Para muitos profissionais de saúde ela não existe. Para algumas mulheres também não. Pelo menos elas não reconhecem, ou melhor, não sabem nomear o que passaram no momento do nascimento dos seus filhos.

 

Apesar de perceberem que algo saiu errado, de terem ficado sozinhas, isoladas, privadas de comer, de beber um copo de água, de gritar, de se movimentar, essas mulheres se conformam que é assim mesmo. Afinal, o médico estudou tantos anos e sabe o que faz. A noção de que foram vítimas pode nunca ocorrer ou levar anos para que aconteça.

 

Colocadas lado a lado, parindo, sem privacidade e deitadas em posição ginecológica, algumas delas são, inclusive, amarradas à maca, mesmo diante das dores das contrações. Tricotomia (raspagem dos pelos) e lavagem intestinal são alguns procedimentos padrões feitos sem qualquer embasamento científico.

 

A lei federal que determina que a mulher seja o tempo todo acompanhada por uma pessoa de sua escolha existe, mas também não sai do papel. A presença dessa pessoa é fundamental não só para dar apoio à gestante, mas também para cobrar que ela seja respeitada e atendida. Se houver abusos, esse acompanhante também poderá servir como uma testemunha caso ela deseje ingressar com um processo na justiça como tem sido feito por muitas vítimas.

 

Aliviar as dores com uma analgesia também é para poucas pois nem todo  hospital tem anestesista de plantão. Quando tem, nem sempre são ministradas as doses corretas o que faz com que a mulher mal consiga se mexer e acaba indo direto para uma cesárea que poderia ser evitada.

 

Com dor, sem anestesia, sozinhas, essas  mulheres são diariamente cortadas, ou melhor,  multiladas sem o seu consentimento durante o parto normal. A chamada episiotomia (corte desnecessário feito entre a vagina e o ânus no parto normal) pode provocar dor e causar danos irreparáveis na vida dessa mulher.

 

Há casos denunciados de cortes tão invasivos que provocam estragos maiores ainda. Algumas mulheres, inclusive, passam a ter problemas para urinar e até evacuar. Muitas são obrigadas a passar por cirurgias reparadoras. Em hospitais escolas há relatos de mulheres que são usadas como “cobaias” para que o residente aprenda a fazer uma episiotomia ou use um fórceps apenas “para aprender” mesmo não havendo necessidade de utilização desses procedimentos.

 

De acordo com o Ministério Público Federal, que abriu um inquérito civil público para investigar os maus-tratos na hora do parto, as parturientes também sofrem xingamentos e chegam a ouvir ofensas como  “na hora de fazer foi bom, né?” ou “cala boca que ano que vem você está aqui de novo”.

 

Como os casos são mais gritantes ou mais divulgados no parto normal, muitas mulheres falam logo que preferem passar por uma cesárea do que ter o mesmo sofrimento vivido pela tia ou a amiga da vizinha. Se engana, no entanto,  quem pensa que os abusos não ocorrem durante a cirurgia.

 

Na cesárea os abusos começam quando a mulher é levada para a cirurgia agendada e sem uma real indicação, o que é mais arriscado para ela e o bebê. Há ainda inúmeros relatos de mães que estão lá anestesiadas esperando o nascimento do seu bebê enquanto os médicos falam sobre o resultado do jogo do seu time ou como foi o churrasco de fim de semana. Ela está lá, anestesiada, amarrada, sem saber o que está acontecendo com seu corpo e seu bebê. “Será que ele está bem?”, “Já nasceu? Por que ele não chora?” ou ainda  “Doutor, estou sentindo a dor. A anestesia não pegou direito”, diz uma parturiente que é ignorada e chora de dor – não de emoção – durante o nascimento do seu filho.

 

O bebê nasce bem, é mostrado para a mãe meio de longe e já é levado para os exames sem que ela possa segurá-lo e acalmá-lo.  A mulher se sente um bicho abandonado que depois fica horas longe da cria, sozinha, se recuperando da anestesia. Enquanto isso, o pai, os tios e os avós, tiram fotos, presenciam o primeiro banho do bebê, compartilham tudo nas redes sociais sem que esse momento único seja vivenciado pela mãe.

 

Sabemos da longa carga horária dos médicos, da má remuneração por parte dos planos de saúde, mas nenhuma paciente pode ser tratada de forma mecânica, automática, assim como faz o operário que aperta o parafuso na linha de montagem de uma fábrica. Ela não é uma máquina como a do operário e, apesar do médico já ter feito 10, 20, 50 partos, aquele momento é único para aquela mulher que precisa ser tratada com respeito. É por isso que a humanização do parto é tão importante.

 

Os traumas vividos durante o parto podem causar efeitos gigantescos na vida sexual e reprodutiva de nós, mulheres. Sem entrar no mérito de depressão pós-parto que desencadeia da falta de contato pele a pele com o bebê e da ausência de tratamento respeitoso e humano na hora de parir.

 

As consequências vão desde não conseguir mais manter relação sexual com o companheiro por dor, pelo medo de ser tocada novamente ou por danos psicológicos. “Não quero transar mais para não correr o risco de engravidar e passar por tudo aquilo de novo”, diz uma mulher após sofrer episiotomia no seu primeiro parto.

 

É preciso reconhecer e  nomear o que acontece nas maternidades públicas e privadas do Brasil. O nome disso é VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA, que precisa ser denunciada e combatida.

 

Pesquisa de 2010 da Fundação Perseu Abramo mostrou que uma em cada quatro mulheres foi vítima de violência obstétrica. Os números certamente estão subestimados já que as próprias vítimas têm dificuldade em reconhecer o que sofreram.

 

Toda parturiente que reconhece que o parto não desencadeou de maneira adequada deve pedir seu prontuário médico – esse documento é seu de direito – e procurar um advogado ou a própria Defensoria Pública para ingressar com processos contra os maus profissionais e as unidades de saúde.

 

Reúna além do prontuário os exames feitos durante a gestação e outros documentos que

tiver para embasar melhor a ação.  Há ainda canais de denúncia como o de Violência contra a Mulher (180) e o disque-saúde (136) que podem ser utilizados.

 

O cenário obstétrico brasileiro só vai mudar com denúncias e a punição de quem não age corretamente com os seus pacientes. É preciso também que a formação desses profissionais – médicos, enfermeiros ou auxiliares de enfermagem – seja modificada o quanto antes. A humanização do nascimento e o combate à violência obstétrica precisam fazer parte da grade curricular nas faculdades de medicina.

 

Os futuros doutores necessitam aprender mais sobre a MBE (Medicina Baseada em Evidências) e também sobre como respeitar um paciente, principalmente em um momento tão delicado e importante como no nascimento de um filho.

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