Andreia Mortensen já é bem conhecida deste blog e de quem busca informações sobre educação positiva, maternidade/paternidade ativa.
Além da dupla jornada de mãe e pesquisadora, ela dedica seu tempo a produzir e disseminar informação às famílias e profissionais que estão buscando dados, dicas, apoio e sugestões sobre como criar e educar crianças sem qualquer tipo de violência.

Recentemente, Andreia fez, juntamente com Taicy Ávila, a tradução de um texto bastante sério, de autoria de James Kimmel, falecido em 2001.

“Kimmel nasceu e cresceu em Nova Iorque. Doutor em psicologia pela New York University, trabalhou por 20 anos como psicólogo clínico e psicoterapeuta. Como psicólogo, Dr. Kimmel trabalhou em vários ambientes, incluindo centros pediátricos de um hospital de doenças crônicas, em hospital dedicado ao tratamento de doenças mentais, em centros residenciais e em sua clínica privada. Além disso, supervisionou o trabalho de terapeutas infantis e professores com crianças portadoras de distúrbios emocionais. Foi diretor de clínica para crianças autistas e psicóticas e co-fundador e diretor do centro “For Children – A Child Therapy Center”.
Pai de três filhos, aprendeu muito com eles: sobre ele mesmo, sobre desenvolvimento infantil e sobre o que significa ser humano antes de ser pai, e sobre como a cultura impõe suas ideias. Dr. Kimmel nunca bateu ou puniu seus filhos de nenhuma maneira. E enfatiza que todos foram amamentados. Ele dizia que seu envolvimento com seus três filhos e sua participação em seu desenvolvimento e criação até a vida adulta foi, com toda certeza, a experiência mais profunda de sua vida. 
Em 1971, Dr. Kimmel e sua esposa se mudaram para uma cidadezinha nas montanhas e, em 1978, para o estado de Nevada. Lá, tornou-se escultor, criador de brinquedos, poeta, autor e estudante de antropologia, comportamento animal e história da puericultura, maternagem/paternagem, e comecou a escrever livros (cujos títulos você encontra ao final deste texto).
Por meio de um trabalho que durou toda sua vida, ele concluiu que as maneiras convencionais de educar bebês e crianças promovem distúrbios emocionais, comportamentos antissociais e miséria em geral. Seus esforços na área da saúde mental tornaram-se uma devoção à prevenção de distúrbios emocionais na sociedade, ao invés de focar em problemas individuais. 
Você encontra mais textos do Dr. Kimmel aqui“.

Essa introdução, bem como todo o texto abaixo, também foi traduzido por elas.
Agradeço à Andreia, desde já, não somente por permitir sua publicação neste blog mas, principalmente, por todo seu trabalho junto às comunidades maternas, paternas e que visam a erradicação da violência à criança.
O texto que vem a seguir é bastante direto, claro e sem subterfúgios. É um texto escrito sobre a realidade norte-americana mas que pode ser aplicado, também, à realidade brasileira.
E é importante que se leia sem querer – como sempre tendemos a querer – o véu cor de rosa com que muitas pessoas cobrem realidades difíceis. As pessoas em nosso país violentam e agridem crianças como se isso fosse aceitável.
Não é. Nunca será.
E já passou da hora de falarmos sobre a realidade da maneira como ela tem sido para tantas crianças: dura.

Bater? Por quê? Hora de quebrar essa corrente!

Autor: James Kimmel

Tradução: Andréia C. K. Mortensen e Taicy Ávila

Quase todas as pessoas na sociedade ocidental concordam que é moralmente errado resolver ou impor seus argumentos na base da força física.
Quando uma criança bate em outra criança menor no parquinho, a chamamos de ‘bully’; cinco anos mais tarde, se ela bater e assaltar a carteira de uma mulher, o chamamos de trombadinha; ainda mais tarde, quando essa pessoa bate num colega de trabalho que o insultou, o chamamos de problemático, mas então quando se torna pai e bate no seu próprio filho, nós dizemos que ele o está disciplinando.

Por que esse degrau na escala de violência interpessoal é tão diferente dos demais?” – Penelope Leach (1).

Como psicólogo especialista em crianças com distúrbios e como pessoa que tem um carinho especial por crianças, perturba-me extremamente constatar que punições (sejam físicas ou não) são parte intrínseca da educação das crianças nos Estados Unidos.

