Nesse mês da Consciência Negra eu, mulher Preta, mãe, venho partilhar do meu histórico de resistência.

Aos 16 anos, engravidei do meu primeiro filho. Eu estava no ensino médio, mas não tinha planos de cursar faculdade, um fato recorrente entre meninas das periferias. Mas quando meu filho tinha 2 anos, resolvi tentar e comecei Relações Internacionais em uma universidade particular. A mensalidade era alta e eu não tinha como pagar. Tentei uma bolsa e consegui em Florianópolis, mas mesmo assim o valor era alto. Em 2008, fiz minha última tentativa de pagar uma universidade. Não consegui… E entrei numa fossa gigante. Já havia tentado cursar a particular e não havia conseguido bancar as mensalidades. Meu foco era a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mas decidi prestar UDESC (a Universidade do Estado de Santa Catarina), só pra treinar. Tentei Pedagogia. E passei! Foi um ano difícil, eu e minha mãe passamos todos os tipos de adversidades que se pode imaginar, mas para nós duas o sonho da universidade falava mais alto.

Mas eis que, então, conheço um pinta, todo galã, cheio de amor pra dar. Nós começamos a nos relacionar e eu engravidei, pois fiquei com vergonha de pedir a pílula do dia seguinte no posto de saúde e não tinha dinheiro pra comprar. Quando cheguei no posto, lá estavam várias vizinhas e a atendente sempre falava muito alto. Para que eu conseguisse o atendimento, tinha que falar porque eu estava ali. Eu não queria falar o real motivo, então disse que estava com dor de estômago. Não me deixaram passar por atendimento. Fui embora, contando com a sorte de não engravidar. Engravidei do meu segundo filho. Não tendo coragem para abortar, voltei a São Paulo e abandonei o curso. Chorei todos os dias da minha gravidez… Mas quando meu filho nasceu, eu pensei: "Preciso dar um futuro para ele e para meu filho mais velho" e teria que ter um motivo muito bom pra convencer minha mãe a voltar pra Floripa.

Comecei a pesquisar sobre a UFSC, sabia que tinha restaurante a R$ 1,50 e, então, decidi tentar. Tentei Psicologia, que era um sonho, por causa das disciplinas biológicas que, para mim, eram muito difíceis, devido à escola pública em que estudei. Poderia tentar Relações Internacionais, que era o curso que fiz por 2 anos em universidades particulares, mas resolvi focar no meu sonho.

Estudei durante os meses seguintes e, juntando a grana dos salgadinhos que eu e minha mãe fazíamos, comprei os livros. Li todos, com o bebê pendurado no peito, além de cuidar dos meus dois sobrinhos, da mesma idade que ele, que ficavam comigo e com minha mãe. Continuamos juntando grana pras passagens e estadia nos dias do vestibular. Viemos, eu e minha mãe, e fiz a prova. Só tínhamos dinheiro para comprar macarrão instantâneo. Passamos os 3 dias à base de macarrão instantâneo, chá e muita determinação.Durante a prova, meu filho chorava copiosamente e eu desci duas vezes em cada dia para amamentá-lo. O choro dele ecoava por toda a escola e meu coração ficava na boca, pensando "Ou eu morro em função do estress da prova, ou dos estudantes que vão me matar quando sair daqui…". Sempre saía primeiro que todo mundo, preenchia a prova quase que por obrigação.

E graças à  querida disciplina de História, na prova dissertativa, dia 20 de janeiro vi o resultado: EU HAVIA PASSADO! Não podia comemorar alto porque ninguém da minha família, além da minha mãe, queria que eu passasse, pois todos diziam: “Deu, Angela! Agora você tem que se dedicar à MATERNIDADE! Você é mãe agora, não vai dar pra ficar 5 anos estudando”.

Enfim, chegamos em Florianópolis.

