O que vou contar agora é algo surreal, digno de uma obra de Dali. Vamos falar sobre um suposto novo "transtorno infantil" que surgiu por aí. Nem é transtorno e nem é novo – descobri isso após uma pequena pesquisa. Mas para mim o termo é novo, totalmente novo, descobri ontem que existia.
Vou começar do início.

Ontem recebi uma mensagem de uma mãe pedindo uma orientação. Disse que tem dois filhos e que ambos haviam sido diagnosticados com "Transtorno de Déficit de Natureza" pela psiquiatra. Isso meso que você leu, transtorno de déficit de natureza. Fiquei no mínimo curiosa, conheço o Manual de Estatística e Diagnóstico de Transtornos Mentais de trás pra frente e da frente pra trás (em função de iniciação científica, mestrado e doutorado tendo ele como base) e nunca ouvi falar nisso. A princípio, pensei que ela tivesse se enganado, afinal de contas eu nunca tinha ouvido falar de algo assim, e olha que já ouvi nome de transtorno pra caramba. Pelos "sintomas" que ela descreveu – e que não eram sintomas – parecia TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). Então, perguntei se ela tinha certeza desse nome, "Transtorno de Déficit de Natureza" e ela disse que sim. Antes mesmo de ir procurar que raios era isso, perguntei se algum tratamento havia sido indicado. A resposta:

"Sim, o mesmo para hiperatividade, Ritalina, porque os sintomas são os mesmos, na verdade é a mesma coisa mas parece que tem algo que é diferente".

Fiquei com aquela pulga na orelha. "Que porcaria é essa agora?!". Então corri para o Google e digitei "Transtorno de Déficit de Natureza". E caí nisso aqui, entre outras coisas.

Paralisei. Fiquei ali com cara de tonta, olhos arregalados e sussurrei pausadamente: "O que significa isso?!". 

Pesquisei mais um pouquinho, encontrei mais coisas, entrevistas, matérias. Querendo uma informação mais confiável, fui para as bases de artigos científicos brasileiros. Não encontrei nada. Então digitei o possível nome em inglês nas bases de dados e encontrei. Mas continuava sem entender… Foi quando encontrei um link para uma entrevista recente sobre o assunto e tratei de ouvi-la.

É uma entrevista da Rádio CBN do dia 13 de janeiro de 2013, bem recente, com o instigante título de "Há um massacre sobre a infância e nossa resposta é massacrar um pouquinho mais".

Vibrei com a leitura do título! Coloquei meu fone e me joguei. E começou:

 

 

A banalização do uso de medicamentos tarja preta em crianças e adolescentes é preocupante, apontam os especialistas. O Conselho Federal de Psicologia alerta que é muito comum, mais comum do que pensamos, médicos receitarem remédios para tratar dificuldades de aprendizagem como dislexia, transtorno do déficit de atenção e também hiperatividade. Essa é uma questão que foi inclusive debatida durante este último ano, inclusive foi questão debatida na Câmara dos Deputados, que é o processo de medicalização da nossa realidade. Será que nossas crianças estão doentes ou será que o assunto pode ser muito mais simples do que nós imaginamos

E então a jornalista começa uma entrevista com Daniel Becker, pediatra pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Homeopata e que já trabalhou com os Médicos Sem Fronteiras. Em sua primeira abordagem ao médico, a jornalista diz o seguinte:

 

É engraçado a utilização de um termo, quando a gente fala tanto hoje em dia de déficit de atenção, de crianças com hiperatividade, quando surge um termo que se chama DÉFICIT DE NATUREZA. O que que é isso, Dr. Becker?