Nenhum de meus filhos (agora adultos) foram castigados. Nunca.
Assim como as pessoas afirmam, “Apanhei e me tornei um cidadão do bem,” meus filhos podem afirmar, “Nunca apanhei ou fui punido de qualquer forma, e me tornei um cidadão do bem

E baseado no tipo de pessoas que são como adultos, concordo não somente que eles estão bem, como demonstram muito mais empatia com os outros, inclusive com seus filhos, do que a maioria de seus contemporâneos. E logicamente eles não batem em seus filhos.

Entretanto, não pretendo provar através dos meus filhos ou netos que castigos são totalmente desnecessários para crescer e virar uma pessoa que tenha empatia e esteja apta a viver em sociedade.

Nós JÁ sabemos disso a partir de estudos em outras culturas que não punem as crianças.

Ao invés disso, espero demonstrar que castigar crianças é um ato maldoso e prejudicial a elas e, ultimamente, à comunidade e sociedade em que vivem.

Um ser humano punindo o outro é um comportamento onde o punidor tem, ou acredita ter, o direito de machucar e violentar uma pessoa que ela considera ser socialmente inferior.


A utilização de castigos como método ‘educativo’ parece andar lado a lado com o desenvolvimento da civilização.
Uma pessoa que bate na outra como resultado de perda temporária de controle emocional não é considerado castigo.
O castigo é algo deliberado, pensado, um ato controlado com um propósito em mente. É claro que é terrível, preocupante e perigoso que, em nossa sociedade os pais percam o controle e abusem de suas crianças, física e verbalmente, e isso ser tolerado.

Entretanto, tal comportamento não é o tema desse artigo. Nossa sociedade, embora não faça muito para prevenir, não é abertamente conivente com o abuso infantil. Mas tolera abertamente punir e castigar crianças, física e psicologicamente. O que me incomoda muito na questão da punição é que há um esforço consciente de machucá-las física e/ou emocionalmente.

Acho muito difícil de entender – mesmo quando justificam que a punição é ‘educativa’ e que se está ensinando a criança a se comportar apropriadamente – porque alguém escolheria, deliberadamente, magoar a vida que eles próprios contribuíram para sua criação (ou que escolheram cuidar via adoção).

Também acho inacreditável que pais, profissionais de saúde mental e física, de desenvolvimento infantil e moralidade humana, não consigam perceber que, ao ferir crianças, estamos ensinando-as que é moral e certo ferir outros seres humanos.


As origens do castigo

É provável que os castigos tenham se desenvolvido inicialmente em nossa espécie como um método para controlar e direcionar o comportamento de animais, batendo neles.

Mais tarde isso foi aplicado por humanos em outros humanos para controlar comportamentos e pensamentos individuais.

O fato de que punições modificam comportamento é bem estabelecido.
Pesquisas científicas em ratos e outros animais indicaram claramente que, ao infringir dor, podemos controlar o que fazem e não fazem (Bermant). Fazendeiros e treinadores de animais já sabem disso há milhares de anos.


O pensamento humano também pode ser alterado por castigos e isso tem sido utilizado através da civilização por monarcas, ditadores, donos de escravos, governantes e instituições religiosas para controlar indivíduos que não se enquadrem às regras.

Não sabemos quando o uso de castigo foi usado pela primeira vez como método para direcionar o desenvolvimento de crianças.

Eu nunca soube de uma sociedade menos inserida na civilização (tribos coletoras e caçadoras) que usasse de castigo para com suas crianças como parte da educação. 

Em sociedades mais antigas, e através da história da civilização, punir as crianças é uma prática comum (deMause), e a prática continua até hoje na maior parte do mundo civilizado, sendo percebida com prática legítima e apropriada de disciplina (deMause, Beekman).


Sua legitimidade nas relações humanas tem poucos paralelos na sociedade ocidental, especialmente desde a abolição da escravatura.

Com exceção de crianças, somente criminosos condenados podem ser legalmente castigados. Mas crianças sequer têm os mesmos direitos que criminosos, pois elas podem ser condenadas e punidas sem julgamento.

O paralelo mais próximo com a punição de crianças seriam as punições aplicadas para domesticações e treinamentos de animais jovens para que sirvam, se submetam e nos entretenham.

Quando punimos crianças, estamos perpetuando nas civilizações ocidentais a crença de que as crianças são, como animais, seres inferiores que precisam ser treinados, domados e controlados.

Castigo e desconfiança

Obviamente que a decisão, sentimento de necessidade ou compulsão de punir outra pessoa reflete uma falta de confiança naquela pessoa, seja na relação entre o governo e seus cidadãos, tiranos e indivíduos, donos de escravos e escravos, guardas e prisioneiros, professores e estudantes ou pais para com filhos.