Mochilas e um bebê de 8 meses – meu mais velho ficou em São Paulo com o pai. O primeiro baque foi a casa. Alugamos à disstância e a casa não tinha banheiro, o único que tinha eram ruínas descendo um monte de mato. Um barraco onde logo no primeiro dia vimos um rato. As duas apavoradas e tristes com a situação da casa, mas focadas. Chegamos com pouquíssimo dinheiro. Minha mãe rapidamente arranjou trabalho. Mudamos de casa, agora um porão com fios elétricos expostos pra todo lado. E então começaram as aulas…

Vim acreditando que o colégio que havia dentro da universidade era destinado a alunos da universidade. Ao chegar, descobri que era particular. Na época, pelo valor de R$ 700,00 o período integral. Eu precisava integral. Lascou. Encontrei, então, uma outra escolinha por R$ 630,00, e eu ainda teria que levar o lanche. Já na primeira semana, eu saía mais cedo, subia a pé a rua para pegá-lo para que pudesse descer e almoçar no Restaurante Universitário, já que não tínhamos muita comida em casa.

Com o passar do tempo e das aulas, as coisas passaram a fluir melhor, com exceção das matérias biológicas. Eu conseguia ler os textos, participava, mas muitas vezes tinha que faltar. Minha mãe deixou o serviço e eu consegui as bolsas estudantis.

Uma pausa.

Essa narrativa é pra que vocês entendam a complexidade do PERMANECER, não pra ter piedade, nem dó, mas, sim, para que indignem pela falta de estrutura para uma jovem, descendente de pessoas que foram sequestradas, que sobreviveram e nunca foram indenizadas por esse Estado pelas atrocidades cometidas com as minhas e meus ancestrais. Eu preciso de justiça para meu povo.

Durante o primeiro ano, tive vários problemas com o pai do meu filho mais novo. Precisei pedir apoio a alguns professores, os quais me apoiaram no sentido de permitir que eu fizesse alguns trabalhos e que me deixaram fazer as provas. Somente um não me respondeu. Tive muitas dificuldades, principalmente em virtude de falta de aula para o Pedro, o caçula, na creche. Minha mãe conseguiu com uma professora muito querida um trabalho de doméstica que dava flexibilidade. Nos mantivemos assim por muito tempo. Mesmo assim, houve semestres em que cursei 10 disciplinas, tudo para que pudesse me formar o mais rápido possível.

Mas em 2013 conheci meu marido. Engravidei da minha filha mas não me apavorei, pois minhas gestações sempre foram muito tranquilas e dessa vez eu tinha um companheiro muito presente. Mas os primeiros meses foram difíceis, a gestação dessa rainha foi a mais estranha da minha vida. Eu passava mal todas as manhãs e no calor que estava não conseguia sair de casa. Tive problemas em uma disciplina e não consegui fazer a prova. Havia um trabalho para fazer em grupo e minhas colegas de sala, desde o começo do curso, fizeram o trabalho sem mim, mesmo sabendo que eu não estava bem. Aquilo acabou comigo, grávida, com problemas de pressão, e simplesmente não me avisaram que eu estava fora. Eu já estava fazendo minha parte e enviando quando me avisaram que eu estava fora. Rompemos nossos laços de amizade desde então. Informei a professora sobre meus problemas de saúde, sabia que não havia possibilidade de salvar a disciplina. Pedi a ela que não me desse Frequência Insuficiente (FI), se possível me desse conceito Incompleto (I) ou nota zero, mas que o FI me faria perder a bolsa estudantil. Ela me respondeu que eu tinha muito mais faltas do que presenças e que não teria como, mas que ia ver com a coordenação do curso quais eram as possibilidades, e que esperava que eu ficasse bem com meu bebê. E nunca mais me respondeu, mas me deu FI… Então eu fiquei apavorada, achando que havia perdido minha bolsa! "Tô ferrada! Como vou pagar o aluguel mês que vem?". Enfim… Só me perguntava porquê, um professor sabendo que uma estudante poderia se ferrar de verde e amarelo em função de uma condição de saúde justificada, faria uma coisa daquelas… Por que a legislação retrógada anterior às ações afirmativas precisaria ser seguida as cegas? Questões de gênero e questões raciais não foram nem cogitadas naquele momento….

