“Putz, eu tinha enchido a cara naquele dia, nem imaginava que estava grávida”.

“Eu podia ter feito ioga para levar a gravidez de forma mais tranquila”.

“Eu não fiz tudo o que podia para ter um parto normal”.

“Eu não consigo amamentar meu bebê e ele chora de fome”.

“Ele não dorme a noite inteira, será que eu o acostumei mal?”.

“Ele mama de hora em hora, será que fiz alguma coisa errada?”.

Até mesmo quando a maternidade ainda mora na ideia da criança que está por vir, ela já está lá. Na hora do parto, surge sorrateira e consegue se meter entre a mãe e o bebê. Depois que ele nasce, então, vira companheira de muitas mães.

“Nasce uma mãe, nasce a culpa”.

Quem nunca ouviu essa frase? Parece que tem gente que saboreia cada palavra ao dizer: “nasce-a-culpa”, como se aquela ideia de “padecer no paraíso” fosse uma máxima inescapável das mães, quase uma condição da maternidade.

Eu queria ter feito ioga para grávidas, mas a grana estava curta. Não deu. Eu queria ter tido um parto normal, estava com uma prima como médica e outra como doula, meu companheiro me apoiando, tentei de tudo. Não deu. Eu queria ter passeado todos os dias dos primeiros meses da minha filha na hora do sol ideal, queria ter tido rotina, queria não ter usado chupeta, queria tê-la colocado na natação, na musicalização infantil, queria ter montado um quarto montessoriano, queria ter passado pelo primeiro ano dela sem nenhuma doença e sem precisar dar antibiótico. Não deu. Assim como não vai dar para cumprir com um monte de ideais, sonhos, expectativas e planos. Assim como sei que não vou conseguir poupar minha filha de todas as quedas, problemas de saúde e dores.

E fora isso, ainda tem os zilhões de estereótipos da maternidade perfeita pintados como metas possíveis para todas. Em plena era da informação, há muitos caminhos “perfeitos” ao alcance de um clique. Há fórmulas quase matemáticas para ser a mãe nota mil. Mas quando a gente senta para conversar com as mulheres que têm mil tarefas além da criação dos filhos, todas estão longe de chegarem lá e se sentem perseguindo um ideal massacrante. É quase como a ideia maluca de parecer como a modelo da capa de revista (cuja imagem é tão irreal que sequer a própria modelo é realmente daquela forma).

Junta o excesso de informação, com as múltiplas possibilidades pedagógicas, com as mais diferentes linhas de educação, com o machismo de uma sociedade em que a responsabilidade sobre a cria ainda recai imensamente sobre as mulheres e está posto um sentimento que passa a fazer parte da vida de muitas mães. Muitas mesmo. A culpa.  A culpa relacionada a ser mãe. A tal da culpa materna. 

Outro dia, ao postar um texto no Facebook sobre os palpiteiros de plantão, uma amiga que tem dois filhos com 12 anos de diferença resumiu: 

“Minha segunda maternidade foi bem mais difícil por causa dessa cobrança velada, que nem é tão velada assim, de ter que dar conta de tudo isso! A internet e os grupos estão enlouquecendo muitas mães! Até hoje me pergunto: ‘Por que diabos viver dessa forma?’. Tudo pode ser bem mais simples! Bem mais! Ser mãe 12 atrás foi leve demais! Ser mãe nessa ‘era BLW-montessoriana-livre-demanda’ é para as fortes!”

A era BLW-montessoriana-livre-demanda tem sua culpa na culpa materna. As mães de agora têm mais acesso à informação e isso aumenta o espectro da cobrança. Mas tem mais por trás desse sentimento…

Como acredito que o tema envolve muitas realidades e muitos níveis de culpa, fui atrás de mulheres que têm um repertório em suas vidas profissionais que as habilitam a falar para além de experiências pessoais, a fim de tentar desvendar melhor os mecanismos deste sentimento. Vale destacar que nem toda mãe sente culpa e isso às vezes gera até um estranhamento do tipo: “Será que estou fazendo algo errado em não sentir culpa?” . Se você tem uma relação saudável com a cria ou as crias, de amor e empatia, e consegue se desprender da culpa, excelente. Não há nada de natural na culpa. Afinal de contas, por que falamos em culpa materna e não há um equivalente paterno? A culpa materna é uma construção social e se desprender dela é ótimo, é libertador. 

Mas se você não é do time das que andam com as costas livres desse peso, espero que esse diálogo de várias vozes maternas te ajude a ir aliviando a carga.

Para a coordenadora do Instituto de Pesquisa Aplicada da Mulher, Tania Fontenele, a maior responsabilidade das mulheres sobre os filhos é uma IM-PO-SI-ÇÃO. Não é natural, viu? Não faz parte de ser mãe. A única coisa “natural” nesse processo é a naturalização cruel com que o contexto em que vivemos imputa às mães esse sentimento, como se fosse parte do pacote “ser mãe”.