Os defensores da punição infantil (incluindo até ‘especialistas’ em desenvolvimento infantil) têm uma visão condescendente e feia sobre crianças que está imersa numa visão mais feia ainda da espécie humana.
Seres humanos não são, aos seus olhos, uma espécie naturalmente afetuosa e empática mas, sim, uma espécie em que o indivíduo já nasce antissocial e age somente movido por egoísmo e egocentrismo. Ainda, acreditam que as crianças resistem à socialização e que, portanto, é preciso que adultos imponham isso a elas.

A qualidade da confiança básica, como originalmente formulado pelo psicólogo Eric Erikson, é a fundação para uma personalidade saudável (Evans). Isto significa que, para Erikson e seus seguid
ores, é durante o primeiro ano de vida que o bebê aprende que pode confiar no fato de que suas necessidades básicas serão atendidas por seus cuidadores. A partir desse sentimento de segurança básico é que o bebê aprende a confiar em si mesmo e no mundo.

Eu prefiro descrever a confiança básica como a experiência do bebê ou da criança pequena de saber que há alguém ali tomando conta dele: que garantirá sua vida e seu bem estar, que cuidará e se responsabilizará por um relacionamento de atenção que foi programado (genética e biologicamente, através da evolução) para ser ofertado após o nascimento. Sem tal experiência no primeiro estágio da vida, um bebê não desenvolve totalmente a confiança nos outros, confiança que é essencial para um desenvolvimento emocional e social saudável do ser humano.

A necessidade do bebê de desenvolver essa confiança básica em seus cuidadores tem sido aceita por praticamente todos os especialistas em saúde e puericultura. Talvez não seja sempre expressa nesses termos, e nem sempre é alcançada, mas nós parecemos saber que bebês e crianças precisam de “amor”. Por outro lado, muito menos ênfase tem sido dada à necessidade dos pais de desenvolver uma confiança básica em seus filhos.

Eles podem amá-los, mas… confiam neles?

Na verdade, muitos especialistas americanos em puericultura espalham a mensagem de que crianças, incluindo bebês, não são confiáveis. Bebês e crianças pequenas são frequentemente retratados como sendo seres manipuladores e que desejam que a vida dos pais seja miserável, como se sua vontade e necessidade de estar com os pais, e de receber afeto deles, não fosse genuína (Spock, Turtle).



Não acredito que confiança genuína possa se estabelecer numa relação, a menos que AMBAS AS PARTES confiem uma na outra. Na relação entre pai e filho, a criança aprende a confiar em seus pais conforme suas necessidades de afeto e cuidados vão sendo regularmente atendidas. Mas o desenvolvimento dessa confiança só pode acontecer se as respostas dos pais à criança forem baseadas na crença de que as solicitações de atenção são verdadeiras, de que a criança não está somente ‘fazendo manha’ e não está dificultando a vida de seus pais de propósito.

Sentimentos de tristeza, melancolia e uma batalha de forças frequentemente se tornam parte da relação entre pai e filho, especialmente numa sociedade como a nossa, que não confia e não valida as necessidades afetivas das crianças.

Se a relação entre pai e filho se torna uma guerra sem fim, não é porque a motivação da criança é de castigar seus pais, mas porque suas necessidades de afeto não foram atendidas.

É verdade também que uma criança, conforme se desenvolve, pode começar a se comportar de modo a punir seus pais, mas isso só ocorre quando seus pais o puniram frequentemente antes.

O uso de castigos por parte dos pais é uma indicação clara de que houve um desenvolvimento insuficiente de confiança entre pai e filho nos primeiros anos de seu desenvolvimento.
A maioria dos pais americanos castigam seus filhos.
A maioria também começou a castigar e a ameaçar castigar geralmente bem no início da infância. Então essas crianças cresceram acreditando que foram merecedoras dos castigos e que eles foram pessoas ruins, que não mereciam confiança.

Muitos desses adultos que não tiveram como desenvolver a fundação da confiança, não confiam, ou até não gostam, de si mesmos. Consideram suas necessidades, especialmente as afetivas (necessidades de amor, carinho, intimidade), como ‘ruins’, como egoísmo, luxúria, maléficas, e se consideram um peso na vida dos outros.
Alguns passam a vida toda se sentindo culpados em relação a seus pais.
Frequentemente, iniciam comportamentos de auto-destruição na adolescência, punindo-se por darem tanto trabalho a seus pais, por terem nascido, por estarem vivos.