Aliado a isso, tive vários problemas com meu marido. Por ele carregar o machismo, o histórico de vida de um homem preto pobre, que resistiu a todo um contexto problemático de vida ainda, tudo isso refletia em mim. Mas eu já sabia que descendia de rainhas africanas, não seria fácil me dobrar. Tive vários problemas com ele e, simultaneamente, abandonei o curso por 6 meses após o nascimento da minha filha, o que me abalou muito, pois olhava pra ela e pensava "Tenho que terminar o curso", mas ao mesmo tempo não conseguia dar conta. Fiquei fora e quando voltei não tinha mais o estágio que fazia antes. Consegui um outro, mas troquei de orientadora, tudo ótimo, até vir o resultado da bolsa: eu não havia conseguido. Então começamos uma jornada louca para garantir as bolsas de várias pretas e pretos que, coincidentemente, estavam sem. Ocupamos sala dos conselhos e conseguimos o auxílio até sair o edital, ou seja, as preocupações continuaram, pois nada estava garantido. Começou, então, a greve dos servidores e os estudantes que tinham isenção não receberam o auxílio até a data estipulada, mas nada foi resolvido: ocupamos, então, a Reitoria. Durante a ocupação, terminei meu artigo de conclusão da ênfase. Informei a professora da situação e na ocupação, além de todas as atividades, me dedicava a escrever o artigo. Foram dias de muita tensão e muito sofrimento e quando fui explicar toda a situação à professora durante a última aula, entendendo que aquele era um espaço particular, pois estávamos entre 10 alunas, fui cortada por ela, que me disse:

"Angela, aqui não é um divã, todos aqui tem dificuldades, mas eu não posso te tratar diferente das outras alunas".

Tomei um sermão que não convém falar aqui e me senti extremamente humilhada. Minhas colegas de sala ficaram chocadas com a forma com que a professora falou comigo. Daquele dia em diante, fui ruindo, me despedaçando… Meu trabalho não foi aceito, fiquei com conceito insuficiente e com mais uma carga pro outro semestre. Não foi levado em consideração todo o empenho demonstrado no decorrer do semestre, onde apresentei sínteses, enviei trabalhos para congressos, que foram aprovados, e a coisa desandou no fim do semestre. Não queria regalia, somente uma empatia em relação ao que eu havia passado.

Daí em diante tudo descarrilhou. Eu não conseguia mais pisar na universidade. Fiquei apática. Sumi de tudo e todos perguntavam onde eu estava. Tive que me reerguer e, com o apoio de uma professora, com quem conversei por e-mail porque eu não queria nem sair de casa, consegui uma terapeuta maravilhosa, que me atende até hoje e me ajudou nesse reerguer. Juntei as forças que haviam me restado e, faltando pouco pra terminar o artigo, resolvi pagar uma conta atrasada do cartão e fiz uma negociação online. Ao fazer isso, minha conta foi bloqueada e minha bolsa não caía. Veio o desespero: aluguel, telefone, luz, água pra pagar e o dinheiro não ia cair! Eu estava separada do meu marido e tínhamos conflitos em relação à pensão.

No desespero, fiz uma postagem em um grupo chamado Mulheril. Desabafei tudo, aproveitando que minha mãe tinha saído para levar meu filho à creche. Fui dormir chorando horrores. Quando ela chegou, me acordou avisando que uma amiga estava me ligando. Essa amiga me mandou olhar meu Facebook: lá estava uma dezena de mulheres e organizações querendo me ajudar. E ME AJUDARAM. Pagaram meu aluguel, minhas contas, minha passagem pra ver meu filho mais velho (pois eu não ia viajar por não ter a bolsa), fizeram compras, me encheram de palavras de motivação. Foi um dos momentos mais incríveis da minha vida! Entreguei o artigo e fui para São Paulo. A bolsa só caiu em janeiro, no meio do mês.

Em São Paulo, retomei o contato com meu ex, aparamos as arestas e retomamos o relacionamento. Ficou tudo bem e começaram as aulas. Inscrevi-me em uma disciplina que queria muito e resolvi atrasar um semestre para cursá-la. Mas parece que a vida tem que ser uma montanha russa… Meu pai adoeceu e minha mãe não poderia mais me ajudar com as crianças. Começaram as aulas da creche deles, mas logo em seguida entraram em greve. E todas as coisas mais imprevisíveis que poderiam acontecer, aconteciam justamente no dia dessa aula. Assim que acabou a greve, outro problema começou: meu filho é asmático e naqueles últimos 6 meses teve crises horríveis. Eu não podia levá-lo àa creche, nem deixar com minha mãe, pois meu pai havia sido diagnosticado com enfisema pulmonar, seu coração funcionando com apenas 21% da capacidade normal. Foi um baque para nós… Mas, então, meu marido havia sido convocado por um concurso público em São Paulo. Calculamos e achamos viável ele ir por conta da estabilidade do trabalho (não financeira, porque o salário também não nos manteria). Desde então estou sozinha com as crianças, ele pagando a casa e um pouco da alimentação. Informei a professora da disciplina todos esses problemas, marquei dias para ir à UFSC, mas não consegui porque, afinal, criança é uma caixinha de surpresas, não é mesmo? A professora me negou o conceito insuficiente e disse que tinha que seguir as regras da UFSC. A disciplina era de Psicologia e Relações Étnico Raciais que, junto ao movimento, fiquei na luta para conquistar, ficando também com frequência insuficiente, por não ser levada em conta minha condição específica, e isso justamente por pessoas que discutem GÊNERO. Cortaram minha bolsa.