“A maternidade é algo construído. Não deveria haver uma obrigatoriedade em ser algo exclusivo da mulher. É um tema que tem gerado muito conflito porque as mulheres estão no mercado de trabalho. Desde o começo do século XX, as mulheres saíram da obrigatoriedade do mundo privado e foram para o mundo público. Infelizmente, ainda estão pagando um preço muito alto por essa independência” , diz.

O peso maior que recai sobre as mulheres, ela acredita, é um fator gerador de culpa, principalmente quando está relacionado à divisão do tempo entre a casa e o trabalho.

“A cisão entre o mundo do trabalho e o mundo privado acaba gerando disfunções e quem mais sofre com isso são as mulheres”.

Para Tania, quando acontece uma divisão do trabalho doméstico mais equitativa, essa culpa tende a cair.

A culpabilização das mulheres em relação ao que seria ideal é uma força opressora que nasce, muitas vezes, de dentro da gente. Somos as piores juízas de nós mesmas. Tania, que é mãe, economista, mestre em Psicologia Social e especialista em Políticas Públicas e Gênero também acredita que a pressão sobre as mães aumenta com a cobrança social e com o excesso de marketing sobre a maternidade perfeita.

“Há muito essa noção de que a mulher deveria fazer isso ou aquilo. Mas a gente tem que entender que cada mulher faz o que é possível. Claro que tem machismo aí, não podemos negar o enorme machismo que existe na nossa sociedade, mas a raiz não é só o machismo. Tem questões de valores sociais, culturais, religiosos. A culpa também é uma questão cristã, no sentido de: “Eu tenho que carregar essa cruz”; “Eu nasci pra sofrer”; “Mulher tem que sofrer”; “Tudo tem que ter dor”. Rola muito essa questão de mulher-maravilha. Nós não somos mulheres-maravilha!!!!!! Somos seres humanos, com nossas dificuldades e fragilidades. Por que temos de carregar as dores do mundo?”, reflete.

E complementa: 

“Já tem que ensinar música com seis meses? Ensinar inglês e francês? Essa ansiedade social deixa as mães sobrecarregadas”, dispara Tania. 

O sistema social em que estamos inseridas, em que o poder político é dominado pelos homens, é adubo para a semente da culpa. Vanessa Dios, mãe, psicóloga e presidenta da Anis – Instituto de Bioética, explica que o patriarcado nos acompanha e é difícil romper com ele. 

“O patriarcado é atualizado pelas pedagogias de gênero, ou seja, pela forma como entendemos que as pessoas sexadas como homens e mulheres devam estar no mundo. Mulheres que optam por não ter filhos, por exemplo, desafiam a pedagogia de gênero, pois vão contra aquilo que a sociedade entende que deva ser papel da mulher. Assim, crescemos entendendo que ser mulher é gostar de cuidar da casa, de cozinhar, de ter filhos e família. O patriarcado é atualizado por essas crenças e vivências que estão arraigadas na nossa sociedade. Já houve muita mudança, mas ainda não conseguimos romper de todo com o patriarcado”, reforça. 

Para Vanessa, a culpa pode vir da maternidade, mas pode vir também do fato da mulher não ser mãe, além de uma série de outras cobranças sociais ou até mesmo internas.

“O incômodo, que poderemos chamar aqui de culpa ou de alguma outra coisa, ocorre, no meu entender, quando as mulheres tentam romper com essa norma social instituída na qual as pessoas têm de se comportar de uma determinada forma e não de outra”, ela diz.

E aí entra uma matemática que a maioria de nós sabe que é desigual: a construção de papéis sociais reservou para as mães, na maior parte das vezes, a “dupla jornada”, mesmo depois de termos entrado no mercado de trabalho e muitas vezes acumularmos mais funções do que os pais na vida fora de casa.

“Ainda não conseguimos romper com o patriarcado, nesse sentido, é a mulher que ainda assume a tarefa de cuidado com os filhos e com a casa”, lamenta Vanessa.

