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Há algumas semanas, a chefe de cozinha Bela Gil causou grande polêmica nas redes sociais por ter recomendado a utilização de cúrcuma como substituto aos cremes dentais utilizados na escovação diária. Cheguei a publicar uma nota na página do blog no Facebook com minha opinião pessoal sobre o assunto, caso você queira saber.
Para além de toda a polêmica e dos ataques agressivos que Bela recebeu, o episódio poderia ter sido utilizado para discutir algo de extrema importância: a saúde bucal das crianças. Ou melhor: a saúde bucal de todos nós.
Afinal, o que é de fundamental importância na prevenção dos problemas de saúde bucal? Escovação? E o flúor, como fica? Como podemos cuidar melhor da nossa saúde e da saúde bucal das crianças? O que estamos esquecendo de mencionar?
Para falar sobre isso, convidei a odontopediatra Liziane Oliveira para nos explicar um pouco melhor de que maneira podemos e devemos cuidar dos dentinhos das crianças. Ou melhor, de que maneira podemos e devemos cuidar melhor da saúde global de todos nós, inclusive das crianças, a fim de nos protegermos de problemas bucais que poderiam ser evitados. Liziane é minha amiga pessoal e confio nela. Com o mesmo amor com que minha dentista cuida de mim quando meus dentes precisam de maior atenção, Liziane cuida dos dentinhos da Clara, minha filha, que tem 5 anos. Clara precisou de um atendimento específico no início deste ano e isso me gerou uma certa ansiedade. Pura projeção: como eu não gostava de ir ao dentista quando era criança, achei que ela também não gostaria. Pois ela foi, adorou e sempre pergunta quando vai voltar. Isso tudo porque sentiu o carinho e cuidado com que foi tratada. Agradeço desde já à querida Liziane por ter se disposto a falar sobre o assunto. Esperamos que esse texto possa auxiliá-los e às suas crianças de alguma forma.

Saúde bucal infantil: escovação sim. Mas e o que mais?
Por Liziane Oliveira – odontopediatra

O que vem à sua cabeça quando se fala em cuidados com os dentes das crianças? Se você pensou em escovação, vamos ter que “baixar uma atualização do sistema” e incluir mais uma palavra: ALIMENTAÇÃO. E ela deve chegar antes da primeira: ALIMENTAÇÃO e ESCOVAÇÃO. Não por uma ser mais importante que a outra, mas pela primeira determinar a dificuldade da segunda.

Escovar 3 vezes ao dia já é uma máxima internalizada no senso comum. Porém, o mais preocupante é a dificuldade de desmascarar o véu do marketing e da mídia em cima de produtos supostamente saudáveis e que na realidade são grandes “venenos” disfarçados. Alguns exemplos bem fáceis são: os cereais matinais – que de cereal tem pouquíssimo e sobra carboidrato e sacarose; o leite de soja, cuja ingestão diária pode promover desmineralizações severas do esmalte, além de conter uma quantidade absurda de açúcar; os iogurtes infantis e leites fermentados, que são os de maior paladar doce e normalmente têm mais corantes que os de adulto; rótulos que estampam “vitaminas” em bolachas recheadas que mais prejudicam que beneficiam…

Infelizmente, como no Brasil não há normatização sobre a apresentação e qualidade dos alimentos infantis, podendo ser estes, ainda, vinculados a personagens (esse assunto é bom, mas não é nosso foco agora), ainda temos que travar lutas diárias com os filhos nas gôndolas do mercado, driblando essa armadilha e os clássicos alimentos nocivos, balas, caramelos, pirulitos…
Então, quando a gente entra no assunto lanche das crianças, o que não tem erro é pensar sempre nos alimentos in natura ou minimamente processados, como frutas, cereais em grão ou flocos, fazer leite vegetal com amendoim, amêndoa, entre outras sementes e deles fazer outras receitas. E água, muita água! A lista completa desses alimentos está no Guia Alimentar da População Brasileira. Consulte-a sempre!