Quando busquei a Pró-Reitoria, descobri que minha situação era crítica e fui tratada de forma hostil e culpabilizante em todas as instâncias a que recorri.

Em suma: nas disciplinas em que obtive frequência insuficiente, não foi por falta de interesse ou por simples desdém, mas, sim, pelo fato de que, por exemplo, uma dessas disciplinas (Psicologia e Processos Educacionais PSI7401) iniciava às 7:30 da manhã, mesma hora em que levo meus filhos para a creche. Mesmo mostrando que não foram faltas ou atrasos sem justificativa, alguns professores infelizmente não se mostraram sensíveis a tal situação. Em reunião com o Pró-Reitor, me foi dito que eu deveria não me matricular na disciplina. Sem considerar que era uma disciplina obrigatória que mantém o mesmo horário desde 2013.2! A solução que encontrei, já que a professora não entendia minha situação, foi colocar meus dois filhos em um transporte escolar que passou a me gerar um custo de R$ 350,00 que são pagos pela bolsa. Caso não pague, terei que cancelar, fazendo com que, mais uma vez, eu perca a disciplina e não me forme esse semestre, ficando retida e gerando mais custos à universidade, sendo que quero e preciso voltar à minha cidade o quanto antes, a fim de não depender mais das políticas de permanência.

Enquanto escrevo tudo isso, penso que amanhã a van escolar passará na minha porta às 6:30 da manhã, na data limite de pagamento, e eu não terei como pagar… Minha aula às 7:30 acontece às segundas e quintas-feiras e já estou sob o estresse de pensar se terei que faltar amanhã…

Trago aqui, portanto, o retrato do peso sociopolítico que é uma mulher negra e mãe conseguir se formar em um curso superior em uma universidade federal. Quantas outras jovens estarei influenciando positivamente quando da minha formatura e atuação na sociedade, quebrando assim estereótipos e redefinindo o lugar da imagem do negro na sociedade brasileira? Fico triste em pensar que, faltando apenas 2 meses, estou novamente em situação de vulnerabilidade. Não é sequer cogitado pela universidade que, sendo reprovada novamente, posso ficar dependendo das assistências estudantis por mais 6 meses, dando mais gastos aos cofres públicos, que poderiam ser oferecidos a outra estudante.

Espero conseguir meu me formar ao final deste ano. Mas confesso que, mesmo com a quantidade de provas que tenho, a preocupação com a manutenção de minhas necessidades básicas – tendo agora apenas uma bolsa de trabalho, que supre apenas 1/3 das necessidades minhas e dos meus pequenos – não é o problema. O problema é o Estado e as instituições que não estão preparados para mães. Para mães negras muito menos.

Encerro aqui, tendo Ísis Makena no peito, digitando com uma mão (que mãe nunca?), contando minha história, a história de uma mãe que insiste em virar cientista. Estou buscando ajuda (mais uma vez) de pessoas que compreendam com o mínimo de humanidade essa minha situação. Já ouvi que me exponho demais, que é vergonhoso falar tudo isso, mas a vergonha é do Estado brasileiro, do mundo, pois sou somente um exemplo da violação de direitos. Por que guardar isso se posso ser exemplo para outras mães que querem ser cientistas? Não para desestimulá-las, mas para mostrar que devemos mudar realidades para que, num futuro próximo, nenhuma mãe tenha que passar pelo que estou passando.

A saga de ser uma mãe preta que virou cientista pode demorar mais um pouco, mas vai rolar.

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