No mês de agosto, a jornalista Carolina Pasquali – que é mãe da Clara e da Joana – entrou em contato comigo dizendo que estava pensando em uma matéria para a revista Você S.A., que fala sobre desenvolvimento profissional, carreira e temas afins. Seria para a sessão “Decisão Difícil”, cuja ideia é mostrar o que leva alguns profissionais a tomarem decisões que rearranjam suas carreiras.
Como ela é leitora do blog, percebeu que minha história de mudança de carreira tinha tudo a ver com essa sessão. E então me convidou para uma entrevista.
Carolina queria saber como havia acontecido a minha transição de uma carreira para outra, como foi esse processo, qual foi o impacto que a maternidade teve nessa decisão, se eu havia me encontrado nesse novo caminho.
Ela me mandou algumas perguntas norteadoras, as quais respondi com todo amor, pensando que aquelas palavras poderiam chegar a alguém que talvez estivesse precisando de apenas um empurrãozinho para mudar, uma palavra de incentivo, só uma forcinha.
Carolina, então, compilou as respostas e produziu uma pequena matéria que está na Você S.A. deste mês de dezembro.
Sinto-me muito honrada em função de minha história pessoal ter sido considerada uma fonte de inspiração a outras pessoas. Embora tenha sido realmente uma decisão muito difícil, foi tomada pensando em meu presente e futuro como mulher, mãe, pesquisadora, cientista, parte de uma família, parte de uma sociedade. Pensando especificamente em uma coisa: como unir ciência, maternidade e responsabilidade civil.
Como a sessão “Decisão Difícil” comporta apenas uma pequena matéria, o que foi publicado é uma pequena síntese do que eu respondi. Então aproveito esse momento de fim de ano, quando tantos de nós estão reavaliando metas e objetivos e traçando novos caminhos, para compartilhar aqui, na íntegra, a minha história de mudança, à luz do que sei hoje e da análise que faço sobre meu caminhar nesses três anos de mudança, e estimulada pelas perguntas que Carolina me fez.
Com isso, tenho três objetivos: agradecer a todos que estiveram ao meu lado, presencialmente ou não, durante o processo que conto aqui, me apoiando e incentivando; fortalecer outras pessoas que talvez estejam querendo mudar mas ainda não reuniram coragem suficiente, e dizer: valeu a pena. Está valendo a pena cada dia dessa nova vida. Se você quiser ver a matéria, a revista desse mês já está nas bancas. Se quiser conhecer a história inteira, está aqui.

*****************************************************
Carolina Pasquali – Gostaria que você contasse um pouco sobre a sua carreira antes da mudança. Você estava na Academia, certo? Em que área exatamente da Farmacologia? Como era a sua rotina e como enxergava seu futuro? Aqui, é legal salientar suas conquistas e tudo o que você achar importante. 

Eu havia acabado de defender um doutorado quando soube que estava grávida. Preparando-me para a fase de concursos para docente em universidades e para fazer um pós-doutorado. Foi um grande choque, porque eu sabia que com o avançar da gravidez talvez não fosse possível deslocar-me para outras cidades a fim de prestar os concursos. Um mês antes eu ainda estava envolvida com as atividades do doutorado, trabalhando na bancada, terminando de escrever a tese e escrevendo projeto de pós-doc. Minha área sempre foi a neurofarmacologia, ou psiconeurofarmacologia, estudando espécies vegetais psicoativas utilizadas pelas comunidades tradicionais para o manejo da ansiedade e depressão e o estudo da base neurobiológica dessas condições. Gostava muito dessa área, adorava o meio de campo que ela fazia entre as comunidades tradicionais e o que sabemos sobre o cérebro. Minha rotina era a rotina típica de pesquisador da área: no laboratório de pesquisa da manhã até à noite, almoçando geralmente na própria universidade, muitas vezes avançando noite a dentro em experimentos, análises de resultados, discutindo dados com os colegas, participando de eventos científicos. Nessa área, meu futuro parecia bem delineado: chegar ao máximo da formação científica e concorrer a cargo acadêmico, ser docente, continuar a fazer pesquisa. Pouco antes de concluir o doutorado, recebi um prêmio muito bacana, como um dos três melhores trabalhos sobre plantas medicinais no Brasil, estava bastante motivada.
