Você já desejou morrer?

Pergunta difícil para se começar um texto, eu sei.
Mas você já desejou morrer alguma vez?

Se há algo que vez ou outra me leva à reflexão é esse assunto, especificamente a questão da quantidade de dor emocional que alguém pode suportar e além do qual se torna insuportável viver. Já me peguei pensando muito sobre isso, especialmente desde 2008.
Será que as pessoas respondem sinceramente a essa pergunta? Não, não respondem. Suicídio é tabu.
Tabu é algo sobre o qual as pessoas não gostam de falar, sentem-se desconfortáveis, avança os domínios do moralismo, das diferentes morais, dos julgamentos, do considerado inaceitável.
Mas eu não ligo para tabus. Ligo para pessoas. Para o que pessoas vivem. Não ligo para moralismos e falsos moralismos.

Sim, eu já desejei morrer.
Mas nada muito além daquela frase dramática que a gente diz quando algo vai muito mal, nada genuíno, apenas uma superficialidade, nada real. Sempre gostei muito da vida para abrir mão dela assim, ativamente. Para uma ex-fumante que sofre diariamente de abstinência, isso pode parecer até hipócrita, já que o cigarro é um dos meios de nos matarmos ativamente aos poucos. Mas a vida é valiosa demais, para mim, para que eu escolha abrir mão dela. Tanta coisa que quero viver, experimentar, conhecer. Claro, juntos virão também alguns percalços e perdas, mas isso tudo faz parte da vida e da escolha que se faz ao decidir viver – e decidimos todos os dias.

Conheci algumas poucas pessoas que escolheram encerrar a própria vida, infelizmente. Infelizmente não por tê-las conhecido, mas por terem feito essa escolha. Não eram pessoas muito próximas ou que eu conhecesse bem –  o que não diminui o mal estar relacionado ao fato de saber que alguém preferiu encerrar sua vida. Mas foi em 2008 que me vi pensando realmente sobre esse assunto, sobre o sofrimento de alguém que assim decide, sobre quão grande deve ser essa dor a ponto de não ser mais suportável, de não poder ser dividida com outra pessoa, da sensação de nada a ser feito ou dito que possa demovê-la de sua decisão. Foi quando perdi um grande amigo que me confrontei com essa questão.

Ele partiu em outubro de 2008.
Alguns meses antes, nos encontramos em um congresso. Depois de muitos anos sem nos vermos, nos reencontramos e foi muito bom poder revê-lo. Trabalhávamos na mesma área de pesquisa, ele estava começando a usar um teste experimental que eu já usava há algum tempo e passei a assessorá-lo nesse assunto. O teste era realmente meio chatinho de ser feito, precisava de olho treinado e alguns macetes, e também por isso passamos a conversar com mais frequência, e a amizade que havíamos tido na graduação retornou em uma outra fase de vida. Eu já morava em Florianópolis e ele morava em São Paulo.  Então, certa noite, saí com alguns amigos para comemoramos a concessão de uma bolsa importante a uma amiga, também pesquisadora. Fomos direto da universidade e acabei voltando para casa bem tarde. Morava sozinha naquela época. Assim que cheguei em casa, olhei meu celular, que havia ficado no fundo da bolsa, sem que eu pudesse ouvi-lo tocar. Muitas ligações não atendidas. Dezenas. Todas de números não identificados, ddds paulistas. Como quase toda minha família mora em São Paulo, me amedrontei, porque estava claro que algo havia acontecido. E foi quando, nesse momento, o celular tocou novamente e eu atendi. Era outro grande amigo, com quem não conversava há alguns anos. E a notícia que ele me dava era terrível: nós havíamos perdido um amigo em comum. Aquele a quem menciono no início.
Lembro-me de desligar o telefone e me sentar no sofá. Sozinha. Em silêncio. E chorei por algumas horas. Nesse intervalo de tempo, muitos amigos ligaram. Estavam todos se telefonando. Foi algo bastante forte – e inacreditável.

Na mesma hora decidi ir a São Paulo, mas não consegui passagens para aquele horário. Deitei na cama e não conseguia pensar direito. Passei a noite em claro, sem pensar em nada, apenas tentando entender como aquilo era possível. No início da manhã, o telefone tocou novamente. Um amigo me dizia que o velório havia sido adiado em algumas horas e que, portanto, daria tempo de chegar caso eu quisesse ir.
E então fui. Fui apenas para estar lá, porque não cogitei vê-lo em nenhum instante. Eu não precisava de uma última imagem para me lembrar dele. Amigos deixam em nós memórias muito mais felizes que uma suposta última. E assim foi. Estive lá, abracei amigos, abracei a família – cuja dor sequer posso imaginar. Estive lá porque eu queria estar lá, queria estar com ele. Sei que isso talvez não tivesse qualquer significado, mas seres humanos são assim, precisam de rituais, eu pelo menos preciso.
Voltei para casa no mesmo dia, tarde da noite. Lembro-me da sensação de entorpecimento nos dias que se seguiram e do mal estar que pairou no corredor do departamento onde eu fazia meu doutorado, já que ele era conhecido de muitos ali.