Maneiras mais comuns de punir crianças

Castigos corporais na forma de palmadas (até na primeira infância) são a forma mais comum de punição infantil nos EUA (palmadas, tapas e bofetões com a mão).
Bater com instrumentos vem em segundo lugar.
O site de notícias NBC relatou que cerca de 90% dos pais americanos batem em seus filhos. E mais, um relatório feito em 1992 mostrou que 59% dos pediatras americanos apoiam a prática.
É importante reconhecer que em nossa sociedade a maioria dos pais e muitas ‘autoridades’ em puericultura não consideram palmadas como agressão ou castigo físico.

Por uma negação magnificente da realidade, palmada é frequentemente chamada de “toque de amor” ou “tapinha’ ou “palmadinha” ou “lembrete amoroso”.

Já que as palmadas têm sido tradicionalmente administradas nos EUA em quase todas crianças por gerações, são consideradas parte natural de crescer, assim como se alimentar.

Outros métodos bizarros de castigo corporal, como queimar a criança com fogo ou ferro, fazê-la se ajoelhar em objetos duros, ou forçá-la a ficar de pé por muitas horas, são menos comuns do que já foram, mas ainda são praticados atualmente.

Não sabemos o quão são utilizados, nem sabemos o uso de outros tipos de torturas físicas. Através da civilização, até bem recentemente, houve vários tipos de itens produzidos e comercializados para punir crianças, como chicotes, o notório ‘gato de 9 caudas’, gaiolas e vários dispositivos restritivos, como algemas.

Como esses produtos não são mais vendidos abertamente, podemos pelo menos ter esperança de que não são mais usados para castigar crianças.

Enquanto muitos países atualmente proíbem o uso de castigos físicos em crianças, somente a Aústria e os país
es escandinavos baniram completaente qualquer tipo de punição.

Por outro lado, nos EUA, o castigo corporal em crianças por seus pais é legal e praticado comumente. Também é aceito e legalizado no sistema educacional, mesmo sendo proibido em escolas de todos os outros países industrializados.
Os EUA, Canadá e um estado na Austrália ainda continuam com a prática de bater em crianças nas escolas. Trinta e um estados americanos baniram castigos corporais em escolas, mas os outros 23 continuam a permitir que professores batam e usem a palmatória nos estudantes quando acharem necessário.

Como nação, somos muito lentos na compreensão dos efeitos prejudiciais que as palmadas produzem nas crianças, e continuamos a defender nosso ‘direito’ de bater nelas. Não parecemos estar preocupados com o fato de que as palmadas e outros tipos de castigos físicos criem uma nova geração que, por sua vez, continuará a machucar fisicamente suas crianças. Baseados na crença do valor do castigo corporal nós estamos, na verdade, encorajando nossos filhos a bater nos nossos netos.

É assustador saber que muitos pais, educadores e outros envolvidos em cuidados infantis devolvem às crianças as imposições físicas cruéis que receberam em sua própria infância de seus pais. Mas mais assustador ainda, para mim, do que a passagem da crueldade física de geração para geração, é a perpetuação da crença de que punir as crianças é necessário para educá-las. Até pais e pedagogos que não acreditam em castigos corporais fazem uso de outros tipos de castigos como “cantinho da disciplina” e “consequências lógicas”. Embora muitos desses métodos, que são designados a fazer a criança se comportar, são vistos como modos apropriados de disciplinar crianças. Eles são, na verdade, castigos, onde o propósito é fazer com que a criança obedeça as regras dos pais através da imposição de poder e autoridade.

A seguir, algumas das maneiras que são frequentemente usadas para punir crianças.

Importante dizer que esses métodos NÃO foram originalmente ou especificamente criados como ferramentas para ajudar os pais a fazerem seus filhos se comportarem apropriadamente. No geral, foram métodos emprestados dos métodos tradicionais usados para punir adultos que cometeram crimes ou violaram leis, regras, costumes ou convenções de comportamento.


Isolamento e confinamento
Isolamento e confinamento geralmente andam de mãos dadas. A criança é ordenada a ir para seu quarto, ou obrigada a ficar de pé, ou sentar em um canto e geralmente não tem permissão para estar ou se comunicar com alguém. O tão popular “time-out” ou “cantinho do pensamento”, é, claramente, confinamento, e também isolamento, no caso da criança ter que ficar sozinha durante o tempo do time-out”.
Outras formas discutidas menos abertamente que esse tipo de punição são práticas de amarrar ou acorrentar a criança, trancá-la em quartos, armários, carros, garagens ou outras áreas de confinamento. 
Em geral, isolamento e confinamento são feitos por um período breve. Entretanto, não é incomum que esse período se estenda por dias, semanas, ou até meses.



