Lembra daquele casamento nos moldes bem tradicionais, prometendo fidelidade e o amor para toda a vida? Pois é, nos dias atuais, um relacionamento desse tipo passou a ser considerado muito mais um mito do que realidade. Uma espécie em extinção até, se levarmos em consideração que na maioria das vezes a monogamia fica apenas no discurso e que as puladas de muro não consensuais são bem mais comuns do que se preconiza.

Por todos os lados, surgem novas e inúmeras formas de se relacionar. Há casamentos entre pessoas do mesmo sexo, há casais morando em casas separadas, há mulheres que se tornam mães solteiras, homens e mulheres que se envolvem em novas relações. E há também aqueles que se relacionam de forma aberta e consensual com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, praticando o poliamor, e é sobre este que quero – e sobre o qual precisamos – falar.

Mas, por que, afinal, precisamos falar de poliamor? Ora, simples, porque cabe a nós, mães escritoras desta plataforma, buscarmos informação fora da caixa, questionarmos o que é nos entregue como óbvio e normal. Até hoje, o casamento monogâmico é a única opção legal de casamento e basicamente a única opção socialmente aceita, imperando ainda a falsa ideia de que este é superior a qualquer outro tipo de arranjo afetivo, especialmente no que concerne a criação de filhos (tema que ficará para um outro texto sobre experiências de parentalidade em famílias poliamoristas).

Antes de mais nada, quero deixar bem claro que não estou aqui para condenar o casamento monogâmico em si. Pelo contrário, acho que este é uma opção maravilhosa de vida para um punhado de pessoas – ou para uma parcela maior delas durante algum tempo –, mas os números de divórcios e traições provam que está muito longe de funcionar de forma contínua para a grande maioria de nós. Como bem diz a psiquiatra Judith Eve Liptona, no livro O mito da monogamia, “é tão realístico o fato de que algumas pessoas possam ficar juntas a vida inteira (em monogamia) quanto o fato de que outras conseguem tocar o conserto de violino de Beethoven, ou patinar no gelo perfeitamente ou aprender um novo idioma.”

Também não estou aqui para defender o poliamor em si. Minha posição como mãe e/ou como cientista social é sempre pelo direito de escolha. Mas para exercitarmos esse direito, precisamos conhecer as opções disponíveis. Porém, como já diria Boaventura de Sousa Santos, meu grande mentor intelectual, a diversidade de experiências do mundo está a ser desperdiçada devido à “arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca”, seja porque está fora da razão com que a podemos identificar e valorizar, ou, como é o caso aqui, porque está fora do que a sociedade considera aceitável, passível de ser enxergado como uma opção válida.

Tiremos, pois, o poliamor do seu contexto de invisibilidade, de exclusão social, e vejamos o que podemos aprender com essa filosofia. Criado na década de 1980 no contexto da liberação sexual, o termo poliamor é atualmente usado para descrever uma ampla gama de estilos amorosos que tem em comum o preceito de que o amor não pode ser forçado ou barrado de fluir em qualquer direção em particular. Nesse contexto, o amor é visto como um sentimento passível de se expandir para abarcar mais pessoas, exatamente como ocorre quando uma mãe tem mais filhos e descobre que sua capacidade de amar, longe de se dividir, se expande.

Apesar dessa característica marcante de pluralidade de participantes nas relações afetivas, o poliamor tem muito mais a ver com um atitude interna de deixar o amor – e aqui eu incluiria a sexualidade também – evoluir sem expectativas ou demandas específicas, e de acordo com a verdade interna de cada um, do que com o número de parceiros envolvidos. Ou seja, a forma que o relacionamento toma tem menos importância do que os valores por detrás dele.

De modo geral, os poliamoristas questionam muitas das ideias arraigadas na monogamia institucional (aquela que se vê bem mais na teoria do que na prática), tal como a de que a exclusividade sexual é a única forma de expressar amor e comprometimento, e as substituem por valores alternativos, tentando, por exemplo, desconstruir a ideia de que o amor, para ser verdadeiro, precisa ser monogâmico, e de que a quebra da monogamia leva necessariamente ao ciúmes. Ora, se o poliamor preconiza relações emotivas e sexuais múltiplas e simultâneas, de forma consensual e aberta, a presença de uma outra pessoa por si só não seria motivo de ciúmes.

