“Não existe imagem que mais tranquilize a alma que a imagem de uma criança adormecida. Seus olhinhos fechados dizem que o seu pequeno corpo está fechado dentro de si mesmo, num ninho de silêncio e escuridão.Mas é comum que essa tranquilidade seja precedida por uma luta contra o sono: a criança não quer dormir. Ela tem medo da escuridão. E o medo agita a alma.Foi pensando nisso que os músicos inventaram um tipo de música chamado “berceuse”, que é uma canção doce destinada a ajudar as crianças a dormir, Ah! Como são lindas as “berceuses” de Brahms e de Schumann! Elas acalmam a criança amedrontada que mora em mim, põem os seus medos para dormir. E enquanto seus medos dormem, eu durmo bem longe deles… Mas isso que os músicos fizeram foi apenas instrumentalizar as canções que as mães de todo o mundo inventaram para fazer seus filhos dormirem. As “berceuses” acalmam as almas das crianças.Tudo o que existe precisa dormir. O simples existir cansa. A se acreditar nos poetas e nas crianças, até mesmo as coisas. Minha filha de quatro anos, olhando os vales e montanhas que se perdiam de vista nos horizontes de Campos de Jordão, fez-me essa pergunta metafísica: “Papai, as coisas não se cansam de serem coisas?”. Fernando Pessoa teve suspeita semelhante e escreveu: “Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, há tanto tempo… Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste, brilhar ou sorrir…”. Ele, poeta, estava cansado. Olhava para as estrelas que luziam havia tanto tempo e tinha dó delas. Elas deveriam estar muito cansadas. Suas pálpebras jamais se fechavam. Seus olhos estavam sempre abertos, sem poder dormir jamais… Pergunto-me então se não haverá um simples cansaço de viver. Será que não chega o momento em que a vida diz, das profundezas do seu ser, como um pedido de socorro aos que entendem a sua fala: “Estou cansada. Quero dormir o grande sono…”Os especialistas na arte da tortura descobriram que uma das técnicas mais eficazes e discretas para se obter a confissão de um torturado era a de impedir que ele dormisse. Assentado numa poltrona confortável, o prisioneiro espera. O tempo passa em silêncio, sem interrogatório. Vem o sono. As pálpebras pesam e querem se fechar. Mas alguém que o vigia o sacode para impedir que ele durma. E assim o tempo vai passando. O desejo de dormir vai crescendo, as pálpebras pesam até um ponto insuportável. Nesse momento, a necessidade de dormir é tão terrível que o prisioneiro está pronto para confessar qualquer coisa só para poder dormir. Foi coisa parecida que fizeram com a Eluana Englaro, mulher italiana com 38 anos de idade, dos quais 17 em vida vegetativa. Seu sono sem despertar dizia que ela desejava dormir. Mas os torturadores, a ciência, as leis e a religião lhe negavam esse direito. Obrigavam-na a continuar viva contra a vontade de seu corpo, que ansiava pelo grande sono. Ligaram seu corpo a máquinas que impediam que ela dormisse. Vivia mecanicamente.  Finalmente o direito de dormir lhe foi concedido. Fantasio que ela dormiu como uma criança, ouvindo a “berceuse” de Brahms”.

Rubem Alves, em “O direito de dormir” 

O dia da perda de um dos meus maiores ídolos e inspiradores, Rubem Alves, coincidiu com o primeiro fim de semana que passo longe da minha filha, ainda que ela esteja bem aqui pertinho.
Depois de passar um dia muitíssimo agradável na companhia de uma grande amiga – amiga trazida, inclusive, por meio deste blog – e que foi interrompido pela notícia consternadora da morte de nosso grande mestre Rubem, voltei para casa e decidi ler um livro dele antes de dormir. Desejava adormecer acolhida por suas palavas… Tanto como uma forma muito pessoal de homenageá-lo e agradecer por tudo o que ajudou a promover em mim ao longo de tantos anos, quanto por bem receber o início de mais uma nova experiência de vida.

Escolhi um que estava na caixa de coisas que foram do meu pai e que eu ainda não tinha tido coragem de mexer.
Meu pai era um grande admirador de Rubem Alves, como eu sou. Trocávamos livros e mais livros do “nosso mestre”, como nós o chamávamos. Discutíamos textos dele. Presenteávamos nossos amigos com seus livros. Ambos tínhamos como nosso favorito a mesma coletânea: “Transparências da Eternidade“.
Com o livro em mãos, deitei-me confortavelmente em meu quarto, a meia luz, e deixei-me levar por

aquelas coisas lindas e delicadas que Rubem tão bem escrevia, que tanto bem fazem à alma.
Pois qual foi a minha surpresa e choque quando, na página 94 do livro – “Desfiz 75 anos” – encontrei um recadinho escrito por meu pai para minha filha Clara e meu sobrinho Murilo antes que eles nascessem…
Escrito dia 26 de junho de 2010, um mês antes do nascimento da minha filha e dois meses antes do nascimento do meu sobrinho.
Não consigo descrever a profunda emoção que experimentei. Foi como se ele, meu pai, estivesse ali comigo, naquele exato momento, acompanhando-me nas mudanças de vida pela qual estou passando, fortalecendo minhas decisões e me mostrando que a morte é algo muito diferente do que acreditamos ser. Que talvez ela nada tenha de definitivo, nem de terrível, ou de brusca. Talvez seja apenas uma outra forma de vínculo, que não se utiliza de meios materiais, mas de fluxo de emoções, amor e confiança.
Estou muito grata, nesse momento em que perdemos um de nossos maiores escritores, por ser uma sua leitora tão ávida. Por ter encontrado suas palavras há mais de 15 anos, que tantas transformações me inspiraram a promover em mim mesma. Por ter tido a imensa honra de conhecê-lo pessoalmente.

Na verdade, não o perdemos.
Apenas ganhamos.
Ganhamos infinitamente pela oportunidade que tivemos de compartilhar de sua sabedoria, doçura, assertividade e manifestações de amor.
Rubem Alves está entre aqueles que orientaram meus valores, reflexões e mudanças. E para sempre seguirá em minha vida.
E ter encontrado as palavras do meu pai no texto “O direito de dormir”, que transcrevi acima, só me mostra o quanto estamos equivocados sobre a morte e o morrer. Além de me ajudar a aceitar e compreender melhor os motivos da partida repentina de meu pai deste mundo físico.
Morrer talvez seja, muito paradoxalmente, o começo da imortalidade.
Quando aqueles que amamos passam a estar constantemente conosco…
Que seja bem vindo o mestre Rubem no reino daqueles que se tornam imortais para nós.
E onde vivem alguns dos que mais amamos nesta experiência.

*Na capa deste livro de Rubem Alves, “Desfiz 75 anos”, está escrito:

Acho que a vida humana não se mede nem por batidas cardíacas nem por ondas cerebrais. Somos humanos
, permanecemos humanos enquanto estiver acesa em nós a chama da esperança da alegria. Desfeita a esperança da alegria, a vida perde o sentido. É isso que desejo quando acendo minha vela. Peço aos deuses que me levem quando a chama da esperança da alegria se apagar.

Recado entendido…

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