Basicamente, isolamento e confinamento passam a mensagem à criança de que ela é inferior e inadequada para estar com outros humanos.

Muitas crianças, se são frequentemente punidas dessa maneira, irão acreditar que são diferentes ou inadequadas quando comparadas a outras crianças que não parecem requerer ou receber esse tipo de banimento da sociedade. É muito comum, conforme eles crescem e amadurecem, que essas crianças passem a agir de acordo com o que elas foram levadas a acreditar sobre si mesmas.

Privação
Outro método usado para tentar ensinar crianças a se comportarem é privá-las de coisas. A maioria das crianças não vão mais para cama sem jantar, mas têm privilégios negados. Itens frequentemente negados incluem sobremesa, doces, brinquedos, mesada, TV, música, filmes, carro, telefone, amigos, ou qualquer coisa que a criança goste e lhe seja importante. A duração de tempo da privação varia bastante, dependendo de, entre outras coisas, a família, a natureza do mau comportamento e da idade da criança. Mas todas as formas de privação – não importando por quanto tempo – ensinam à criança que seus pais têm o poder de fazer suas vidas miseráveis ao tirar delas coisas que lhe importam, lhe tem significado. Quem iria confiar em alguém com tanto poder?

‘Grounding’ (sem tradução para o português)
‘Grounding’ é um termo que provavelmente se originou na comunidade de aviação, onde, por má conduta, doença ou por outras razões, um aviador é proibido de voar. Nesses casos, diz-se que ele está “grounded” (aterrissado, preso ao chão).

Grounding é semelhante em vários aspectos ao castigo de privação e confinamento, mas é muito pior. O foco aqui é proibir atividades fora de casa, mais do que negar o que é externo e material. A criança fica confinada em casa, ao invés de confinada em um quarto da casa, e não tem permissão para fazer coisas e ir a lugares, ela está “grounded” (presa ao chão), como um barco está na doca, imóvel, temporariamente “fora das atividades”. A criança perdeu, por algum tempo, liberdade de ir e vir, liberdade de estar plenamente viva e de crescer. 

O castigo de ‘grounding’ é, ironicamente, uma forma majoritária de ensinar crianças a serem desobedientes e desafiadoras, porque geralmente ataca a vida e o crescimento em relação aos que estão próximos.


Uma pessoa pode tolerar, por algum tempo, passar fome e ser aprisionada. Por outro lado, é muito mais difícil perder a liberdade de ir e vir, de ser e estar, principalmente para as crianças. A incerteza desse tipo de punição (quanto tempo durará) torna muito mais difícil lidar com isso, o que em alguns casos faz o castigo mais efetivo ainda.

Ignorar a criança

Altamente recomendado como maneira de controlar o comportamento da criança, até por especialistas em educação supostamente liberais e progressivos (Spock, Salk), é o castigo de retirada de afeição. Para mim é um mistério entender quando seria necessário que um pai fizesse isso conscientemente, porque a retirada de atenção ocorre automaticamente (pelo menos temporariamente) para a maioria das pessoas (incluindo a criança) quando alguém faz algo que  não se gosta ou que machuca.

Uma perda momentânea de afeição entre duas pessoas é parte natural das relações humanas e serve para comunicar ao companheiro/a o que nós, como indivíduos, gostamos ou desgostamos. Humanos são capazes de melhorar sua comunicação não-verbal com linguagem. Entretanto, mesmo sem linguagem, a mensagem é passada.

Bebês comunicam seus gostos e desgostos muito bem, mesmo sem uma linguagem verbal totalmente desenvolvida. Isto é, SE eles tiverem alguém que esteja lhes ouvindo e lhes assistindo de fato.

A comunicação de sentimentos positivos e negativos é algo importante que nossa espécie aprendeu para viver e colaborar uns com os outros. É uma parte essencial do processo de desenvolvimento humano. Mãe e criança estão constantemente se acomodando uma à outra: encontrando posições confortáveis para ambas para amamentar e para carregar, lidando com mordidas no seio conforme a criança está ganhando dentinhos, acomodando as capacidades mutantes da criança conforme seu desenvolvimento, o nascimento de um irmão, e, desde o nascimento, os valores culturais e prioridades dos pais.

Sentimentos de afeição e a ausência de tais sentimentos são reações espontâneas nos relacionamentos humanos. Quando afeição é conscientemente retirada como maneira de controlar/chantagear o outro, estamos lidando com um tipo diferente de interação humana do que a relação integrativa descrita no parágrafo anterior. Quando exploramos a vulnerabilidade emocional de outra pessoa, não estamos agindo integralmente mas, sim, com a alienação da outra pessoa.


