Tempos tão duros, uma pandemia, uma crise econômica, social e política incomparável, tanta gente sofrendo. Quando não estamos no nosso melhor, corremos o risco de ensinar aos nossos filhos um amor doente, um amor que fere. Como educar com amor e, sobretudo, como ensinar sobre amor em tempos onde todo mundo está sofrendo?
Recentemente, assisti ao documentário Humano – Uma viagem pela vida. Nele, entre tantos depoimentos, um homem conta que durante sua infância seu cuidador o surrava com fios elétricos, pedaços de madeira, o que tivesse próximo, e dizia que fazia isso porque o amava e que doía mais em si do que nele. Só muito tarde é que esse homem entendeu que seu cuidador havia lhe passado uma ideia adoecida sobre o que é o amor e que, durante muitos anos, achou que o amor precisava fazer mal e que a medida do amor e do amar estaria no tanto de dor que uma pessoa pode suportar por você. E ele não se espanta que tenha feito tanto mal a quem amou, porque foi esse o amor que aprendeu.
Esse é o amor doente. E não está presente apenas na relação entre mães, pais e filhos, mas em todas as relações onde se subentende afeto: um amor que é uma pulsão desviada da plenitude para a angústia, do prazer para o sofrimento, do entendimento para a imposição. Nossa geração talvez tenha sido a última criada sob essa hegemonia, porque nossos pais, mães, avós, não puderam contar com os debates que fazemos hoje, com as discussões sobre a importância de crescermos amados e protegidos, de estabelecermos relações respeitosas e compreensivas. Hoje nós falamos sobre, temos estratégias para lidar com diferentes situações de interação afetiva e parentalidade e um dos nossos maiores desafios é, justamente, fazer com que esse debate esteja ao alcance de todos. Mas, por muitas gerações, esse amor doente nos foi ensinado como forma de nos relacionarmos – e, também, de criar filhos.
Quando nos comprometemos a desenvolver um amor sadio, com base no respeito ao direito que o outro tem de viver sem opressões, sem violência, sem ameaças, chantagens ou outras formas de sujeição, nós nos transformamos completamente. E é claro que não fazemos isso para enfrentar crises mundiais como uma pandemia ou a destruição política de um país, fazemos porque queremos uma vida emocionalmente mais saudável, para nossos filhos e também para nós. Mas é inegável que essa forma de viver traz benefícios inclusive quando passamos por crises humanitárias como a que estamos vivendo.
Estamos todos feridos, exaustos, angustiados. Tivemos que viver confinados com as pessoas que amamos ou longe delas. Muitos perderam seus amores. Está doendo ver a fome voltar com tudo num país que já a tinha controlado, ver o desmonte da Ciência, conviver com negacionismos das mais diversas ordens. Porém, para famílias e relações onde o compromisso com o entendimento, a compreensão, o amor e a não violência já estava posto, tem sido menos difícil atravessar esse vendaval. Imagine como tem sido em famílias em que a violência existe e os gritos imperam. Como estão essas crianças, precisando administrar suas próprias angústias e os reflexos das angústias dos adultos, expressos em ainda mais violência?
No início da pandemia de covid-19, a UNICEF emitiu uma nota alertando para a possibilidade de que as crianças fossem mais violentadas, agora que ficariam confinadas com os adultos. E sim, infelizmente foram. Mas esse aumento da violência não pode ser atrelado, unicamente, ao fato de que não estamos em nosso melhor. Deve-se também ao fato de que em grande parte das relações e dos lares ainda imperam comportamentos opressores, violentos, patriarcais, uma forma de educar em que a criança não é vista como sujeito de direito, onde o “eu mando, você obedece” é a ordem, e isso independentemente de uma crise generalizada.
Quando nos comprometemos com uma forma de amar mais saudável, isso também nos ajuda a atravessar momentos críticos sem ferir quem amamos. Porque em momentos críticos como o que estamos atravessando, por maior que seja o sofrimento, lembramos que o outro também está sofrendo. E o reconhecimento do sofrimento do outro faz com que não depositemos sobre ele o nosso próprio.
