“27 de maio [de 2014]
5 da manhã.
Já era rotina, acordar cedíssimo com contrações. Mas… aquele dia era diferente. Mais forte. Mais intensas. No intervalo, diferente de todas as outras vezes nas últimas semanas, eu não conseguia “seguir a vida”, andar, pensar. Entre uma e outra contração, só queria… dormir.

Já são quase 41 semanas de gravidez. E mais essa gripe, essa tosse que nunca mais vai embora. E o pé em recuperacao. É, é só o cansaco acumulado. Logo passa“.


Não passou.
Deitada no sofá, uma briga entre o cérebro: “Tu teve consulta ontem mesmo, lembra? E tá tudo normal. Ainda vai demorar, isso é só mais um treino“. O corpo dando um belo chute em qualquer racionalidade, a cada onda de dor fora de ritmo.

Fora de ritmo.
Era esse meu medo. Do não saber, do não ter como me basear. Eu, rainha da racionalidade e das evidências, que precisava ver pra crer e analisar cada detalhe para confirmar e confiar.
As horas passando.

Contrações a cada 2 minutos. A cada 5 minutos. A cada 3 minutos. A cada 2, outra vez.
Fora de ritmo.
Fora de controle.

Tapa na cara, Patricia.
Trabalho de parto.
Parir.
Um ser saindo de mim, sem anestesia.
Dor.
Ah, a dor.
Medo. Insegurança. Falta de confiança.

Trinta anos como mulher.
Sim, quem é mulher, sabe. Que tu é… menosprezada. Subjugada. Desacreditada. Todos os dias, nas coisas que importam e nos detalhes.
Só podia ser mulher“, no trânsito.
Certeza que deu pra alguém“, no trabalho.
Nota alta? Só porque é bonita!“.
Trinta anos duvidando de mim.

Anos de luta contra depressão.
Anos sem me acreditar verdadeiramente capaz, e aceitando o que dava certo como “sorte”.

A dor de saber-se incompetente.
Com um corpo incapaz.
Quando 22 meses antes aquele médico olhou no fundo dos meus olhos e mentiu, sem qualquer pudor: “Você não tem dilatação“.

O luto.
E a dor da descoberta, da mentira pela conveniência dele.
Foram tão fortes como estavam sendo aquelas contrações.

Sim, doeu.
Doeu muito.
Cada fibra do meu ser, cada pontada de dor na barriga, de me fazer perder a força nas pernas… me dizendo: seja forte!
Doeu.
Doeu porque precisava.

Eu precisava morrer, para nascer.
Outra vez.
Nascer um bebê, renascer uma mãe.
Morrer, aquela mulher que não se via capaz, que acreditava mais na sorte e nas confluências planetárias que em si.

Cada contração, uma transformação.
VOCÊ É CAPAZ.
Você é perfeita.
Seu corpo é perfeito, não importa o que todos tenham dito.

Um banho quente.
Muito quente.
E a dor… cedendo. E a mudança, cada vez mais forte.
Num dos raros momentos de descanso, só me passa pela mente que não é possível que meu corpo esteja mentindo pro meu cérebro.
– Amor, ainda não ritmou??
– Ainda não. Pode demorar, mas você vai conseguir.

Não, eu não vou conseguir.
Eu não quero mais, eu preciso dormir, eu tô cansada, eu tô com dor, eu desisto. Eu, eu, eu.
Esquece Patricia. Teu ego não manda mais. Agora não é você no comando.
É a Natureza, é o seu bebê.
Acredita em você. Confia.
E sai desse banho, que essa água quente já está irritando.

Dor.
Mais dor.
Droga, preciso dormir, estou cansada, estou com sono, estou com fome.
Mas eu vou conseguir.

Oi filha… não chora, não se assusta, a mamãe tá bem. Vem Aurora, fica aqui, é normal, é bom, é pra você ganhar um irmão ou irmã!

Dor.
Dor diferente. Além de vir em ondas na barriga, também nas costas e… força.
Uma força incrível, incontrolável.
– Amor, na próxima contração segura minha perna.

A cabeça!
– Paty, não faz força. Deixa que seu corpo vai fazer tudo sozinho.
Outra.
Mais uma.
PLOFT! Bolsa estourou. Na calça do pai.

– Ai meu deus! Vai nascer! Vai nascer!!!
Foooooorça! Nossa, não dói tanto assim. Nossa, que sensação incrível!
– Amor, pode puxar o bebê.
Ufa.
Saiu.
Dor? O que é isso?

Meu deus, que bebê lindo.
Que bebê pequeno!
Que sensação incrível!

Eu pari.
Quando o mundo todo disse que eu não podia.
Eu pari.
EU.
MEU corpo.
Perfeito.
Pelas mãos do meu amor. Doce, delicado, forte, confiante.
Ao meu lado a cada 2, 5, 3 minutos. Apoiando. Amando. Confortando. Amparando.

– Você quer saber o que é o bebê?
– Daqui há pouco. Agora eu só quero… amar”.


Esse relato tão forte, sincero e catártico foi escrito de uma só vez por Patricia, enquanto Serena, o bebê nascido, mamava em seu peito. Ela. Patricia Alsina. Mãe de Aurora e Serena. Companheira de Erick. Erick, que segurou Serena em sua saída do corpo da mãe, em seu início de vida aqui fora, neste mundo.