Quase uma semana depois, quando aquele mal estar começava a se dissipar, chega para mim uma encomenda pelos correios. Era uma caixinha pequena. Dentro havia a cópia de um CD de música e um bilhete. Na capinha redonda de plástico, escrito à mão com caneta hidrográfica, eu li “Alceu – Forró de todos os tempos“. E no bilhete: “De Ian a Alceu… Pra você que é rock and roll, um forró de corredor de ônibus. Beijos e saudades.“. Era um presente enviado por ele, mas que demorou para chegar… Nem precisei colocar para tocar para entender o que era, mas ainda assim coloquei. Comecei a ouvir e tive uma crise de choro que veio com tudo. Uma amiga chegou para me visitar naquele exato momento, me encontrou naquele estado, eu contei o que havia acontecido e o choro foi contagiante… Explico.
Dez anos antes, nós havíamos ido a Natal (RN) em um grupo de muitos amigos para participar do congresso de 50 anos da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). Viagem daquelas que só estando no furor deliciosamente ensandecido da graduação pra encarar: três dias viajando de ônibus, em ônibus concedido pela universidade, com poltronas que mal deitavam, partindo do interior de São Paulo, tomando banho nas paradas, pendurando toalha de banho na cordinha do ônibus, coisa de quem tem história pra contar. Eis que chegando em Pernambuco, pedimos ao motorista para parar em Olinda para assistirmos à final da copa do mundo (Brasil na final, aquela da tal convulsão do Fenômeno). O motorista topou. E então começamos, todos, a dançar forró em pleno corredor do ônibus – exatamente as mesmas músicas do CD que ele me havia enviado, 10 anos depois… Dezenas de pessoas dançando em um corredor, o que me rendeu um monte de hematomas nas pernas e mais um tanto de boas gargalhadas.
Eu e ele havíamos nos lembrado disso quando nos reencontramos poucos meses antes de sua partida. Rimos um monte, falamos de tantos outros amigos que estavam espalhados por aí, lembramos da graduação, da saudade daquele tempo, tudo isso olhando o céu estrelado do interior paulista e ouvindo Jethro Tull – daí o “De Ian [Anderson] a Alceu…“.

Minha reação ou ouvir aquele CD e lembrar de tudo foi das mais esdrúxulas. Foi um misto de choro com riso, uma coisa doída (com acento e sem acento). Então o riso foi embora e eu fiquei apenas chorando… Chorando porque eu queria pegar o telefone e diz
er: “Recebi! Obrigada!”, mas não tinha para quem ligar… Então fechei os olhos e a única coisa que consegui dizer, ali sozinha, foi “Que merda!”. Não era o presente que era uma merda, nem tampouco ele. Era aquela situação tão além de mim, tão inalcançável. Inalcançável: era isso o que eu sentia, um sentimento de algo inalcançável. Querer agradecer a alguém por uma delicadeza. E esse alguém não poder ser alcançado. Sem jamais poder prever que algo assim fosse acontecer com alguém tão cheio de vida – paradoxalmente.

Eu poderia, agora, falar algumas coisas sobre suicídio do ponto de vista de quem estuda violência em saúde. Sim, suicídio é considerado morte por violência, entra nas estatísticas da violência. Violência auto-infligida. Um gravíssimo problema de saúde pública, cujas taxas vêm aumentando no Brasil. Mas não vou falar nada disso. Não quero dar tom racional a algo que não acho que seja. E essa também não é uma história que tenha um final, uma moral, um fim inspirador, conclusivo, norteador. Não é. É apenas um momento onde registro que entendo e apoio o fato de haver um dia como o de hoje, 10 de setembro, Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio. Embora não tenha subsídios suficientes para compreender como pode ser possível “prevenir” algo tão complexo e multifatorial como é o suicídio, entendo a importância de um dia como esse. A própria Organização Mundial de Saúde orienta e recomenda que aconteçam ações de prevenção ao suicídio e enfatiza que tais ações ocorram nos domínios da pesquisa, da redução do acesso aos meios letais, da melhoria dos serviços de atenção à saúde e do reconhecimento do sofrimento mental. Mas não fala em algo básico: AMOR. Não fala no tanto que alguém precisa ser amado e se sentir amado – coisas tão diferentes… E talvez não fale porque, em saúde, em pesquisa, em ciência, convencionou-se tratar apenas de dados mensuráveis e eis aí algo além de qualquer tentativa de mensuração e totalmente subjetivo: amor, ser amado, amar, sentir-se amado, amar de novo.

Então, nesse contexto de amor e de sua importância na prevenção do suicídio, deixo aqui uma sugestão de leitura. “Falando em suicídio“, um texto que está hoje no site da Rede Humaniza SUS, de autoria de Erasmo Ruiz, psicólogo, mestre e doutor em Educação, professor da Universidade Estadual do Ceará e consultor da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde. É desse texto o trecho que ressalto abaixo, tão significativo:

Talvez isso nos ajude a romper com essa idiotia coletiva que afirma a necessidade de vivermos em busca do acúmulo de dinheiro para depois gasta-lo todo com as doenças que conquistamos pelo esforço em torno do dinheiro ganho.  Talvez não conseguir viver no presente seja mais uma explicação fácil para aquilo que não é fácil de entender!

Estou finalizando uma mudança de casa, em meio a caixas e um  monte de bagunça. E, coincidentemente (ou não), reencontrei o CD que menciono aqui poucas horas antes de ler o texto que recomendo à leitura. Fiz questão de trocar o Jim Morrison que eu ouvia pelo Alceu. E me bateu uma saudade imensa.

Em tempo. Somente após ter escrito esse texto (inspirada pela leitura do texto que acabo de recomendar, que me trouxe tantas boas memórias de amizade) é que soube da morte – possivelmente por suicídio – de um músico brasileiro. Tenho estado afastada dos meios de comunicação em função da mudança e só soube disso agora há pouco. Minha escrita nada tem a ver com esse fato. Ou talvez tenha tudo a ver… Vai saber.

Com o sincero desejo de que as pessoas sempre escolham viver.

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