É um uso desonesto de amor. É falso amor.

A retirada proposital de afeição por parte de um pai, para conseguir que a criança se comporte da maneira que esse pai deseja, é simplesmente um modo de explorar a necessidade que a criança tem de afeição/atenção do pai. É tratar amor e carinho como uma mercadoria que pode ser dada ou retirada toda vez que o pai quiser. Assim, carinho e atenção se tornam uma ferramenta poderosa de chantagem, e não mais uma emoção.


Quando a retirada de atenção e amor é feita regularmente e propositalmente, como modo de castigar as crianças, a capacidade humana de amar, cuidar e confiar em outra pessoa fica prejudicada. A necessidade crítica que a criança tem de amor, segurança e proteção do pai e da mãe foi abusada.


Outras formas comuns de castigar crianças
Há, claro, várias outras formas pelas quais crianças têm sido e continuam sendo punidas além das listadas aqui. Não mais punimos adultos com chicotadas em público ou os expondo à humilhação pública, colocando-os num pelourinho, ou no tronco, ou na cadeira de afogamento.
Mas crianças ainda são punidas, às vezes extremamente e intencionalmente, incluindo humilhações em público. É considerada educação apropriada fazê-las sentir vergonha de seu comportamento e humilhá-las na frente de todo mundo. Obrigar a criança a usar chapéu da vergonha (chapéu em forma de cone), a vestir e carregar sinais que exibem seu mau-comportamento (inclusive em redes sociais) ainda são práticas usadas por pais, professores, diretores de escola, embora não tanto como no início do século.


Abuso verbal, ridicularizar e humilhar a criança, em casa ou em público, são métodos comuns usados por pais e outras figuras autoritárias para fazer a criança se sentir mal em relação a elas mesmas e seu comportamento.

Outro método comum de punir crianças é assustá-las. Elas são ameaçadas com figuras e criaturas como monstros, bicho papão, mula sem cabeça, o diabo, animais, inferno e tudo quanto é tipo de coisa que os humanos conseguem inventar para aterrorizar crianças para que elas lhe obedeçam. Essa forma de tortura mental é a preferida de muitos pais porque dessa forma não é o pai que faz o ‘serviço sujo’. Não é o pai que aterroriza e fere a criança, mas sim outra pessoa ou outra coisa.

Ainda, outro tipo de castigo muito comum, que até parece inofensivo à primeira vista, é dar tarefas novas ou adicionais como castigo para “mal” comportamento. Claro, esse tipo de castigo não é tão inofensivo se as tarefas são árduas ou tão longas que machucam fisicamente a criança. E, ainda, se as tarefas não permitem que a criança faça outras coisas que lhe são prazerosas; aí, então, a criança está recebendo castigo duplo, o que não somente é injusto, mas duplamente doloroso.
Mandar as crianças fazerem tarefas como castigo pode fazer com que elas se ressintam e detestem fazer tarefas em geral que são parte do dia a dia e que precisam ser aceitas como oportunidades de aprendizado, de trabalho, de cuidado com elas mesmas e com outros. Castigo-tarefa pode não ferir a criança tanto quanto outros castigos, mas, como todos os castigos, ensina a criança que tudo bem impor seu desejo a outro, se você acredita que a causa é justa.

Castigos e alienação pai-filho
Acho muito estranho quando pais que punem seus filhos não reconhecem que não somente os estão prejudicando como, também, estão de fato prejudicando a relação entre eles. Mas talvez reconheçam esse fato. Talvez por isso utilizem tanto a afirmação: “Isso dói mais em mim do que em você”,, que é usada com tanta frequência como parte do ritual do castigo.

Castigar outra pessoa intencionalmente faz com que a pessoa tenha medo, desconfiança do castigador, especialmente se a pessoa castigada e ferida indica claramente que tem o DIREITO de castigar a vítima e que continuará a castigá-la sempre que achar necessário.

Castigar crianças as distancia de seus pais e aumenta a desconfiança naqueles quem deveriam cuidar delas, prover segurança e sentimento de pertencimento a esse mundo. Crianças, pelo fato de serem dependentes dos pais para tantas coisas essenciais, geralmente têm muito pouca escolha, mas aceitam a realidade de suas vidas com castigos e dor com
o parte de seu relacionamento com seus pais.