Ele colocou a perna dela sobre seu ombro e segurou a filha. A filha metade fora, metade dentro. Com uma circular de cordão. Enquanto Aurora, a irmã, assistia sua irmãzinha chegar ao mundo.
Uma família.
Muitos amores.
Muitos (re)nascimentos.
Um parto domiciliar depois de uma cesárea repleta de violência. Depois de uma luta que durou exatos 22 meses. Patricia pariu sua segunda filha em casa. Em um parto domiciliar cuidadosamente planejado que se transformou em parto domiciliar desassistido, dada a intensidade e rapidez do nascimento – a equipe não chegou a tempo. E isso fez com que o pai atuasse como parteiro, segurando sua filha em sua chegada ao mundo. Patrícia pariu em casa, com uma pequena restrição de movimentos, já que quebrou a perna com 26 semanas de gestação, tirou o gesso com 39 e Serena nasceu com 40 semanas e 5 dias.
Logo chegou a equipe, que ofereceu todos os atendimentos necessários, à mãe e à bebê.
Inclusive a apoiando na espera de muitas horas pelo nascimento da placenta.

E assim nasceu Serena.
Fruto também do nascimento de su
a irmã, Aurora
Se não fosse Aurora, Serena poderia ter nascido de outra maneira.
Aurora e Serena estão ligadas para sempre. Não somente pelo fato de que são irmãs.
Mas porque o nascimento de uma deu forças inimagináveis a uma mãe, para que lutasse pelo parto da outra.
Após as fotos finais há um texto. Escrito por Patricia antes de ser mãe de Aurora e Serena, quando ainda era mãe apenas de Aurora.
Leia.
Você vai entender…

E assim nasceu Serena. Serena, Patrícia, Erick e Aurora.
O que eles querem agora?
Agora eles só querem amar…

Relato de Patrícia sobre o nascimento de Aurora, sua primeira filha. Que sem saber ajudou a segunda a nascer…

A cesárea não é apenas o roubo do protagonismo do parto. Ela foi, para mim, o roubo de momentos únicos.
Graças à ela, pessoas que nunca havia visto (e tampouco vi depois daquele dia), viram o rosto da minha filha antes de mim. 
Graças a ela, só pude ter minha filha em meus braços boas horas após o nascimento. 
Aliás, graças à anestesia e o torpor causado, não tenho lembrança desse momento. 
Quando finalmente me levaram ao quarto após a recuperação e a trouxeram para mim, estava tão cansada e grogue que, por mais que force a memória, não consigo lembrar. 
Não sei quem a entregou para mim, se o pai ou uma enfermeira. 
Não lembro desse primeiro momento único, pelo qual esperei 28 anos. Vejo as fotos, nossa Aurora ajeitadinha ao meu lado na maca, e não consigo lembrar. Do cheiro, da sensação de ter minha tão desejada filha ao meu lado. Uma lembrança apagada graças à anestesia. Também não lembro da primeira mamada, que aconteceu pouco após.
Mas a dor do pós operatório… ah, essa sim! 

Lembro de não dormir à noite e implorar à enfermeira por algum remédio mais forte, já que os receitados não eram suficientes. 
Lembro de voltar para casa, e da ajuda para sair do carro, descer e subir escadas. 
Lembro de acordar com o choro da bebê à noite e o marido levantar e entregá-la em meus braços, porque eu não era capaz de sair da cama sem lágrimas de dor.
E através dessa experiência, que deveria ter sido única e perfeita em minha vida, que conheci a humanização do par
to. Não engoli a desculpa do médico, de não dilatar após 26h de trabalho de parto latente, e que me levou a optar por essa cirurgia após vomitar de dor e cansaço provocados pela ocitocina sintética. 

E fui estudando. 
Pelo meu parto perdido, passei por todas as fase: neguei e tentei me convencer que foi necessária; tive raiva por ser tão facilmente enganada; negociei comigo mesma que fiz tudo que pude e não foi o suficiente; deprimi e chorei tanto pelos momentos perdidos… até que, hoje, posso falar que aceitei.
Aceitei minha parcela de culpa em não ter corrido atrás de toda a informação, aceitei que fui enganada em um momento de fragilidade.
E comecei a lutar.Li, estudei, devorei todos os artigos que me caíam em mãos sobre gestação e parto. 
Passei a ajudar outras mulheres, para que não incorressem no mesmo erro, para que não sofressem e não precisarem conviver com essa cicatriz – muito mais forte na alma que na pele. 
Fui chamada inúmeras vezes de radical, de intrometida, de xiita. 
Perdi amigos queridos ao tentar mostrar que a realidade obstétrica é muito diferente do que a sociedade quer te fazer acreditar. 
Me tornei uma ativista, com muito orgulho, moderando dois grandes grupos de ajuda à mães e gestantes.
E um ano e dois meses depois da cesárea, me descobri grávida outra vez”.


O final da história… Bem, você já sabe.
É assim que nascem bebês fruto de uma luta muito pessoal. Que, quando em coletivo, se chama “Movimento de Humanização do Parto“.
Que acolhe, que mobiliza, que sensibiliza e muda vidas.
É, também, para isso que trabalhamos todos os dias.
Que ignoramos ataques, ofensas e manifestações da mais pura ignorância.
Para que pessoas reconstruam suas histórias.
Para que vidas sejam ressignificadas.
Para que pessoas nasçam repletas de amor.
Para que sejam feitas as vontades dessas mulheres.
Para livrá-las do que não é bom, do que machuca e fere para sempre.
E se isso não for uma oração de celebração à vida, então não sei o que é.
Amém.


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