A gente aprende todo o tempo. Por atitude ativa ou passiva. Nosso cérebro é constantemente bombardeado de informações, que chegam até ele via visão, tato, audição, olfato e paladar, os cinco sentidos que aprendemos nas aulas de ciências num passado nem tão remoto assim. Eu incluo uma sexta forma de captação de informação sensorial, uma forma que, muitas vezes, junta todas as demais e que – o que a torna ainda mais poderosa – resulta em um aprendizado que não passa pelo crivo da consciência. Não sei se é o tal sexto sentido; acontece quando a pessoa capta sinais mínimos de comportamento, linguagem corporal, junta tudo ao contexto e monta um cenário completo. A mensagem foi passada, mas ela nunca foi dita claramente, no máximo foi deixada por associação de ideias ou mensagens, ou em tom de brincadeira. Deixou-se no ar, apenas… E seu cérebro pegou. Você nem percebe que está aprendendo algo sobre alguma coisa, mas está.  E muitas vezes, pela repetição, essa informação se consolida de uma maneira que pode durar até mesmo anos e – o que é pior – realmente interferir na sua maneira de ver o mundo.
Quer ver?
Responda às frases seguintes:
– O tempo passa, o tempo voa e quem continua numa boa?
– Quem é a verdadeira maionese?
– Quem tem mil e uma utilidades?
– Qual cerveja é a número 1?
– E qual é a redonda?
– De que marca é o primeiro sutiã?
– Como é uma família de comercial de margarina?
– Que marca de leite gosta de bebês vestidos de mamíferos?
– De que marca é o caldo nobre da galinha azul?
– Quem diz que ama muito tudo isso?
– De mulher pra mulher:…………………………..
Não é coincidência o fato da maioria das pessoas saberem essas respostas. As propagandas e comerciais são feitos por gente que estuda o assunto, que usa estratégias persuasivas e táticas que inculcam na mentalidade coletiva ideias e conceitos.
É exatamente por isso que é uma extrema falta de respeito a forma como as mulheres são representadas em grande número de campanhas, porque isso ajuda a criar uma mentalidade preconceituosa, discriminatória e ridicularizante sobre a figura feminina e o papel da mulher no mundo. Mas o que eu estou falando não é nenhuma novidade.
Feliz é a mulher tem uma linda silhueta e toma o iogurte da marca tal. Ou a mãe de família neurótica que resolve sua mania de limpeza com um excelente produto e diz “Xô, neura”. Feliz é a mulher que agora tem uma família perfeita, porque usa um creme vegetal no café da manhã, com suas crianças brancas vestindo seus pijamas brancos. Mas esses exemplos nem são assim tão extremos. Extremo mesmo é o reforço à ideia de que mulheres servem para satisfazer os prazeres sexuais masculinos, ou que vivem milagres graças a procedimentos médicos muitas vezes desnecessários ou invasivos. Grave é incitar ideias sexistas nas meninas ainda pequenas. Grave é reforçar a ideia de que mulher foi feita pra lavar roupa, passar roupa e testar o novo sabão em pó. Grave é manipular o inconsciente coletivo de forma a moldar o pensamento das pessoas para o que se deseja.

A gloriosa Gisele Bundchen é a estrela de um comercial da Hope, marca de lingeries, um comercial que presta um desserviço à figura feminina. Especificamente, uma clara ofensa às mulheres brasileiras. Num dos comerciais da campanha, a grande estrela das passarelas aparece num vestido colado, contando para o marido que a mãe dela vai morar com eles, ou que bateu o carro, ou qualquer coisa do gênero. Na sequência, aparece contando a mesma coisa, só que de lingerie. Ao fim, o narrador fecha dizendo: “Você é brasileira, use seu charme”. A Hope está dizendo assim pra você: você é brasileira, você é gostosa, você tem curvas, você não precisa abrir a boca: tire sua roupa e tá tudo certo. Esse é o seu charme. É ofensivo, amoral, degradante e vergonhoso. A brasileira é uma mulher incrivelmente inteligente, criativa, cativante, que vence dificuldades e barreiras, faz muitas coisas ao mesmo tempo e tem uma grande habilidade para gerir coisas. Aumenta a cada dia o número de mulheres que são chefes de família ou que empreendem em iniciativas absolutamente inovadoras. Mas a Hope acha que o charme da brasileira é manipular sexualmente, usando seu corpo, o marido.

