Eu parecia mesmo ter esquecido que um dia ele veio e foi embora. Já estava tão envolvida com minhas tarefas do dia a dia, não havia mais espaço para ficar chorando, abraçada às memórias. Alegremente eu almoçava com algumas amigas, falando amenidades, até que, quase sem querer, meus olhos pousam no crachá do garçom. José. Vinte e poucos anos. Um brilho no olhar, uma fala suave, uma caderneta na mão. E de repente eu já não acompanhava a conversa, não conseguia ouvir o que as colegas diziam sobre o novo curso que estavam fazendo ou a previsão de tempo para o feriado. Eu só pensava nele. A vontade de chorar chegando. Meu bebê. Como ele seria assim, com vinte e poucos anos? Seria um bom menino? Seria simpático como esse José que agora acabo de conhecer? Será que gostaria de trabalhar com público? Ainda estaria morando com a família ou já teria alçado seu próprio voo? José, que saudades de tudo que nunca vivemos, meu filho. Falei sem falar e o choro embargou de vez minha voz. Precisei me levantar.

Fui ao banheiro. Lavei o rosto, olhei no espelho. Na face, vejo umas linhas de expressão. Elas não estavam lá antes dele. José viveu apenas onze dias, mas deixou para sempre no meu rosto marcas da sua partida. Já se passaram quatro anos que ele se foi. Agora parece que foi hoje. Como em um raio, viajo no túnel do tempo e, de repente, volto naquele passado, estou com ele. Um nome no crachá do nosso atendente, uma música, uma poesia, uma caixa de chá, um e-mail, um livro, um comentário, um leitor que me procura, uma fala pura e sincera sobre o “irmão do céu” vinda de um de meus dois filhos, de quatro e sete anos. Pequenos movimentos, mas grandes o suficiente para, em um lampejo, trazer José de volta. De volta? Repenso: talvez ele nunca tenha realmente nos deixado. Talvez ele tenha sempre estado nestes detalhes, porque o filho que perdemos vive, de alguma forma, dentro e fora de nós. Ele tem seu lugar na família.

Para alguns esta presença é mais fácil de perceber e lidar – é o caso da minha família. Aqui em casa falamos abertamente sobre José, seus ensinamentos, nossas memórias, o pouco que temos de histórias com ele, pequenos objetos e lembranças que cultivamos com muito amor. O fato de eu ter escrito um livro sobre esta experiência – o Até Breve, José – tornou o assunto diário. Para outras famílias, no entanto, os bebês que partiram deixaram um vazio, um espaço silencioso, em que pouco se comenta sobre o luto, sobre a dor ou sobre a criança. Há quem cultive este não dito, como se não dizer pudesse ser não sentir. Não importa há quanto tempo aconteceu, para alguns parece que faz muito, muito tempo, tanto tempo que nem se lembram. Mas não é verdade. Assim como aconteceu comigo – mesmo estando hoje feliz e vivendo a vida – fui acometida por uma lembrança que me levou direto ao meu José. Todos os pais e mães de filhos que partiram carregam esta certeza – não importa há quanto tempo eles se foram e nem quanto tempo ficaram por aqui – é impossível esquecer. A saudade é eterna. Nela, vivem nossos filhos.

Luto, tabu e morte ou como é bom estar vivo

Tenho estado em público falando sobre luto e, em minha primeira vez, embora eu tivesse recém-lançado um livro sobre a história do filho que perdi e o que chamo da travessia do deserto do luto – embora tivesse me preparado para isso – estar ali presencialmente falando a uma plateia de centenas de pessoas era novo para mim. Tinha medo de não dar conta, mas como sempre digo, se estou com medo, vou com medo mesmo. Então, de coração aberto e sem certezas, fui contando minha história, trazendo os aspectos que considero mais doloridos e importantes de lembrar quando estamos lidando com perdas. O que atrapalha e o que ajuda quem vive um luto? Como acolher a mãe de um bebê que partiu? Como fica sua rotina? O que machuca? Que recursos ela pode usar para se restabelecer mais facilmente? O que os profissionais que a acompanham – sejam médicos, doulas, pediatras, terapeutas, podem fazer para que ela se sinta melhor?

Enfatizei que cada perda precisa ser tratada como singular e cada mulher como única. Tenho notado que a mulher que perde um bebê (seja  aborto, perda intraútero, óbito fetal ou perda perinatal) acaba, por uma dificuldade do processo, experimentando outras perdas. Ela perde o filho, e, às vezes, uma amiga, um grupo em que fazia parte e agora ela não se encaixa mais, sua doula que se afasta, o médico some, os conhecidos a evitam, o telefone não toca – são rupturas que machucam quem já está muito sensível e precisa receber acolhimento, proximidade, atenção e carinho.

Diariamente interajo com pessoas que viveram perdas, especialmente mães de filhos que partiram, e, nestes cinco anos, nunca, nunca mesmo, perguntei a uma mãe o que aconteceu com o filho que perdeu e elas também não perguntam o que aconteceu com José. A razão já não nos importa tanto! Às vezes falamos espontaneamente qual foi a causa da morte, ou como se deu o processo, ou se haviam condições pré-existentes, mas a verdade é que os motivos não mudam a realidade: há agora uma mãe sem o seu bebê. Por favor, cuidemos desta mãe!