O mito de que não é possível amar mais do que uma pessoa ao mesmo tempo, ou de que se meu parceiro realmente me amasse ele não deveria ter desejo sexual por mais ninguém são, também, desconstruídos, sendo substituídos por ideias desse tipo: meu parceiro me ama e confia tanto no nosso relacionamento que é capaz de expandi-lo e enriquecê-lo ao experimentar ainda mais amor de outras pessoas. E o poliamor vai ainda mais além, quebrando a norma(tividade) ao praticar a compersão, palavra ainda bastante desconhecida e que foi criada para descrever sentimentos opostos ao ciúmes. Mais especificamente, o termo é usado para descrever a alegria de uma pessoa ao ver seu parceiro amoroso feliz com outra pessoa. Embora os poliamoristas não sejam os únicos a experimentar tal sentimento, são eles que, de fato, trabalham ativamente para disseminar tal conceito.  

Aliás, você já parou para pensar por que diabos podemos ficar felizinhos quando nosso parceiro ganha um aumento ou uma promoção, mas não podemos sequer ousar ter um sentimento desses quando ele demonstra alegria por ter tido um encontro (sexual) incrível com outra pessoa? Simplesmente porque fomos criados para acreditar que, quando somos a cara metade de alguém, devemos suprir todas as nossas necessidades afetivas e sexuais única e exclusivamente com aquela pessoa, estando terminantemente proibidos de experimentar esses sentimentos com outro alguém. Mas por que mesmo?

A compersão desafia tal ideologia, reforçando a ideia de que somos seres individuais e que, como tais, temos necessidades e desejos bem particulares, que podem variar com o tempo e que podem ser muito diferentes daqueles experimentados pelos nossos parceiros. Uma mãe que mora numa comunidade de amor e sexualidade livre no sul de Portugal me revelou, por exemplo, que depois de uma cesariana necessária, porém violenta, ficou sem desejo de ter relações sexuais por mais de um ano, e que sentiu um alívio muito grande em poder respeitar aquele seu momento sem ter de sujeitar seu parceiro a um regime sexual forçado. “Eu pude tomar essa decisão e ainda assim meu parceiro pode seguir a verdade dele; e o fato de não termos tido sexo tampouco significou que não tivemos momentos íntimos.”

Como exercício de ilustração, eu gosto também de trazer o relato da escritora Jenny Block, que teve todo o apoio do marido, durante uma fase que ela chamou de casamento aberto, para saciar sua fome por mais parceiros sexuais (de ambos os sexos), ainda que ele não tivesse essa mesma necessidade. O passo seguinte foi ela se apaixonar por uma mulher e, de repente, se ver numa relação de poliamor. “Que palavra maravilhosa, poliamor. Muitos amores. Quem não querer isso? Claro que eu jamais teria pensado que isso poderia aconteceria comigo, até que aconteceu”, brinca. “Nós éramos como o casal ordinário da casa ao lado. É verdade. Mas descobrimos que possuir sexualmente um ao outro não iria ajuda nosso casamento…”

Longe de criticar a monogamia em si, a filosofia do poliamor busca desafiar o domínio cultural da mononormatividade, que estabelece que o “normal” (e aceitável) são as relações fechadas, heterossexuais de preferência, ou que o normal é sentir ciúmes, ou ainda só sentir alegria pelo meu parceiro se eu for sua fonte de felicidade e prazer. Sobre isso, a nossa escritora aí de cima reforça: “existe esse plano único que todos devemos supostamente seguir, esse modelo heterossexual, monogâmico, de ter filhos, um modelo de tamanho único que deve servir em todo mundo (…) mas eu não preciso que as outras pessoas gostem de mim ou me aprovem, e eu não preciso que as outras pessoas vivam do mesmo jeito que eu”

Bem dizer, a prática do poliamor busca remover quaisquer regras socias rígidas relacionadas ao amor e à sexualidade, e particularmente aquelas relacionadas à construção do ciúmes enquanto resposta inevitável e intolerável ao surgimento de um outro elemento na relação a dois, problematizando e desafiando conjuntos inteiros de normas sociais que são tomadas como certas e óbvias. A aspiração final, afirmam alguns, é alcançar o relacionamento puro, conforme delineado pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, em que cada pessoa é capaz de atingir seu potencial máximo sem precisar que, para isso, os demais tenham de ter as mesmas experiências para equilibrar as relações de poder.

E viva o amor.

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