E para te dar uma forcinha, te dou algumas dicas muito básicas. A começar por sempre prestar atenção no que se come como hábito e não como necessidade, além de observar os seguintes pontos:

A QUALidADE DO ALIMENTO: quanto mais sacarose, mais processado e industrializado, maior a formação das moléculas de glicose, portanto, pior;
A CONSISTÊNCIA: quanto mais pegajoso ou retentivo, pior;
SOBRE OS LÍQUidOS: cuidado com sucos disfarçados de saudáveis. Muitos possuem grande quantidade de açúcar para conservar e/ou conservantes que acidificam. Sobre refrigerantes? Fuja! Entre outros prejuízos, eles corroem o esmalte. O ideal, sempre? ÁGUA! Sempre água. Água lava, neutraliza, aumenta saliva! É ouro!

Já se perguntou por que todo profissional de saúde sabe tratar a doença, mas nem todos se saem tão bem em promover saúde? Isso me intriga… Tão importante quanto combater a doença e preparar e empoderar o paciente a fim de que ele mantenha sua saúde. No caso da saúde bucal, o desequilíbrio se dá quando a pessoa se alimenta mal e/ou quando a placa formada pelos restos alimentares e as bactérias, que é chamado de biofilme, não é bem removida ou, pelo menos, desorganizada pela higização com escova de dentes. E tão importante quanto ter qualidade na alimentação, escovar os dentes e usar fio dental: manter intervalos entre a alimentação. E isso todo mundo precisava saber, embora tão poucos sejam orientados sobre: é o processo DES-RE!
Vamos lá, acompanhem comigo:

– Nós nos alimentamos.
– As bactérias se aglomeram no esmalte com os restos do alimento e produzem ácidos.
– O pH da saliva baixa, o que significa que fica tudo mais ácido por ali.
– Como o esmalte do dente (camada superficial) é muito mineralizada, os íons positivos (Lembram? Do ensino médio? Que você achou que nunca mais fosse usar?), como o fósforo, cálcio e outros, pulam para saliva com pH negativo pra manter o equilíbrio (um processo de manutenção do equilíbrio chamado homeostase).
– O esmalte, por perder esses minerais, fica DESmineralizado.
– Cerca de 3 horas depois, o pH neutraliza por volta do valor 7 e os tais íons positivos voltam a REmineralizar o esmalte.

Pronto, tudo como antes. Isso é fisiológico, absolutamente normal e ocorre após toda e qualquer ingestão de alimento. O que faz o processo desequilibrar? Comer “beliscando”. Isso faz com que mais íons positivos partam do esmalte sem que os anteriores sequer tenham retornado… E vem daí, inclusive, a fama de pessoas de terem “DENTES FRACOS”. Sabe o que é isso, na verdade? Isso se chama HÁBITO. Ou seja, é o hábito alimentar da pessoa, adulto ou criança, que a deixa mais ou menos propensa ao enfraquecimento dental… Viu que curioso? E como hábito dá pra mudar, então também dá pra mudar essa propensão.

Quando Bela Gil sugeriu o uso de cúrcuma para escovar os dentes, a publicação teve grande repercussão e grande parte dos colegas da classe odontológica a viram como negativa. A principal falha foi ter sido generalista demais. Não se pode recomendar algo desconsiderando o perfil dos hábitos alimentares dos brasileiros. De qualquer forma, foi válido pela abertura de espaço para discussões fundamentais, como sobre a real necessidade e pertinência da fluoretação dos cremes dentais e água de abastecimento e também sobre a possibilidade de manipulação de dentifrícios caseiros fitoterápicos, com as devidas orientações profissionais.