Respeitar o tempo da pessoa, do luto, deixá-la livre para chorar, para elaborar, são alguns caminhos para uma superação mais suave. Contei meus exemplos, cenas que vinham à mente e sem planejar eu relatava em primeira mão, para uma plateia emocionada. Disse tudo isso e muito mais. Deixei de lado as anotações e simplesmente falei o que me vinha ao coração.

E foi então que, de repente, em meio a um fluxo contínuo de palavras que saíam da minha boca, em que compartilhei não apenas a minha história mas muitas histórias e aprendizados que recebi das mães com as quais tenho me relacionado desde que perdi meu filho, que percebi: o auditório inteiro chorava.

A emoção coletiva destes ouvintes me mostrou algo: quando falo da minha dor e da minha história, acesso a dor e a história de cada um, e todos, todos mesmo, têm alguma experiência com perdas ou superação de dificuldades, seja de que ordem for.

Precisamos falar sobre os temas difíceis! Só assim podemos tentar quebrar os tabus, tirar as cascas, deixar nossa prepotência de lado, sair do piloto automático e da cultura da falsa felicidade. Tive certeza que, as pessoas não apenas querem ouvir, como também precisam de um espaço para falar sobre luto, tabu e morte. Quando falamos sobre os bebês que morrem, apesar da dor, falamos também da vida, da celebração do amor e da força que nos resgata do fundo do poço. É ela que chega nos convidando a viver, nos conectando à nossa essência. Entramos em contato com os sentimentos mais genuínos que moram em todos nós e assim nos reconhecemos humanos. Nos sentimos vivos e gratos por estarmos aqui.

Destaco cinco reflexões sobre o luto perinatal que podem te ajudar a reconhecer o que viveu ou entender melhor e dar apoio a quem teve essa experiência:

1) O luto é cheio de perdas

Muitas vezes a mulher que perde um bebê (seja um aborto, perda intraútero, óbito fetal ou perinatal) acaba experimentando outras perdas sequenciais. Há um afastamento dos profissionais que a acompanhavam – seus conhecidos repentinamente a evitam – representando assim abandonos. Os amigos se afastam e ela não pertence mais aos grupos de antes. Dói demais! Por isso, é preciso fazer o possível para oferecer acolhimento, proximidade, atenção e carinho a quem perde. No caso da mãe e bebê, muitos se concentram no bebê que partiu, na razão, no fato ocorrido e deixam de olhar para a mulher que ficou. Por favor, cuidemos desta mãe!

2) O luto é lento

Há uma grande pressa em resolver tudo e “sumir” com aquela história, dando um fim aos ‘rastros’ do bebê, seu berço, seu enxoval ou retomando rapidamente as atividades rotineiras. Vamos com calma! Os objetos representam o filho que perdemos e tornam-se amuletos e memórias para a mãe, por isso é preciso oferecer tempo para que ela possa escolher o que e como quer manter. É reconfortante reconhecer a importância destes símbolos e é fundamental deixá-la à vontade para seguir seu próprio ritmo na retomada da rotina.  Respeitar o tempo da pessoa para elaborar, considerando que o processo não é linear (ora melhora, ora piora) deixam a travessia um pouco mais leve. 

3) Seja solidário de verdade

Esqueça os protocolos, ofereça apoio sincero. Há uma enorme incapacidade de nossa sociedade de lidar com o luto e com os enlutados, por uma grande falta de sensibilidade que se aloja em dois extremos: o das pessoas que simplesmente silenciam e o das que falam demais, falam sem pensar. Os profissionais podem – e devem – seguir uma conduta humanizada especialmente no momento da despedida e das más notícias e os amigos e familiares podem chegar mais perto! Embora seja uma experiência particular para cada pessoa, todas precisam ser acolhidas e respeitadas em seus processos.

4) Mais leveza, por favor

Nestes quatro anos lidando com o tema, já coleciono centenas de histórias, completamente variadas em contextos, enredos e finais, inclusive algumas terminam bem – mas todas trazem algo em comum: nos lembram de nossa fragilidade perante a morte e de nossa força perante a vida. Vale lembrar: o luto é triste, mas não precisa ser tão pesado. Há espaço para a esperança, para o riso e até para boas descobertas. No fundo, é um processo engrandecedor.

5) Precisamos ler, falar e ouvir sobre luto

Houve um dia em que achei que ninguém queria saber deste assunto. Mas, quando comecei a caminhar neste tema árido, eu vi um solo fértil. Tive certeza de que, não apenas as pessoas querem ouvir, como também precisam muito, muito mesmo, de um espaço para falar. Só assim vamos quebrar os tabus, tirar as cascas, deixar nossa prepotência de lado, sair do piloto automático e da cultura da falsa felicidade para então, quem sabe, acessarmos o que há em nós mesmos, naquele lugar que parece tão escuro, mas que na verdade nos oferece evolução, nos torna mais próximos e também mais humanos.

Que possamos lembrar destes filhos que partiram, hoje e sempre.

 

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