No entanto, eu já vivia um sério dilema entre o gosto que tinha por essa área de pesquisa e a ferocidade do meio acadêmico, especialmente desse meio que faz a ponte entre a pesquisa e a indústria farmacêutica. Sempre interessada em leituras sobre o papel da ciência para a comunidade, sobre a ponte entre ciência e cidadania, sobre como a ciência influenciava a vida das pessoas, passei a sentir um certo incômodo com a grande pressão da indústria farmacêutica e da medicina por diagnósticos – especialmente na minha área, psicofarmacologia – com um número cada vez maior de diagnósticos para coisas normais da vida e com tudo sendo encarado como patologia psiquiátrica. Mas eu não tinha, ainda, conhecimento verdadeiro sobre a questão da medicalização; era, naquele momento, apenas uma espécie de “incômodo” que eu sentia, um desconforto entre o que eu ia pesquisando e o que eu vislumbrava como meu papel como cientista. O fato de trabalhar com conhecimento popular sobre as plantas amenizava um pouco essa angústia, mas a proximidade com a indústria farmacêutica, a possibilidade de se patentear o conhecimento que ia sendo produzido – tendo partido justamente do conhecimento tradicional – começou a me incomodar muito.
Carolina Pasquali – Quando estava grávida, como imaginava que seria seguir depois do nascimento da sua filha? Em que momento a vontade de mudar surgiu, antes ou depois do nascimento dela?
Durante a gravidez, os planos se mantiveram e a vontade de continuar na área também. Nada havia mudado. Tanto que escrevi dois projetos diferentes de pós-doutorado ainda grávida, com a possibilidade de iniciá-los, caso aprovados, após o nascimento dela. Entrei em trabalho de parto quando estava, justamente, concluindo um deles. Quando minha filha nasceu, eu não estava trabalhando nem pesquisando, então pude estar com ela durante todo o tempo. Quando ela completou três me
ses, a notícia: ambos os projetos que eu havia escrito ainda na gravidez haviam sido aprovados. Um deles representava um grande desafio, uma mudança de área, sair da academia para fazer pesquisa científica independente, “vender” ciência fora da universidade, junto a um grupo formado por pessoas empreendedoras, cheias de planos e vontade de fazer a diferença. Tanto pela motivação da novidade quanto por necessidade financeira, aceitei. E comecei a fazer o pós-doutorado junto a esse grupo. E foi aí que tudo começou a mudar. Eu já era ativista da humanização do parto e da maternidade ativa e essa atividade, até então paralela, voluntária, estimulava em mim um pensamento crítico sobre o sistema em que a gente vive, sobre nossas prioridades, sobre idealismos, objetivos. Reflexões que foram muito motivadas pelo fato de ter um ser humano, agora, sob minha responsabilidade; sobre que tipo de mundo eu desejava para ela e qual era, de fato, meu papel nesse mundo. E essa reflexão crítica, apoiada por muito do que eu ia lendo sobre filosofia da ciência, sobre a ciência e a medicina hegemônica, sobre maternidade e formação de seres humanos, despertou em mim a vontade irreversível de mudar.
Carolina Pasquali – Como se preparou para a guinada? Você conseguiu se planejar financeiramente? Tinha reservas? Foi difícil tomar a decisão?

Eu não me preparei para a guinada. Não houve um planejamento prévio. Não houve nada, eu simplesmente não tinha uma rede de proteção e, ainda assim, me joguei do trapézio em movimento. E ainda segurando uma criança no colo… 
Não tinha reserva financeira alguma. Meu companheiro [ainda éramos casados naquela época] estava trabalhando, mas o que ele ganhava naquela época não era suficiente para os gastos que tínhamos. Na época, eu ganhava pouco mais do que ele e nossas rendas juntas eram importantes. Nós estávamos há poucos meses respirando mais aliviados em função da bolsa que eu estava ganhando como pesquisadora em nível de pós-doutorado. Se eu deixasse a pesquisa, deixaria a bolsa e isso teria um grande impacto na nossa vida. Ao mesmo tempo, minha insatisfação só crescia, eu já não queria mais aquela área, ela havia se tornado incongruente para mim, eu me sentia uma farsante trabalhando em algo que eu não mais valorizava, na qual eu não me via mais, que não tinha mais a ver com o que eu pensava sobre a vida, vivia chateada, insatisfeita. Eu realmente não sabia o que fazer, para onde ir… Sabia que a pesquisa era o meu caminho, sempre soube. Mas não podia mais continuar em uma área com a qual eu já não me identificava mais. Até que um dia, parada no trânsito, voltando do trabalho para casa, eu simplesmente “soube” o que deveria fazer. Se a área em que havia me doutorado não tinha mais significado para mim mas se, ao mesmo tempo, eu queria seguir a carreira acadêmica, de repente pareceu muito claro o que deveria ser feito. Claro e insano. Parar. Voltar. Recomeçar. Recomeçar em uma área em que, de fato, eu poderia me encontrar sendo a nova pessoa que eu era, modificada pelas reflexões que a humanização e a maternidade estimularam em mim.