Muitos adultos estão gritando mais, ou perdendo a paciência com mais facilidade, em função de seu próprio sofrimento. Acontece? Sim, infelizmente acontece, gritos e outras formas de agressão estão acontecendo com mais frequência tanto com as crianças quanto com outros adultos. Mas não podemos invisibilizar ou apenas dizer “tudo bem”. Não é tudo bem. É preciso olhar para isso como sofrimento e, como tal, acolher. O seu e o do outro.
“Desculpe por ter gritado, hoje estou angustiada demais, nervosa, com medo, exausta. Sei que não devia gritar, mas hoje está muito difícil”. Isso abre a porta para o acolhimento, no lugar de culpar o outro, que também está sofrendo, pelo seu sofrimento. Nós não recebemos uma educação em que assumir o próprio sofrimento seja sinal de força, pelo contrário. Falar sobre nosso próprio sofrimento sempre foi visto como sinal de fraqueza. Mas aí está uma das bases do ódio: transformamos nosso sofrimento em arma contra o outro.
Como educar com amor e sem ódio, portanto, em tempos de amplo sofrimento? Lembrando do nosso compromisso com o amor saudável, partindo do reconhecimento do nosso sofrimento, falando sobre esse sofrimento para quem amamos, não transferindo como arma para ele, estabelecendo pontes amorosas entre todos os nossos sofrimentos.
Lembro de um dia, no meio da pandemia, em que eu estava péssima, os casos descontrolados, gente querida internada, minha filha angustiada por estar presa em casa, sem os amigos dela, eu tendo que conciliar trabalho, aula online, cuidado com a casa, tudo muito difícil. Ela começou a chorar, eu fiquei irritada porque não estava bem para acolhê-la, então comecei a chorar também e, quando vimos, estávamos abraçadas nos acolhendo e falando sobre como estava tudo difícil, mas que iríamos ficar juntas e iríamos passar por aquilo. Pouco depois, já estava tudo bem entre nós. Os problemas que enfrentávamos sumiram naquele momento? Não, estavam todos lá. Mas nos reconhecemos em nossas dores, no lugar de nos atacarmos com elas. Amor não é o tanto que o outro suporta de dor por você, é o quanto nos esforçamos conscientemente para nos acolhermos em nossas dores.
Romper as relações de poder é urgente para educar com amor, ainda mais em tempos difíceis
Como nos relacionamos entre adultos? Nós nos sentimos confortáveis em dar ordens aos outros? “Ei, João, vá agora recolher as roupas do varal que estou mandando”, “Maria, já mandei você calar a boca”. Se João e Maria forem adultos, não consideramos esses comportamentos aceitáveis. Por que, então, achamos que com as crianças seriam?
Porque vivemos em uma sociedade adultocêntrica, que só vê como sujeito de direito os adultos, as crianças não. É desse olhar que vêm frases que são ditas com frequência às crianças, como “Cala a boca agora!”, ou “Engole esse choro”, “Se você não recolher esse brinquedos do chão eu vou colocar tudo num saco e vou jogar no lixo”. Essa forma de educar foi bastante naturalizada e vista como aceitável nas décadas anteriores, quando a família patriarcal ainda era considerada modelo de família. Mas estamos caminhando há muitas décadas para o reconhecimento dos direitos que todos temos, para que relações familiares não sejam construídas com base em opressão. Por que fazemos isso com as crianças? Porque elas não têm voz ativa. Então é preciso que nós, que já enxergamos essa desigualdade, as representemos.
Como fugir desse padrão, ainda naturalizado, de exercer controle sobre as crianças com base em uma suposta desigualdade de poder? Primeiro, enxergando que essa relação desigual existe. Quando nem vemos isso, fica impossível transformar. Segundo, entendendo que maternidade e paternidade não é sobre quem manda e quem obedece, é sobre quem cuida e quem é cuidado. E cuidado não subentende submissão, mas entendimento.