Então o médico começa dizendo que é uma brincadeira criada por um americano, mas que é uma brincadeira muito séria. Que o cara está criando um movimento que tenta conscientizar a sociedade sobre a situação das crianças hoje em dia e sobre como a forma com que elas estão sendo cuidadas está trazendo problemas não somente para elas próprias, mas para toda a sociedade. Ele menciona o fato das crianças assistirem de 5 a 6 horas de TV por dia, de serem submetidas a 20 ou 30 anúncios de junk food por dia, de verem pouco seus pais, de só se alimentarem de industrializados, de não se exercitarem porque ficam paradas em casa, de serem expostas ao consumismo, submetidas a estímulos eletrônicos em excesso. E ele diz: "Aí a sociedade olha pra isso que ela mesma está produzindo e diz: Opa, peraí, criança hiperativa, estão distraídas, estão impulsivas, estão mal comportadas, então vamos dar remédio! Vamos criar um monte de remédios pra isso!". Ele diz ainda que quem tem lidado com isso é a família e as escolas e quem ambas as partes querem se livrar dos problemas. E afirma:

 

"Há um massacre sobre nossa infância e a resposta que estamos dando é massacrar mais um pouquinho"

Ele diz ainda que não se trata de querer que as crianças se afastem dos eletrônicos e de tudo isso, mas que é imperativo que as coisas sejam dosadas. Que tenhamos pensamento crítico para saber o quanto isso pode ser positivo se for moderado e quanto pode ser negativo se for excessivo. Enfatiza a necessidade de se oferecer outras alternativas de entretenimento às nossas crianças, e menciona uma pequisa recente da Sociedade Brasileira de Pediatria (a quem ele se refere como "bem tradicional") que mostrou que as crianças preferem, de fato, as brincadeiras tradicionais, preferem estar com outras crianças do que ficar em casa com smartphone e video-game. Que elas têm feito mais isso apenas porque não têm alterativa, seus pais estão muito ausentes.

Ressalta, ainda, que um problema gravíssimo da medicina hoje é o movimento de medicalização da vida, do qual a medicina é uma cúmplice. Menciona um caso de uma criança que atendeu, filha de uma mãe que procurava uma segunda opinião. A criança sentou na frente dele, passou a consulta inteira prestando atenção, respondendo, com um livrinho na mão, super normal. Ela havia tido um probleminha na escola, algo como uma nota ruim numa prova de matemática e, por causa disso, foi submetida a uma avaliação num "instituto de psicologia sei lá o que" – ele não menciona o nome -, onde foi recomendado o uso urgente de Ritalina. "Uma coisa grotesca", ele diz.

O médico também lembra que por trás disso há claros interesses comerciais, e que evidencia uma atitude atual da sociedade, que é querer resolver um problema gerando mais problemas. E como mensagem final, ele reforça a importância de termos uma visão crítica mínima quando se é pai ou mãe.

Fui atrás de mais informações e encontrei uma expressão muito interessante: "No child left inside" ou "Nenhuma criança será deixada dentro de casa", em uma clara alusão à tradicional expressão norte-americana "No soldier left behind", ou "Nenhum soldado será deixado para trás" – bem coisa de país de cultura bélica. O próprio Wikipédia contém link para isso, o definindo como um "Movimento", um movimento que incentiva uma educação que preza o contato com o natural. 

Mas alguma coisa ainda não se encaixava. 

A mim ficou claro que o termo "Transtorno de Déficit de Natureza" havia sido criado como sátira, ironia, mostrando aos pais que adoram diagnosticar os próprios filhos como portadores de tudo quanto é transtorno que o problema poderia não ser da criança, mas SEU. Como, então, ele poderia estar sendo utilizado como um novo diagnóstico, como no caso da mãe que me procurou?! Isso não fazia sentido… 

Será – e eu sinceramente não quero acreditar nisso… – que o que foi criado como problematização de uma situação social também está sendo utilizado para medicalizar?! Bom, vamos dar uma olhada na definição que encontrei e que está na primeira imagem do texto. Ela diz: 

 

A falta de rotina de contato com a natureza pode resultar na atrofia do crescimento físico e do desenvolvimento escolar do seu filho. Este efeito colateral indesejado da era eletrônica é chamado de "Transtorno de Déficit de Natureza" (TDN) que é a desconexão entre nós humanos e a natureza.
(…)
Nosso cérebro humano não está totalmente adaptado ao mundo de atividades restritas a ambientes fechados esculpidos por nós mesmos. Na verdade, algumas crianças até que se adaptam bem, porém a maioria delas desenvolve os sintomas do TDN que incluem problemas de atenção, obesidade, ansiedade, depressão e futuros problemas mentais na idade adulta.