Carolina Pasquali – Como essa decisão foi recebida pelos outros? Seu companheiro, sua família, seus ex-colegas?
O mais difícil, para mim, foi falar para meu companheiro o que eu havia “vislumbrado” parada no trânsito. Não consegui segurar a ansiedade e liguei pra ele de dentro do carro mesmo: “Já sei o que vou fazer. Vou fazer doutorado de novo!”, eu disse quase gritando. Hoje eu respondo isso rindo, mas foi difícil… Ele se assustou, obviamente, e a única coisa que respondeu ao telefone foi algo como “Vem pra casa, a gente conversa aqui”. Foi tenso o caminho até em casa… Cheguei e fui falando tudo enquanto amamentava minha filha. Estava eufórica, mas insegura. Mas independentemente da euforia de quem parecia ter visto seu caminho, as ideias vinham e faziam sentido, e eu tinha um projeto de pesquisa na minha cabeça, era um projeto consistente, totalmente relacionado com o que eu estava envolvida. 
A resposta dele para tudo aquilo foi algo que nunca mais esquecerei. Ele disse: “Olha, é loucura sim. É loucura deixar tudo para trás. É loucura deixar o pós-doc assim e partir pra outra coisa totalmente diferente. Mas você não pode mais viver assim, insatisfeita, isso seria mais loucura ainda. Não dá pra viver uma vida assim, achando que poderia ter feito e não fez. Vai, se joga. A gente dá um jeito, a gente se vira. A gente sempre se virou”. 
Em um mês eu estava fazendo a prova de seleção, em uma área totalmente nova, com conceitos totalmente novos, sem ter estudado aquilo sequer uma vez na vida, com um bebê de 11 meses. Minha família achou loucura também, mas todos me apoiaram, todos disseram que confiavam em mim, que daria certo. Com os amigos não foi assim… Muitos me telefonaram chocados. Muitos tentaram me demover da ideia. Alguns me chamaram de irresponsável, com doçura, mas chamaram. O auge da não aceitação da minha decisão partiu de pessoas que eu gostava muito, que sugeriram, muito delicadamente, que eu não estava de posse da minha “razão” e que talvez estivesse vivendo uma profunda depressão pós-parto. Lembro-me da crise de riso que tive depois de ouvir isso. Apenas me levantei e disse que eles não haviam entendido nada e que não estavam tendo alcance para entender a motivação da minha decisão. Mas que um dia entenderiam… Nunca mais os encontrei, infelizmente.
Talvez, hoje, já tenham entendido.
Carolina Pasquali – Às vezes é normal enxergar o que não queremos, mas mais complicado desenhar o futuro e as novas escolhas. Como foi isso para você? O novo doutorado foi natural? 
Pois é, eu não sofri isso. Quer dizer, sofri apenas no início, quando bateu a angústia de “E agora? Não me encaixo mais nisso. O que vou fazer?!”. Mas depois, as coisas foram se mostrando e eu fui seguindo o curso. Para mim foi tudo muito natural. Foi como se tudo estivesse desenhado e pronto à minha frente e que bastava eu enxergar. Depois de um período de dúvidas e muita angústia, que parecia que não teria fim, de repente eu sabia o que fazer, onde fazer, como fazer, com quem fazer. Muitas pessoas me ajudaram. Uma amiga, Gabriela Zanella, indicou o professor que hoje é meu orientador, Prof. Dr. Charles Dalcanale Tesser – a quem devo sempre agradecer, por ter me acolhido com todo carinho, por ter acreditado em mim, a despeito de ser contra minha antiga formação –, gente que eu sequer conhecia pessoalmente me cedeu material para estudar, outras pessoas ficaram ligadas na data de inscrição. Amigos me ligavam para dizer que o resultado tinha saído, foi muito bonito, foi algo muito coletivo, estava totalmente em uníssono com o novo caminho: Saúde Coletiva. Foi uma das coisas mais naturais que eu já vivi. A mudança foi imensa, foi uma guinada muito brusca. 