É fato que a configuração social ainda nos oprime, ainda nos coloca em situações desvantajosas, ainda faz parecer que temos de fazer muito mais pela casa, pela família e pelos filhos do que os homens, mas é inegável que muitas de nós também vestimos a carapuça da super-mulher e vamos acumulando responsabilidades. Muitas vezes, até com certo orgulho, com uma ponta de felicidade em colher os louros: os elogios por ser uma mãe incrível, o reconhecimento por dar conta de tudo, o orgulho em ter-o-filho-mais-inteligente-da-família-que-come-de-tudo-que-já-sabe-amarrar-o-sapato-aos-dois-anos-que-sabe-cantar-beatles-que-já-conta-até-dez-em-japonês-quesabe-o-nome-das-plantas-e-peixes-da-casa-que-nuncaficou-com-o-bumbum-assado-que-nunca-fez-birra-que-não-chora-pra-vacinar-que-dorme-a-noite-toda-desdesempre-que-não-quer-ir-no-colo-de-ninguém-só-no-da-mamãe e ainda estar com as unhas feitas, com as roupas de antes da gravidez cabendo, com a leitura em dia, apesar de trabalhar, levar menino na escola, fazer compras, costurar a fantasia… Ufa! Às vezes, somos nós que nos colocamos em situações em que vai ficando difícil girar tantos pratinhos. 

“O sofrimento da mulher está associado à expectativa que ela mesma cria do que ela acredita que seja ideal. Muitas vezes, esse modelo ideal está calcado num modelo patriarcal” , reforça Vanessa.

“É claro que o pai precisa participar da criação dos filhos, mas as mães precisam permitir que isso aconteça. E muitas mães não permitem” , pondera a mãe, psicóloga e psicanalista Susan Isozaki.  Para Susan, esse lugar de se sentir importante, de ser o alvo do maior amor da criança, ou das crianças, é muito sedutor.

“E muitas mulheres não conseguem dividir esse lugar de responsabilidades e de cuidados com os pais. Como a mãe acaba assumindo esse papel fundamental, a carga maior acaba ficando nela e isso conta muito para essa questão de se sentir tão culpada”, diz.

“Mesmo com todo o movimento feminista, é muito difícil não se colocar nesse lugar de ser tão fundamental na vida dos filhos”, reflete Susan. 

Buscando não generalizar, mas considerando uma situação ideal de uma mulher que desejou ser mãe em um contexto favorável, em que a gestação é recebida com felicidade e segue sendo motivo de alegria, Susan explica que é comum, à luz da psicanálise, a mulher viver um sentimento de completude. 

“É da natureza do ser humano ser incompleto. A gente vive em busca dessa completude e em momentos pontuais a gente vive esse sentimento. A gravidez é um deles”, diz. “Quando o bebê está na barriga da mãe que está sendo acompanhada, amparada, esse momento em geral é mais tranquilo, é um momento de menos riscos, com vários fatores contribuindo para garantir a proteção do bebê. A mulher, então, vai conseguindo manter essa situação de completude e plenitude. Até que o bebê nasce ou ela perde o bebê. É quando a mãe percebe que não tem controle sobre tudo e a sensação de plenitude acaba. Porque, na verdade, essa sensação é uma ilusão. Você vive esses momentos de plenitude até se dar conta de que não é completo ”.

Susan faz uma comparação dessa plenitude da maternidade com um relacionamento amoroso. 

“Por que, no relacionamento amoroso, quando algo dá errado, não nos sentimos tão culpados e na maternidade vem a culpa? Porque quando somos mães, nos relacionamos com um serzinho que não tem responsabilidade na relação. A mãe se sente responsável por tudo em relação ao bebê, à proteção do bebê. Quando ela percebe que é falha, que não é superpoderosa para protegê-lo de todos os males, vem a culpa.”

“A culpa não vem quando está tudo bem. É nos momentos em que algo não dá certo que você se sente culpada. É natural que as mães passem por esse momento de se sentirem completas com o bebê. É natural e fundamental na formação psíquica do bebê.  É natural que a mãe sinta alguma culpa, que queira proteger quando o bebê é pequeno. Mas isso precisa ir diminuindo, para que a criança aprenda a se proteger sozinha, aprenda os limites da vida e do corpo. O grande problema é quando essa culpa começa a interferir e vai criando raízes na formação do sujeitinho que está ali se criando”, destaca Susan.

Para ela, superproteção e culpa caminham muito juntas. 

“Uma coisa que está em geral muito associada à culpa é a impotência: ‘Que mãe sou eu se não consigo colocar meu filho na melhor escola?”; ‘Que mãe sou eu se não tenho tempo para levá-lo na aula de música?”.

É bom ressaltar: os “erros” maternos são parte importante da formação de uma criança. Ou seja: está tudo bem em falhar. Ou melhor, é importante para o seu filho que você seja falível. 

“As impotências são necessárias para a formação do sujeito, são elementos fundadores da subjetividade de uma criança”, diz Susan. 

O natural é que a gente não aceite essas impotências. A psicanálise traz essa questão como alívio: aceitar as impotências e entender que elas são parte da vida e não necessariamente coisas ruins, não “coisas de perdedor”, é fundamental.

“Essas falhas são importantes até para as crianças se liberarem um pouco das garras superprotetoras dos pais e da autocobrança, para não criar um modelo muito inalcançável”, pondera Susan.