Pois então é isso mesmo.
Aquilo que foi criado como "uma brincadeira", como disse Daniel Becker, já está sendo utilizado em concepção medicalizante. Vejam que inversão: uma criança que é deixada em confinamento dentro de casa, com excesso de estímulos eletrônicos, sem atividade física, sem interação com a natureza, só jogando videogame, brincando no Ipad e assistindo desenho passa a ter uma doença, uma atrofia do crescimento físico e, portanto, desenvolveria sintomas de algo chamado "Transtorno de Déficit de Natureza" – que não existe! Isso é o mesmo que dizer que cuidadores não detêm nenhuma responsabilidade sobre isso, a culpa é da criança, que agora está doente – portanto precisando de tratamento.

Percebem a gravidade dessa inversão?

Sim, há um déficit aí. Mas não é apenas de contato com a natureza, e nem é um problema biológico da criança. Há um déficit de real presença, de afeto, de colo, contato. Há um déficit de interação com o real, excesso de exposição a eletrônicos, hipervalorização do artificial. Mas não, não há uma doença, não existe um transtorno.

Precisamos ter muito cuidado em, ao defender um problema óbvio como o confiinamento de crianças em espaços fechados e sem contato com a natureza, não criarmos um problema ainda mais grave, representado pelo suposto ADOECIMENTO BIOLÓGICO delas.

Essas crianças não estão doentes, não possuem transtornos.

Elas só estão sozinhas…

Aproveito para ressaltar um trecho do livro "A Sociedade dos Filhos Órfãos", de Sergio Sinay:

 

 

"Sua orfandade é de outro tipo, embora seu futuro (geralmente acolchoado por promessas) não seja menos sombrio do ponto de vista existencial. A imensa maioria deles tem pai e mãe, encontra-os, convive com eles (das várias maneiras como se convive em uma sociedade que passa por uma transição dos modelos familiares). A totalidade deles frequente colégios e escolas, tem acesso a tecnologias de comunicação, vive em contextos nos quais as necessidades básicas (alimentação, teto, abrigo, água) são cobertas. São atendidas pelos adultos que os trouxeram à vida, que os criam e que os educam, ou por adultos que cumprem essas funções mesmo sem ter ligação biológica com eles. Ainda assim, esses meninos e adolescentes são órfãos funcionais. Recebem bem materiais; desconhecem ou têm pouco contato com a impossibilidade, a frustração e a perda; enfrentam poucos limites, que, com frequência, são frouxos e ambíguos; estão cercados de adultos que em sua vida pública e social podem ser bem-sucedidos, poderosos, respeitados, invejados, mas que se negam a ser, além de adultos, maduros. Tentam fugir do tempo, se mimetizam em crianças e adolescentes, têm horror à responsabilidade de criá-los, educá-los, guiá-los, limitá-los e dar-lhes ordens. Adultos que se drogam com todo tipo de bens, atividades, fármacos, exercícios pseudoespirituais e terapias pasteurizadas com o objetivo de não passar pela experiência necessária, profunda, às vezes incômoda (quando não dolorosa) de abandonar a própria adolescência e encontrar o sentido único e intransferível de suas vidas. Adultos que aceitam o que lhes é oferecido, não se arriscam, não tomam decisões quando isso implica pagar um preço (e não há decisão sem preço, porque é uma lei da vida). De qualquer maneira, acabam por pagá-lo de maneira direta, inocultável, ou de maneira sutil, imperceptível. A orfandade de seus filhos (e suas consequências) pode ser um desses custos (…).Os filhos órfãos desta sociedade estão sendo criados pela televisão-lixo, pelos fabricantes de junk food, pelos produtores de uma tecnologia vazia e inútil que os incapacitará para muitas funções da vida cotidiana" (Sergio Sinay).

 

 

 

 

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