Aqui em casa, as luzes ficam acesas até às 4 ou 5 da madrugada. Invariavelmente.

Nós moramos em uma casa cravada na encosta de um pequeno morro, rodeada de verde e gigantescos eucaliptos e escolher morar aqui também esteve diretamente relacionado à nossa rotina e ao fato de que as luzes ficam acesas durante toda a madrugada.
Quem olhar de fora, verá uma pequena janela sempre iluminada. Uma, duas, três, quatro, cinco da manhã, e a luz estará acesa. E estará acesa apenas porque, aqui dentro, haverá sempre uma pessoa trabalhando, estudando, lendo, escrevendo: eu.
Estou há mais de trinta horas de cama, adoentada. Minha resistência caiu tremendamente, tive uma febre terrível, bateu os 39 graus, uma quebradeira que não me dava há mais de 3 anos.
E eu sei que isso tem a ver com o fato de que minhas noites não são muito bem dormidas. Justamente porque trabalho durante quase todas as madrugadas. 
Claro que muitas pessoas condenam essa minha forma de viver – porque afinal, o que mais as pessoas gostam de fazer é condenar, inclusive quando a forma de vida é muito diferente da sua própria…
Mas hoje eu vou contar como foi que decidi transferir todos os meus trabalhos para o período noturno.
Quando fiquei grávida, havia acabado de concluir um doutorado. Durante a gravidez, enquanto ia aprendendo, lendo, me informando sobre ser mãe, sobre ter filhos, escrevi dois projetos de pós-doutorado. Eu realmente acreditava que, após o nascimento dela, e passado o período inicial de três, quatro meses, voltaria facilmente ao trabalho, para que pudesse retomar minha carreira profissional e acadêmica de onde havia parado. Sim, eu realmente acreditava nisso… E só achava isso porque, embora lesse muito sobre gestação, parto e filhos, pouco se falava sobre a incompatibilidade entre instinto e separação mãe-filho quando a mãe volta ao trabalho. Em nenhum lugar se fala precisamente sobre o que você sentirá sendo mãe, nem que ser mãe é algo que vai te acontecendo enquanto você é. E não se fala sobre isso justamente porque com cada mulher acontece algo diferente. Cada uma reage de determinada maneira ao fato de ter gerado uma vida e de ser responsável por ela.
Então ela nasceu e, com dois ou três meses de vida, ambos os projetos foram aprovados, em momentos diferentes. E, aliando desejo de retomar à necessidade financeira, aceitei. Voltei ao trabalho. Para não colocá-la em uma creche sendo tão novinha, meu marido e eu reorganizamos nossas vidas e nos revezamos em seus cuidados. Meus parceiros profissionais aceitaram minha proposta de um horário alternativo de trabalho.
E então recomecei…
Foram os seis meses mais sofridos de toda a minha vida.  
Ter que me separar da minha filha, ainda que por poucas horas, quando ela ainda era uma bebezinha, quando era amamentada, quando sentia minha falta, foi a coisa mais cruel pela qual passei. E isso não estava escrito em nenhum livro que eu havia lido. Precisei viver e sentir na pele para saber o que era. Dezenas de vezes, cheguei em casa e a encontrei chorando muito. Foi terrível… 
Não era possível para mim, naquele momento, deixar aquele trabalho, nós precisávamos daquilo, então o sofrimento era ainda maior. 
Consegui aguentar por um tempo, mas um dia desisti. Preferi assumir a incerteza financeira a aceitar a certeza de sofrimento. Porque nenhuma mãe merece sentir a dor de saber que sua filha está sentindo sua falta, está chorando, sem ter você por perto.
Na sequência, decidi interromper aquela carreira acadêmica e construir uma nova, movida por uma imensa incompatibilidade de valores entre o que eu fazia antes de ser mãe e a pessoa que me tornei depois. Não era mais possível trabalhar com o que eu trabalhava, era simplesmente a antítese do que eu defendia e valorizava em minha nova vida. 
E então recomecei… 
Tantos recomeços…
Não teria recomeçado se não tivesse encontrado um orientador que me apoiasse. Um cara bacana, que também tem filho e sabe a importância de criá-los com afeto e presença, e que não vê na carreira acadêmica a coisa mais importante da vida de uma pessoa. Então, ele me apoiou em minha decisão de estudar em casa, indo à universidade apenas para as disciplinas que preciso cumprir ou quando precisamos conversar sobre algo referente ao projeto. Algumas vezes, nos reunimos inclusive na casa dele, junto à sua família. Nada mais afim aos meus valores…
Quem está na área acadêmica sabe que é preciso silêncio e concentração para escrever e estudar. Quem tem filho pequeno sabe que, durante o dia, isso é praticamente impossível. Quando eles ainda são bebês, ainda dá. Mas conforme vão crescendo, conforme as sonecas vão se espaçando, conforme vão solicitando ainda mais nossa atenção e presença, isso fica praticamente impossível. Então, decidi inverter meu horário e trabalhar na madrugada. E é por isso que, em todas as noites, as luzes aqui de casa estão acesas… É por isso, então, que a janelinha desta casa cravada na mata está sempre iluminada.