E o creme dental, onde entra no equilíbrio da saúde bucal? Como coadjuvante que facilita a retirada daquela placa de alimento e bactérias que se depositam sobre o esmalte. Se você estiver mantendo equilibrada sua saúde e a saúde das crianças, qualquer creme dental poderia ser utilizado. Claro, é preferível um que seja adstringente, levemente abrasivo e.. o que mais? Aí depende. Depende da orientação individualizada de um cirurgião-dentista, que vai avaliar se o risco pessoal ou a presença de alguma possível doença bucal, tal como cárie e/ou gengivite. Nesses casos, é possível inclusive que ele indique outros produtos
que ajudem no controle da microbiota, na remineralização, no combate à inflamação, etc… A cúrcuma, mencionada por Bela Gil, é muito usada na Índia e por indígenas da Amazônia. Tem uso na medicina tradicional como antiinflamatório de mucosas e alguns trabalhos científicos a apontam com ação antimicrobiana para Streptococcus mutans, bactéria causadora da cárie. Mas tudo isso não reflete nossos hábitos diários, no contexto brasileiro. Daí ser tão sério se recomendar algo de maneira generalista. O mesmo vale para outras espécies vegetais. Isso sem falar no elemento flúor! Esse é um assunto tão complexo que daria um bom artigo só para ele, sobre seu mecanismo de ação e seus efeitos colaterais ao organismo e o balanço risco-benefício. Pensem comigo: se eu mantivesse o equilíbrio, não precisaria de elementos para auxiliar na remineralização; logo, o elemento acabaria ficando livre e não seria devidamente aproveitado. Mas, se apresento risco fruto de maus hábitos, ou se estou com problemas de saúde bucal, então sim, vou usá-lo como recurso terapêutico. Quer dizer: racionalmente falando, o ideal seria utilizá-lo pontualmente, e não indiscriminadamente. Como isso é, no presente momento, praticamente impossível no contexto de grandes populações, vem daí o uso geral.

Muitos estudos científicos sugerem que a fluoretação da água de abastecimento não tem sentido como prevenção e nem tampouco como tratamento. Quando necessário, deveria ser indicado em dose pequena e segura, de frequência diária e de forma tópica. Por isso, é recomendável creme dental com flúor quando o paciente apresenta algum tipo de atividade patológica e não consegue controlar a dieta, ou se possui outros fatores de risco que promovam, igualmente, desmineralização do esmalte (tais como refluxo, xerostomia – a famosa “boca seca” -, bulimia, entre outros).

Essas informações servem para todos.  Não vejo diferença em promover a saúde de pais, mães e cuidadores de maneira diferente da promoção da saúde das crianças. E reforço: é muito importante que mães, pais e cuidadores percebam e compreendem seu próprio processo de manutenção de saúde, mesmo que já convivam com sequelas de lesões do passado, para que consigam realmente se responsabilizar de forma consciente pela saúde bucal de suas crianças. O que serve pros pequenos, serve pros grandes!

E faço um apelo: é mais produtivo a todos que trabalhemos em conjunto, de maneira multidisciplinar e envolvendo todos os bons profissionais que têm senso crítico para enriquecer e expandir nossos conhecimentos.

Referências consultadas:

– KRAMER, P. F.; FELDENS, C. A.; ROMANO, A .R. Promoção de saúde bucal em odontopediatria: diagnóstico, prevenção e tratamento da cárie oclusal. São Paulo, Artes Médicas, 1997, 144p.
– Hwang JK1, Shim JS, Baek NI, Pyun YR, Xanthorrhizol: a potential antibacterial agent from Curcuma xanthorrhiza against Streptococcus mutans. Planta Med. 2000 Mar;66(2):196-7.
– Célia Regina Lulo Galitesi – As Mil e Uma faces do Dente – Editora Antroposófica, São Paulo, 2001 


Quando pedi à Liziane que se apresentasse aos leitores do Cientista Que Virou Mãe, ela respondeu:
“Sou mãe antes de qualquer outro papel. Depois sou dentista odontopediatra, profissional da e para a saúde, sou corredora, cozinheira, entre outros prazeres. Nascida em Pelotas, no Rio Grande do Sul e renascida em Florianópolis, Santa Catarina”.




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