Quando eu soube que havia sido aprovada na seleção para o novo doutorado, chorei acho que durante uma hora. Era um misto de alívio, com gratidão, com a sensação de que eu havia tido uma segunda chance de me realizar como profissional, como pessoa, como cidadã. Embora brusca, a mudança aconteceu de maneira muito fluida. 
Eu me sinto uma pessoa muito, muito privilegiada hoje, porque tenho noção de quantas pessoas querem e pedem por uma segunda chance na vida, quantas pessoas gostariam de fazer de seus trabalhos um hobby e de seus hobbies um trabalho. E foi isso o que aconteceu comigo. Eu tinha 33 anos. Hoje tenho 35. Até que foi cedo, eu acho. Sempre é tempo de buscar o nosso caminho, sempre. E aquilo que a gente faz com todo amor e com a mais clara convicção de que se está onde deveria estar, vinga, floresce e frutifica. Sempre. Faria tudo novamente, com toda certeza. Depois de aceitar a maternidade com todo coração, essa foi a melhor decisão que já tomei por mim mesma. Nós passamos por momentos bastante tensos, enquanto família. Tivemos que fazer uma série de ajustes naquele período de mudança, aperta daqui, segura dali, abrimos mão de algumas coisas. Coisas nas quais as pessoas se apegam para justificar a permanência em um trabalho que muitas vezes não as preenche. Foi uma escolha baseada não no presente, mas no futuro. Por mais que eu soubesse que naquele momento poderia ser difícil, eu sabia que as coisas se encaixariam. E deu certo. Valeu a pena, está valendo a pena. Meu companheiro sempre conta uma historinha metafórica que eu sempre gosto de lembrar. Sobre uma família que não tinha nada, apenas uma vaquinha no terreno em que viviam, uma vaquinha que era de onde tiravam leite, faziam queijo, vendiam o queijo e era essa sua fonte de renda. E, por isso, se acomodaram. Um dia a vaquinha morreu e eles se desesperaram. E foi só porque a vaca havia morrido que eles prestaram atenção no quintal. Lá havia petróleo… Mas eles passaram a vida inteira sem saber, porque a vaquinha dava uma sensação de segurança que os imobilizava.
Carolina Pasquali – Vendo de fora, me parece que você, muito rapidamente, encontrou seu novo caminho, “deslanchou”. Você também sente isso? A que credita esse sucesso? 
Carolina, até hoje eu me espanto todos os dias com isso. Todos os dias mesmo. Foi tudo muito rápido, mas muito consistente. De repente o projeto começou a andar. O assunto – violência obstétrica – ganhou pauta nos meios de comunicação e dentro da própria academia. Cada aula que eu assistia na nova área me fazia vibrar, me faz vibrar. Meus professores sabem disso, porque sempre faço questão de falar sobre a mudança que aquilo que estou vendo na sala de aula está ajudando a fazer em mim e, consequentemente, nas pessoas com quem tenho contato por meio desse doutorado. Meu blog ajudou muito nisso, porque foi o meio que encontrei de fazer a ponte entre a pesquisa, as pessoas, o ativismo, a maternidade, tudo misturado. Então sim, eu também sinto isso. E acredito que esse sucesso na escolha, na mudança, se deva à certeza de estar em um caminho que me completa e preenche. Faço tudo apaixonadamente. Concentro minhas atividades no período noturno, depois que minha filha dorme. É quando vou estudar, ler, trabalhar nos textos relativos ao projeto de pesquisa. Desde o primeiro ano desse doutorado estou sendo convidada para falar sobre o tema, para compartilhar o que venho aprendendo e isso é mais que gratificante. 
Eu acredito que a ciência tem um papel social muito forte, principalmente a ciência que é financiada por recursos públicos, como é o meu caso. É imperativo que retorne em benefícios imediatos às pessoas. E sinto isso hoje, sinto que estou fazendo, plantando, e as coisas estão germinando. Minha filha tem três anos e me emociona muito ouvi-la perguntar: “Mãe, você está trabalhando com as mamães e os bebês?”. E sim, estou. Tenho muita alegria de olhar para trás e ver que aquela possibilidade que a tantos pareceu insana foi a que eu escolhi e deu certo.

 

Na semana em que deixei para trás um pós-doutorado e uma história.
E essa semana, no encerramento da natação dessa menina que me ajudou a ter coragem.

Leave a Reply