Ainda dentro da representação feminina nas propagandas, existe um comercial, já não mais veiculado, que merece citação não só pela forma depreciativa com que trata o universo feminino mas, principalmente, por sexualizar meninas de, no máximo, 8 anos e incitar a introdução precoce de tecnologias no universo infantil.

Por fim, chamo a atenção para um comercial que, assim como o da Hope, está em veiculação nesse momento, e diz respeito à minha área atual de atuação e pesquisa. É um comercial da Nikon, empresa de máquinas e equipamentos fotográficos. Em resumo, e de maneira bem dissimulada, ela diz indiretamente – porque as estratégias publicitárias são, via de regra, indiretas – que o milagre da vida é proporcionado pela medicina. O milagre da vida não é gerar e poder parir. É a medicina facilitar ou realizar o parto. Se você acha que não tem nada de mais, então a sua mente foi moldada a ponto de achar que isso é irrelevante. O normal é o parto natural. O parto cesáreo é um procedimento cirúrgico de grande porte, altamente tecnológico, que salva muitas vidas, mas que deve ser utilizado somente em caso realmente necessário quando há risco à vida da mãe ou do bebê. O que acontece atualmente é a prescrição indiscriminada do método porque, afinal, são poucas equipes médicas dispostas a aguardar o tempo do bebê, a conclusão do trabalho de parto, que pode levar muitas e muitas horas. Mas isso não é divulgado porque, afinal, em muitas e muitas horas dá pra fazer muitas e muitas cesáreas e encher muitos e muitos bolsos de grana. O projeto Nascer no Brasil – Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, realizado por diferentes universidades brasileiras, afirma que:

“As taxas de cesariana estão aumentando sistematicamente no Brasil como reflexo de mudanças nas práticas obstétricas. Estudos internacionais vêm demonstrando os riscos da cesárea e o impacto na saúde reprodutiva futura da mulher. Para os recém-nascidos, os efeitos descritos são: o aumento da mortalidade neonatal, da taxa de nascimento pré-termo intermediário e tardio, além do uso de ventilação mecânica em recém-nascidos de baixo risco”.

Então não é um mero detalhe. É falta de comprometimento social e de querer mostrar as coisas como realmente são. E isso diz respeito diretamente à mulher, uma vez que o parto é exclusivamente feminino. O milagre, senhores publicitários, é uma mulher gestar e parir. Cirurgia não é milagre.
Eu acredito sinceramente no poder da conscientização e da queda dos véus. Acredito que somente vendo a real intenção das coisas por trás das aparências superficiais podemos ente
nder o mundo em que vivemos e escolher por qual caminho trilhar. Mulheres não devem aceitar serem vistas como corpos desfilantes, mulheres não devem aceitar serem reduzidas a instrumentos, mulheres não devem aceitar piada sexista, nem mesmo quando ela é dita por uma mulher – o que é ainda mais nocivo, porque mostra o quão alienados e inseridos num processo social danoso estamos. Eu não aceito ser vista e interpretada dessa maneira. Eu não aceito piada sexista. Eu tenho horror de quem vê nisso uma forma de humor. E concordo absolutamente com Oscar Wilde quando este diz que a história da mulher é a história da pior tirania que o mundo conheceu: a tirania do mais fraco sobre o mais forte. E não se iluda pensando que passou a época do desrespeito à mulher na publicidade. Talvez antes, quando lindas mulheres maquiadas em seus vestidos rodados e bem acinturados eram retratadas ostentando um belo e suculento assado em uma mão enquanto pilotavam o aspirador de pó na outra, eles fossem mais sutis.

Essa postagem faz parte de uma blogagem coletiva cuja ideia partiu de Silvia Azevedo.

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