Entretanto, conforme vão crescendo, as crianças que são castigadas têm mais chance de mentir , não confiar e esconder seus comportamentos de seus pais, em comparação com crianças que não são castigadas. Esse fenômeno não é parte normal do crescimento, da aquisição de independência, mas sim um reflexo do fato de que essas crianças não confiam que seus pais serão compreensivos, terão empatia ou os tratarão bem (ou seja, em muitas circunstâncias, elas não têm certeza do amor incondicional de seus pais).

Os castigos que essas crianças receberam quando eram mais novas lhes ensinou que quando se comportam de maneira problemática, sua integridade pessoal e direitos como pessoa serão ignorados, violados e desrespeitados por seus pais.

Receberam a verdadeira mensagem dos castigos, ou seja, aprenderam a banir os comportamentos que parecem ser negativos, ao invés de tentar entendê-los.

Castigar funciona?
Bater em crianças funciona?
Definitivamente, ajuda os pais a acreditarem que estão controlando a criança. Eles conseguem descansar um pouco, até a próxima travessura. Castigos modificam o comportamento da criança? Sim, mas somente por um período curto de tempo. Geralmente, as crianças continuarão a fazer as mesmas coisas que fizeram e foram punidas, se conseguirem esconder o ‘erro’.

Um dos problemas de castigar crianças para ensiná-las comportamentos apropriados, além de infringir-lhes dor, é fazê-las se sentirem fracas, impotentes e incapazes. Castigos ensinam as crianças a procurar uma autoridade externa para decidir como elas devem se comportar, ao invés de olharem para si mesmas. Elas não aprendem, em colaboração com outros, a fazer escolhas, elas não aprendem como decidir o que é bom para elas e para quem lhes é importante. O que elas aprendem, ao invés disso, é se submeter a uma autoridade e poder, a obedecer.


Ao ser castigada e tratada como um ser inferior, a criança se torna um ser inferior – ela não desenvolve o poder de um indivíduo humano de amar e de confiar. 

Crianças que são castigadas frequentemente aprendem a ter medo de seus pais. Aprendem os comportamentos que seus pais gostam e não gostam e, também, aprendem a esconder esses comportamentos de seus pais. Elas desenvolvem comportamentos ‘apropriados’ não por escolha, mas por medo.

Algumas crianças que são castigadas desafiam seus pais abertamente. Essas geralmente acabam em problemas piores com seus pais e, mais tarde, com autoridades. A maioria das crianças, entretanto, se submete. Para se proteger do poder parental, desenvolvem uma pose social ‘boa’, submissa à autoridade, onde esconde seus maus comportamentos, pensamentos e sentimentos impróprios secretamente.

Seu comportamento social não é verdadeiro porque tem muito pouco a ver com o que eles realmente são.

Uma vez que estão fora do domínio autoritário, adotam novos comportamentos e novos códigos que são consistentes com os valores e prioridades dos colegas. Eles vão em qualquer direção que o vento soprar para evitar reprovação e para ganhar aprovação. A falta de respeito que seus pais tiveram por eles os impediu de desenvolver respeito por si próprios.

Por que batemos em nossos filhos
A pergunta que precisa ser feita é porque temos tanta facilidade de bater e castigar nossos filhos para que se comportem – os tratamos como criminosos, escravos e animais. Claro, estamos em parte seguindo as tradições culturais onde se tratou a criança por séculos de civilização. Mas não é só tradição. No século passado, através de pesquisas e estudos, aprendemos muito sobre desenvolvimento social e emocional e saúde mental infantil. Nada disso é segredo ao público. A maioria até reconhece e aceita que o que acontece com a criança em sua infância tem muito a ver com o tipo de pessoa que se torna quando adulto.

Mas mesmo assim, continuamos a castigar as crianças. Não vemos o mal que estamos fazendo? Por que não paramos conscientemente de bater em nossos filhos?

Para alguns pais, cujos próprios castigos sofridos na infância foram acompanhados de raiva, ódio e sadismo, castigar os próprios filhos é uma oportunidade de infringir dor legalmente em outro ser humano – uma chance de retribuir por toda dor que sofreram.
Mas para a maioria dos pais é apenas uma maneira de controlar o comportamento, como o fizeram em sua própria infância. É uma questão de ignorância, de passar para frente um comportamento maldoso e  inapropriado que eles próprios aprenderam a aceitar como apropriado em suas infâncias. Estão agindo conforme a crença de que é certo bater em criança para atingir seus fins. Defenderão essa crença de que seus pais estavam certos em lhes castigar, que estão certos por castigar seus filhos e que seus filhos estarão certos ao castigar seus netos.