Como fazer na prática?
1) Reconhecendo a real condição da criança
2) Exercitando uma comunicação assertiva
3) Usando uma relação correta de causa-consequência
4) Reduzindo as expectativas
O que é o reconhecimento da real condição da criança? É ter clareza sobre se aquilo que você quer que a criança faça encontra nela condições de ser feito. Quer que todo o quarto dela esteja impecavelmente organizado? Ela tem 4 anos? Impossível. Uma criança de 4 anos não tem condição de fazer isso. Sobre comunicação assertiva: é fundamental que aprendamos a dizer exatamente o que precisa que seja feito, que digamos exatamente como estamos nos sentindo. Veja: “Tudo nessa casa sou sempre eu que tenho que fazer, que saco, olha essa sala, esse caos, é todo dia esse inferno!”. Não há mensagem assertiva aqui. “Eu preciso que vocês juntem os brinquedos, as comidas, joguem as coisas no lixo, porque estou muito cansada hoje, preciso que me ajudem, não vou conseguir sozinha”. Isso leva uma mensagem eficiente. Sim, eu sei que muitas vezes estamos exaustos e emocionalmente abalados para conseguir refletir sobre nossas palavras antes de dizê-las. Porém, se não falamos assim com nossos chefes ou superiores no trabalho, por que falamos assim com as crianças? Porque aceitamos que exista uma desigualdade de poder. Quando deixamos de aceitar isso, entendemos que se ninguém tem o poder de se dirigir assim a nós, também não temos o poder, nem o direito, de nos dirigirmos assim a elas. Crianças não são nossa propriedade.
Sobre o terceiro tópico, trabalhar com relação correta de causa-consequência: tirou todas as roupas do guarda-roupa? Não vai dar para brincar de outra coisa enquanto as roupas não tiverem sido colocadas novamente lá. Isso é uma relação correta de causa-consequência. Deixar a criança sem assistir o filme que quer à noite por causa disso, não é. E, por fim, redução das expectativas: muitas vezes, como mães, pais e cuidadores, temos expectativas surreais com as crianças e exigimos delas coisas que nem mesmo nós conseguimos fazer, ainda mais em momentos difíceis. É preciso ter os pés no chão e sempre nos perguntarmos: “Tá demais?”. Se a resposta for: “Sim, está”, recuar e reduzir.
Manter a coerência: nosso bote salva-vidas para esses tempos de dor
Nesse mundo corrido, produtivista, onde trabalhamos cada vez mais para pagar cada vez mais contas, e tudo isso ainda tentando sobreviver a um vírus e a uma crise sociopolítica, simplesmente abandonamos a ideia do autoconhecimento. E aqui estou falando numa perspectiva nada mística, muito pé no chão: quem eu sou, como foi minha educação, o que me machuca, onde estão minhas dores, quais os meus limites, como eu amo, como me comunico, quais as minhas vulnerabilidades, é disso que estou falando. A gente precisa se conhecer, antes de querer bem educar alguém. Como vou ensinar minha filha a respeitar todas as pessoas se eu mesma não respeitar? Como vou exigir dela que fale sobre o que está sentindo se eu mesma não falar? Como vou ensiná-la a acolher suas angústias no lugar de descontar em mim, ou no seu pai, ou em suas irmãs, se eu não fizer isso?
Essa é uma coerência fundamental. Não apenas porque as crianças aprendem por nos verem fazendo, mas porque esse é o objetivo último da educação.
Buscar a coerência constante entre que tipo de amor queremos ensinar, se um amor que compreende ou um amor doente, e nossos próprios comportamentos e nossa própria forma de amar é um bote salva-vidas que nos ajuda a atravessar temporais, pandemias, sofrimento e gente fascista. E o bom é que nesse bote cabe todo mundo. Sofrendo? Sim. Mas tentando, juntos, sobreviver. Com amor e remando na mesma direção.
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Parte do meu trabalho é orientar e apoiar mulheres nas diversas questões de suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças.