Grande parte das mulheres vive com alegria e responsabilidade a maternidade, sentem prazer e a desejam. Isso não significa que todas têm o dever de aceitar todas as gestações, partos e filhos. Para aquelas mulheres que não desejam ser mãe, a maternidade pode se tornar mais uma forma de opressão e submissão.

É comum ouvirmos falas que julgam e condenam mulheres que optam por interromper uma gravidez não planejada e não desejada. Isso acontece desde a vizinhança, familiares e relações de amizade, indo até os serviços de saúde das emergências hospitalares onde parte dos profissionais, ao invés de atenderem com respeito e dignidade as mulheres em processo de abortamento que lá chegam em busca de ajuda – grande parte das vezes por estarem sofrendo abortos espontâneos – são maltratadas e ofendidas apenas por estarem sangrando, sentido dores, chorando, angustiadas, na iminência de ficarem com sequelas em virtude do que estão passando.

Pois é, sou mais uma do contingente de feministas que defendem o parto humanizado, com a menor interferência externa possível, daquelas que faz coro com a turma que luta pelo fim da violência obstétrica e pelo fim de TODA forma de violência e opressão contra as mulheres e, sim, defendo a descriminalização e legalização da interrupção voluntária da gestação. Sim, continuo enfrentando cotidianamente questionamentos de pessoas que veem essas defesas como “contraditórias”.

Mas por que é sempre mais comum julgar, numa fala irrefletida, a escolha das mulheres que optaram por interromper a gravidez do que pensar sobre os motivos que a levaram a fazer isso? Por que é mais fácil julgá-la do que se questionar sobre o contexto que rodeava aquela mulher? Por que é mais fácil julgá-la a refletir sobre como ela vivia e quais eram seus planos ou dificuldades? Por que preferimos julgá-la a fazer uma simples pergunta: por que aquela mulher tomou a decisão de recorrer a um procedimento tão difícil e arriscado quanto um aborto? Porque, sim, é um procedimento difícil e arriscado e somente as mulheres que precisam recorrer a ele sabem o quanto… Respondo a essas questões: falta de alteridade. Parece ser muito complicado colocar-se, verdadeiramente, no lugar da outra. É muito mais fácil julgar…

A opção de ter filhos está associada ao controle da maternidade e, neste sentido, os movimentos feministas desenvolveram intensas lutas pelos direitos reprodutivos e sexuais, incluindo o controle pelas mulheres de seus próprios corpos. A partir do momento em que a mulher teve a opção de começar controlar a maternidade, ocorreu um avanço significativo rumo à sua emancipação. Controlar a maternidade não significa não querê-la, ao contrário: é ter o direito de optar por ela. Esse direito está presente nas reivindicações feministas dos últimos 35 anos, tanto nos discursos de recusa a uma procriação compulsória da mulher como pessoa, quanto nas reivindicações a favor da contracepção ou do abortamento. A maternidade precisa ser entendida como uma possibilidade para a mulher diante de um desejo seu.

No entanto, essa defesa da maternidade como uma possibilidade, e não um ato compulsório para todas as mulheres, surgiu em um contexto onde se consolidava o pensamento médico e os poderes científicos e tecnológicos exercidos na intervenção da fertilidade. Através da interferência das Novas Tecnologias Reprodutivas e Contraceptivas (NTRc) a mulher conseguiu ter mais controle de sua fertilidade por meio dos contraceptivos e, ao mesmo tempo, a indústria farmacêutica lucrou com o desenvolvimento de tais produtos. Para grande parte da sociedade, desejos são manipulados. Com a indústria de medicamentos não é diferente: criam-se novos desejos, falseados de necessidades, a fim de se abrir novos mercados e se ampliar os existentes para que o lucro seja cada vez maior. É a lógica do mercado!

No caso dos contraceptivos, pode-se dizer que aconteceu um encontro entre o desejo das mulheres se controlar sua fertilidade e o da indústria farmacêutica de desenvolver produtos para atender a esse mercado.

Na segunda metade do século XX, os programas de planejamento familiar, de iniciativa governamental, foram um dos instrumentos mais importantes de controle sexual e reprodutivo. A regulação da fertilidade, sentida pela sociedade civil, foi gradativamente secundarizada por esses programas oficiais.

Na década de 1980, o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) foi a estratégia utilizada pelas mulheres para fazer o Estado assumir o planejamento familiar em um contexto amplo de atendimento à saúde em todas as fases do ciclo reprodutivo feminino. Na sequência, em 1988, com o processo Constituinte, o movimento sanitarista conseguiu criar o Sistema Único de Saúde (SUS), o qual foi planejado para ser um conjunto de unidades, ações e serviços que trabalham para o mesmo objetivo: a promoção, proteção e recuperação da saúde, tendo como princípios a Universalidade, a Equidade e a Integralidade.

O Estado brasileiro, entendido como o principal gestor e executor de políticas públicas, tem sido omisso no que diz respeito à grave problemática da clandestinidade do aborto e suas consequências para as mulheres. Mesmo com as possibilidades legais de abortamento, previstas no Código Penal de 1940 (em caso de estupro, em situações de risco de vida para a gestante e em caso de feto anencéfalo), nosso Estado “laico” ainda criminaliza a prática e a escolha de se interromper uma gestação, penaliza e não dispõe de serviços de saúde com uma visão de integralidade para atender às mulheres. Os poucos serviços nessa área se referem somente ao “planejamento familiar”, mas contracepção não é somente barrar a gravidez, significa poder vivenciar a sexualidade sem medos, ameaças ou riscos. Apesar de as mídias e a sociedade em geral estimularem a sexualidade cada vez mais cedo, não se discute de forma educativa e sem pré-conceitos os seus significados e impactos.

Em países onde o aborto é legalizado, podendo ser realizado de forma segura e acessível no sistema público de saúde, em que a mulher tem a livre escolha pela continuidade ou não da gravidez, os índices de mortalidade materna baixaram consideravelmente, fator que leva à constatação de que legalizar a escolha pela interrupção da gestação pode ser importante para o Estado na implementação de políticas públicas de saúde eficazes.

A partir do momento em que a mulher se inseriu socialmente no espaço público, através do trabalho, e necessitou controlar a reprodução, as taxas de fecundidade começaram a diminuir. Além das recomendações feitas pelos governos, “preocupados” com a superpopulação do mundo, as mulheres também vêm optando por terem menos filhos por vários motivos: questões de saúde, ausência do pai na criação das crianças, inquietação com o futuro da sociedade, as condições em que os filhos irão crescer e a precariedade das condições econômicas de sobrevivência. Esses fatores já seriam suficientes para não ter filhos. Entretanto, mesmo considerando o contexto de redução das taxas de fecundidade no mundo e as mudanças de significado no ato de ter filhos, a maioria das mulheres continua incluindo a maternidade em seu projeto de vida. Optam por ter menos filhos ou os têm mais tarde, depois de obter relativa estabilidade financeira e alguns anos a mais de escolaridade, porém ainda são poucas as mulheres que não incluem a maternidade em seus projetos de vida. E essas são excessivamente questionadas pelos familiares e sociedade em geral pois, afinal de contas, "onde já sei viu mulher não querer ser mãe"?! O mais curioso é que tal cobrança não recai sobre os homens que não desejam ser pais… 

A maternidade (e a paternidade) precisa ser entendida e defendida quando desejada, compreendida como uma função social que contribui para a construção de uma sociedade baseada no respeito à coletividade. E, nesse sentido, é fundamental que a opção pela maternidade seja voluntária, implicando no direito ao planejamento familiar e ao aborto. O direito de ter filhos é tão legítimo quanto o direito de não tê-los e, no caso de uma gravidez não desejada, o direito ao aborto. Ter filhos pode satisfazer o desejo de grande parte das mulheres, e a defesa deste direito é parte dos direitos reprodutivos, incorporando o controle sobre o próprio corpo.

A autodeterminação, o decidir livremente sobre si própria, é uma das questões que está diretamente ligada à posição da mulher na sociedade, com as relações de gênero e, sobretudo, com o seu papel em relação à procriação. Com base nesse entendimento, a criminalização do aborto se relaciona com a estrutura social patriarcal – de uma sociedade que privou as mulheres de exercerem completa, livre e conscientemente sua liberdade. Sendo a opressão sobre a mulher uma questão histórica, a criminalização do aborto se incorpora nesse cenário, que pode ser compreendido por meio da perspectiva de gênero, onde o ser mulher e o ser homem são entendidos como construções sociais, políticas e ideológicas. Por isso, a necessidade de expressar a rejeição à ideia do determinismo biológico da condição feminina e do “natural” papel da mulher e do homem nos espaços sociais.

Apesar de todas as conquistas e avanços da maternidade no cotidiano das pessoas, ainda é negado às mulheres o acesso a serviços seguros de interrupção voluntária da gravidez, fator que contribui para que um significativo número de mulheres morram e outras milhares fiquem com sérias consequências de saúde física e psicológica em virtude da pratica comum do aborto inseguro e clandestino. A descriminalização e a legalização do aborto deve fazer parte do amadurecimento e dos avanços da sociedade frente à emancipação concreta das mulheres. Os atores sociais que buscam e lutam pela legalização completa do aborto (encaram-no como e) pretendem torná-lo um direito reprodutivo.

Mas essa liberdade reprodutiva, tão debatida em seminários, encontros, congressos e pelo mundo a fora, ainda encontra muitos entraves. Por mais que a mulher tenha “garantido” relativo controle da vida reprodutiva e liberdade sexual, a sociedade lhe proíbe a prática do aborto em uma gravidez não desejada e o Estado vai a reboque das forças conservadoras, tradicionais e opressoras. Percebe-se com isso que o principal front desta batalha está na esfera da sociedade civil. É neste espaço que deve ser reconhecido o direito sobre as gestações, em dar-lhes continuidade ou em interrompê-las quando houver impedimentos objetivos ou subjetivos. As decisões sobre a continuidade da própria gravidez são decisões éticas pessoais que devem ser tomadas levando em conta o conjunto da situação e avaliação racional e efetiva do poder e desejo em assumir a responsabilidade de gestar e criar uma criança (ou mais uma criança). 

Os direitos reprodutivos, a partir da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (1994, Programa de Ação, § 7.3), “se ancoram no reconhecimento básico de todo casal e de todo individuo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência (…). O respeito pelos direitos reprodutivos das mulheres e a oferta de serviços de saúde reprodutiva, são ainda requisitos para a sobrevivência e a saúde neonatal, para o desenvolvimento das crianças e para o bem-estar geral das famílias”.

Neste sentido, a aplicação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) e do planejamento reprodutivo e familiar são essenciais para o exercício dos direitos reprodutivos em sua plenitude, tendo assegurado o acesso às ações político-preventivas. Ao tratar do planejamento familiar, a Constituição estabelece que cabe ao Estado gerar e oferecer condições e informações para que todas as pessoas que dela necessitarem tenham livre e igualitário acesso ao direito de planejar o espaço familiar.

Mesmo não sendo legalizada, é milenar a prática do aborto. É também por isso que muitas feministas questionam a sociedade: criminalizar resolve? Não legalizar o abortamento praticado faz com que ele não exista? Claro que não! As mulheres com poder aquisitivo recorrem a clínicas bem equipadas e assim se alimenta o mercado da clandestinidade do aborto. E aquelas que não possuem recursos financeiros realizam o aborto de modo inseguro, ficando com sequelas e recorrendo aos serviços públicos de saúde com agravante do aborto em curso. Desse modo, a questão se torna também um problema de saúde pública. Ou seja: a descriminalização e a legalização do aborto só traria maior segurança às mulheres em todos os sentidos e, por tabela, menos custos para o Estado, pois se gastaria menos no procedimento cirúrgico de interrupção da gestação (um procedimento simples) do que o setor da saúde pública gasta em remediar a situação de mulheres que chegam às emergências hospitalares com agravamentos de abortos em curso ou mal sucedidos. 

Há que se destacar que na maciça maioria dos países em que a prática da interrupção voluntária da gestão está legalizada, essa possibilidade é viável para gestações de até no máximo 12 semanas. Em nenhum desses países existiu ou existe uma corrida desenfreada de mulheres recorrendo à alternativa de abortamento de suas gestações, tampouco é comum que a mesma mulher busque várias vezes este recurso. O aborto se torna uma necessidade para uma parte das mulheres em determinado momento de sua vida. 

Em relação à polêmica do “inicio da vida”, pois bem… Trata-se de uma POLÊMICA. Não de um CONSENSO. Não há consenso sobre o inicio da vida nem na medicina, nem na biologia e nem nas ciências sociais. Entre o ponto mais radical do inicio da vida está a defesa de que todo o espermatozoide é uma vida em potencial. Oras, imaginemos então quantas possíveis vidas seriam abortadas pelos ralos em ejaculações que não visam a procriação, não é mesmo? De outro lado está a defesa de que a vida só se inicia depois do nascimento, quando o feto deixa a condição de feto e passa a ser um ser humano com capacidade de sobrevivência a partir da alimentação externa que não é através do corpo da gestante. Entre esses dois extremos há incontáveis teorias sobre o inicio da vida, da fase embrionária, das possibilidades de sobrevivência extrauterina de fetos prematuros e por aí vai.

Outra questão fundamental: o fato de existirem possibilidades legais de abortamento não faz com que as mulheres sejam induzidas a realizarem aborto caso não queiram, mesmo que a mulher tenha engravidado a partir de um estupro ou que esteja correndo risco de vida iminente ou que esteja numa gestação de feto anencéfalo. Portanto, quem for contra a interrupção voluntária da gravidez jamais será forçada ou induzida a fazê-la, jamais! Ou seja, querida mulher, se você é contra o aborto… Não faça!

Mas é interessante observar que o setor mais conservador e contrário às possibilidades de descriminalização e legalização da interrupção voluntária da gestação é o religioso, justamente um setor em que se prevalece o poderio masculino (de pastores, padres) na hierarquia do domínio e estabelecimentos das regras e preceitos a serem seguidos por praticantes da fé religiosa. Ainda assim, esses preceitos podem orientar a prática de seus “fiéis”, mas nunca poderiam determinar as escolhas e atos de quem não professa aquela fé. Portanto, se você é católica ou evangélica ou espirita ou crente a qualquer religião que te orienta a não interromper a gravidez em hipótese nenhuma, sim, você tem o direito de seguir essa orientação. Mas não tem o direito de exigir que eu, ou quem quer que seja, siga essas orientações que são suas.

Por fim, tenham a absoluta certeza de que o aborto, para qualquer mulher, é sempre uma necessidade, jamais um desejo. Não é uma decisão fácil, tomada de ânimo leve. A mulher que opta por abortar pensou muito, pesou sua decisão e concluiu que, naquele momento, é o melhor para sua vida. Nenhuma mulher engravida para ver como é passar pela experiência do aborto. Decidir sobre o futuro da própria vida é um direito de cada ser humano. Por isso, é preciso que as mulheres possam exercer os direitos reprodutivos em sua plenitude sem restrições e punições, que seja garantido às mulheres o direito real de terem direitos.

Não, ninguém é a favor do aborto!

Não, ninguém quer passar por isso!

Mas que a escolha da não maternidade (ou de se ter mais uma criança) seja tão legítima e respeitada quanto a escolha da maternidade.

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