O modo como a mãe exerce seu papel no dia a dia com o bebê vai servir de modelo para ele. Mães que não falham podem criar filhos que não se sentem protagonistas da própria vida ou que acham que não são bons em nada.

Importante: se você acredita que sente muita culpa, é bom verificar se é só na maternidade, ou em outras áreas da vida

“O jeito como a pessoa é na vida interfere na maternidade. As mães que se culpam muito e querem ser muito perfeitas, são assim na vida também: querem ser perfeitas na vida, perfeitas em tudo e têm dificuldade em aceitar que erraram”considera Susan. Se você acha que sente culpa demais e isso te sufoca, chega a ser incapacitante, talvez seja importante procurar aconselhamento. 

Agora, se a culpa materna chega como uma onda ruim em uma maré normalmente agradável, estamos falando de uma construção social. E aí pode ser que falar sobre isso, dividir com outras mães, ajude a entender que está tudo bem em “falhar”, “errar”, “tropeçar” ou deixar, literalmente, a cria tropeçar. Não se cobrar sobre os muitos “tem que” também pode ser um bom começo: desde etapas naturais do desenvolvimento da criança (nenhuma criança “tem que” fazer o que as outras fazem na mesma idade) até as mil possibilidades de atividades, escolares ou não, que você ouviu dizer que fazem bem para o seu filho ou filha.

“A palavra é equilíbrio. As coisas estão muito impostas. Temos de ficar mais tranquilas, respirar, fazer o que é possível, diminuir, frear. A questão é que fica parecendo que tem que ser tudo muito, as performances têm que ser incríveis. E a vida não é perfeita, é cheia de imperfeições, assim como nós. Precisamos aceitar isso e seguir mais tranquilas. A gente não pode carregar tudo nas costas. A gente tem que equilibrar” , reforça Tania Fontenele.

Para Viviane Dios, conversar sobre gênero nas escolas e no dia a dia seria um caminho para minimizar a violência e sofrimento vivenciados por muitas mulheres. 

“Essa é uma caminhada longa e que não depende apenas da mulher. Depende de uma mudança mais ampla, uma mudança social”, diz.

  • Se você acha que trabalha demais, é possível trabalhar menos? Se não for, que tal potencializar o tempo livre com a cria? Largar o celular, desligar a tv e ler um livro juntos? Incluir a criança na hora de fazer alguma atividade rotineira pode ser uma forma de passar um tempo mais intenso convivendo, mesmo que pareça que a atividade é chata. Enquanto você pode achar um saco consertar uma coisa que quebrou, a criança pode achar aquele momento uma super brincadeira.
  • Se você acha que seu filho está comendo mal, que tal melhorar a alimentação de toda a família? Incluir todo mundo na elaboração do cardápio, procurar receitas interessantes e melhorar os hábitos de todos.
  • Se você não pode pagar a escola que tem a pedagogia incrível com a qual você sempre sonhou, que tal assistir a uns vídeos na internet que podem te inspirar a fazer atividades simples em casa? Se a criança caiu da cama, que tal colocar uma grade de proteção ou passá-la para o colchão? Pense que quase todo mundo tem uma história dessa para contar… Lembra daquela foto de você bebê com sal na testa? 
  • Se, por alguma razão, não rolou de amamentar, que tal fazer com que o momento da mamada seja aconchegante, olho no olho, corpinho sentindo a energia de amor?
  • Se precisou viajar a trabalho, que tal mostrar que a mamãe vai numa boa, para que a criança sinta que está tudo bem? Quando voltar, que tal programar um tempo especial para matar a saudade e se reconectar?
  • Está sentindo que precisa de um tempo só pra você? Acione sua rede de apoio e vá feliz encontrar as amigas, fazer uma caminhada, tomar uma cerveja, chegar tarde em casa. Mais vale uma mãe que se ausentou para cuidar de si e voltar com as energias renovadas do que uma mãe que fica 100% do tempo dedicada à cria, porém esgotada.
     

Respire. Conte até 10. Pense que você está fazendo o seu melhor. Mesmo que não seja a sua melhor versão que está todo dia ali sendo mãe. E, acima de tudo, não se cobre tanto. Como disse a Tania, ali em cima, somos as mães que podemos ser. Sabe quando a gente canta desafinado e mesmo assim a cria dança feliz e bate palma? Ou quando fazemos uma comida bem mais ou menos e ela devora o prato todo? Ou quando você está descabelada e com olheiras de panda e ela olha pra você e diz que você é linda? No fim das contas, é muito mais sobre a gente. Eles estão ali, achando um tanto do que consideramos fracassos como coisas fantásticas. E se achar que errou feio, peça desculpas, mostre que você é de carne e osso e convide a criança a caminhar ao seu lado.

Nem na frente, nem atrás. Ao lado. Sendo aprendiz e mestre. Assim como você.