O horário biológico da minha filha me  permite fazer isso. Ela nunca acordou antes das 10 da manhã, nem quando era muito bebezinha. Além disso, conto com uma coisa fundamental: apoio. Meu marido me apoia nisso e cuida dela logo que ela acorda. Somos realmente uma equipe. 
Não foi fácil. Não é fácil. Houve e há bastante abnegação da nossa parte e renúncia por um monte de coisas. Há noites em que me pego desejando estar deitada com eles, largar tudo e ir. Algumas vezes, faço isso e vou mesmo. Mas quando estou com deadlines apertados, não posso, então continuo. E o que me move e incentiva é saber que esse esquema de vida me permite estar com ela durante o dia, vê-la crescer e se desenvolver, sem abrir mão do meu próprio desenvolvimento profissional, que sempre me foi muito importante. Desgasta meu organismo, cansa-me bastante, mas me traz um sentimento de satisfação que de outra forma eu
não teria e do qual não abro mão.
Minha filha me sabe, e ao pai (que também optou por trabalhar em casa depois que ela nasceu), sempre próximos. Muitas vezes estamos cheios de trabalho, então explicamos a ela que naquele dia não poderemos passear e ela entende. Outras vezes, dizemos que estamos muito ocupados e que, depois de brincar, mamãe e papai irão trabalhar ali, ao lado dela, e ela entende. Ela tem uma mesinha que fica ao lado da minha mesa e seu pai também providencia sempre uma que fica ao lado da dele. E sempre que percebemos que ela está precisando, largamos tudo e saímos com ela. É frequente deixarmos o trabalho acumular em função de termos largado tudo para passear com ela. 
Nossa vida é, portanto, muito diferente do habitual. E não abro mão dessa diferença. Não faria diferente. Isso nos deixa feliz, e a ela também, que está sempre perto dos pais.
Além da questão da presença, há a questão fundamental do que você está ensinando passivamente a um filho quando trabalha junto dele. Você está ensinando que é possível conciliar desenvolvimento profissional e família, e que ambas as coisas são importantes. Está ensinando o valor do trabalho, da organização, das múltiplas tarefas e de que a vida é isso: múltipla. É composta por diferentes lados, cada um com sua importância.
É por isso então que, hoje, estando bastante adoentada, tenho consciência que esse estilo de vida exige mais da minha resistência física do que exigiria se eu tivesse seguido o caminho tradicional, organizando minhas atividades produtivas durante o dia, colocando-a em uma escolinha e utilizado as noites para descansar. Claro que sei disso. Mas emocionalmente isso não seria fácil para mim e não teria muito a ver com o que valorizo. A infância dela é muito curta, quanto mais eu puder estar presente, quero estar. Foi assim que pude ver cada expressão nova que ela aprendeu, cada bordão novo, cada nova conquista em seu crescimento. Não, não abro mão. 
Agora, é me recuperar e seguir em frente.
Com a certeza de que fiz a melhor escolha para mim e minha família.
E de que não estou sozinha nessa.
Junto comigo, há dezenas de mulheres. 
Mulheres que decidiram estudar durante as madrugadas, ou reorganizar a vida, para que fosse possível conciliar carreira e maternidade. 
Essa semana, durante uma das muitas reuniões via Skype que eu e minhas amigas e companheiras de pesquisa fazemos, a filha de uma delas, do outro lado do computador, disse “Oi, Clara!”. E Clara respondeu: “Oi, Iara!”. E já não era a primeira vez que aquilo acontecia…
Eu já estava meio adoentada, estava em reunião com elas deitada na cama, tendo ao lado a minha filha de dois anos, nos vendo organizar e delinear nossa participação coletiva no congresso Fazendo Gênero deste ano.
E aquele momento foi um dos mais especiais que já vivi nesse caminho de mãe, doutoranda, ativista, pesquisadora, vivendo uma vida diferente.
São essas pequenas coisas que me ajudam a ter a certeza de que vale a pena.
É isso, realmente, que quero passar a ela.
Hoje, me vendo bastante caída, Clara se deitou ao meu lado e disse: “Mamãe já vai ficar boa. Clara cuida. Clara tá aqui”. 
Nada vale mais que isso.
Nem acordar bem cedo para ver um belo dia nascer… 
Se você quiser ler mais sobre como foi que tomei essa decisão e como é trabalhar junto aos filhos, escrevi mais neste texto “Quando a casa, o escritório e os filhos estão todos no mesmo lugar…“.

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