
Sobre o motivo dos chiliques infantis nos irritar tanto, pelo simples fato de mostrar a nós que não somos tão boas mães quanto achamos ser.
Sobre a potência que há em todo ser humano e que, tantas vezes, é despotencializada à toa, nos hábitos massificadores do cotidiano.
Sobre como as justificativas que são dadas para escolarizar as crianças muitas vezes são tão ou mais importantes e dizem muito mais sobre quem as utiliza do que o próprio ato de escolarizar.
Sobre a reatividade fruto do direcionamento (e sobre isso quero falar mais detidamente em breve, porque estou colocando algo em prática aqui em casa, com minha filha, que só me mostra o quanto isso é verdadeiro), no sentido de que só temos crianças reativas ou resistentes às atividades porque essas atividades não partem de um desejo genuíno delas, mas de um direcionamento exterior, a partir de alguém, não de seu anseio individual.

Obviamente, é missão fadada ao fracasso tentar discorrer sobre tudo o que essa mulher tão especial trata, fala, facilita, encoraja, inquieta e estimula a pensar. Mas fiz questão de pontuar essas pequenas grandes coisas apenas para compartilhar um pouco de uma vivência que me tocou tanto, que me modificou tanto e que tanto tem me feito pensar a respeito da infância, a respeito da minha filha…

Inspirada por essa vivência, estou idealizando começar um pequeno grupo de compartilhamento de vivências sobre educação ativa aqui, em casa, entre meus amigos mais próximos. Não sei se dará certo, mas espero que dê. Tenho ao meu redor gente muito interessada no assunto e com certeza será muito rico. A ideia é lermos coisas juntos, ou assistirmos a vídeos, documentários e fazermos pequenas trocas a respeito, uma vez por semana ou quinzenalmente. Esperamos começar em breve, um pequeno e íntimo sarau sobre educação ativa.

Para finalizar essa divagação pessoal, deixo aqui, para estimular o compartilhamento de vivências a respeito, um trecho do livro “A primeira e última liberdade“, de J. Krishnamurti, que estou lendo no momento e, na sequência, dois pequenos trechos de “Sociedade sem escolas“, de Ivan Illich. Com o verdadeiro desejo de que possamos antes olhar para nossos filhos e enxergar neles toda a potencialidade que têm como seres em crescimento, do que encará-los como simples tijolinhos em muros. Mesmo que tais muros estejam pintados em cores mais coloridas.

Eles não são tijolinhos. E nós não precisamos de ainda mais muros.

“O indivíduo é meramente um instrumento da sociedade, ou a finalidade da sociedade?Esse é o problema com o qual a maioria de nós se confronta.Você e eu, como indivíduos, existimos para ser usados, dirigidos, educados, controlados e modelados de acordo com certos padrões ditados pela sociedade e o governo, ou a sociedade e o Estado existem para o indivíduo?O indivíduo é a finalidade da sociedade, ou um mero fantoche para ser ensinado, explorado e sacrificado como um instrumento de guerra?Esse é o problema com o qual nos confrontamos.Este é o problema do mundo: o indivíduo é um mero instrumento da sociedade, um joguete de influências, ou a sociedade existe para o indivíduo?Como vamos descobrir? O problema é sério, não é?Se o indivíduo é um mero instrumento da sociedade, a sociedade é muito mais importante do que o indivíduo. Se for assim, temos de abrir mão da individualidade e trabalhar para a sociedade, todo o nosso sistema educacional tem de ser inteiramente reformado, e o indivíduo, transformado em um instrumento para ser usado e destruído, liquidado, descartado.Mas se a sociedade existe para o indivíduo, então sua função não é a de fazê-lo adequar-se a um padrã, mas dar a ele um incentivo para a liberdade.Agora precisamos descobrir qual dessas duas situações é falsa”.(J. Krishnamurti)

Trecho do livro “Sociedade Sem Escolas”, de Ivan Illich

Trecho do livro “Sociedade Sem Escolas”, de Ivan Illich

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