Muitos pais dizem: “Afinal, como vou conseguir que ele se comporte?”

E assim, mesmo que lhe digam ‘como’ (educar sem bater) muitos continuarão a castigar e bater em seus filhos.

Em um nível psicológico e social mais profundo, pais que castigam seus filhos o fazem porque as crianças os deixam ansiosos ao confrontarem comportamentos e sentimentos que eles próprios tiveram que aprender a esconder, a suprimir, reprimir e renegar. Eles sentem que TÊM que condicionar seus filhos do mesmo modo que foram condicionados.

Filhos põem em risco nossa identidade, nossa segurança, nossa realidade.
Batemos neles para eliminar esse risco de que seu comportamento irá nos afetar.



Então, é mito que punimos crianças para seu próprio bemAs punimos para NOS sentirmos seguros.

Nossos filhos têm o poder de trazer à tona sentimentos de felicidade e amor. Têm também o poder de nos trazer medo, raiva e vergonha. Quando as castigamos, crianças aprendem a não confiar e a ter medo de seus pais. Fora isso, crianças e pais não aprendem NADA. Ao usar de castigos como ferramenta de disciplina, perpetuamos a aceitação do uso da força e poder sobre outros. Ao mesmo tempo perpetuamos nossa ignorância e nossos medos. Usamos castigos para parar comportamentos ao invés de ter a coragem de confrontar o comportamento e entendê-lo!

Ao lidar abertamente com as causas do comportamento da criança, ambos, pai e filho, têm a oportunidade de conseguir uma visão melhor e mais realista das ações da criança, e qualquer perigo potencial para a criança e/ou pai.

Nós evoluímos para PROTEGER as crianças dos perigos, não para machucá-las.

A crença que nossa sociedade tem de que punir a criança a tornará um ser humano decente revela nossa ignorância e alienação do processo de socialização que é normal e natural em nossa espécie.
Tornamo-nos seres sociais honestos a partir de relações de afeto e empatia e não de relações dolorosas.


Alienados de nossas próprias necessidades de afeto e endurecidos desde o nascimento vivendo numa sociedade que não cuida e que não dá afeto,
ensinamos nossas crianças que punir é educar, é ajudar a crescer bem e a se tornar uma boa pessoa.
Não entendemos que castigos não ensinam habilidades sociais.  Que o que os castigos fazem é meramente ensinar-lhes a se ajustar numa sociedade que separa um indivíduo do outro – uma sociedade que não está baseada na capacidade humana de afeto e empatia, mas na ausência desses.

Punir nossos filhos sabota os sentimentos que evoluímos para oferecer: carinho e proteção. Destrói a unidade pai/filho(a), mãe/filho(a). Nos ensina a violar os direitos dos outros. E, como prática socialmente aceita na educação, prejudica e insulta a espécie humana.

(1).  Leach, Penelope. Children First.New York: Alfred A. Knopf, 1994, p. 125.

Referências  
Beekman, Daniel. The Mechanical Baby. Westport, CT:Laurence Hill, 1977.
Bermant, Gordon, ed. Perspectives on Animal Behavior.Glenview, Il: Scott Foresman, 1973.
Center for Effective Discipline. “Corporal PunishmentFact Sheet”. Columbus, Ohio: 1998.
deMause, Lloyd. The History of Childhood. New York:The Psychohistory Press, 1974.
Evans, R. I. Dialogue With Eric Erickson. New York:E. P. Dutton, 1969.
Leach, Penelope. Children First. New York: Alfred A.Knopf, 1994.
Neill, A. S. “Freedom Works.” Children’s Rights. Ed.Paul Adams. New York: Praeger, 1971.
Salk, Lee. How to Raise a Human Being. New York:Random House, 1969.
Schwartz, Theodore. Socialization as Cultural Transmission.As quoted and referenced in Nanda, Serena. Cultural Anthropology.Belmont, CA: Wadsworth Publishing, 1987. 131.
Spock, Benjamin. Common Sense Book of Baby and Child CareNew York: Simon & Schuster, 1957.
Turtle, W. J. Dr. Turtle’s Babies. New York: W. B. Saunders,1973.

Livros de autoria de Dr. Kimmel:

  • Balloons – Livro de poesias
  • Nurturance and Alienation (não publicado, completo em 1982)
  • Whatever Happened To Mother? – A Primer For Those Who Care About Children
  • So They May Walk The Good Road – Caring for Children in the Human Way (1997)
  • Psychopathic Parenting (1998)

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