Era apenas mais uma manhã comum de sábado. Dormi sozinha e fui acordada muito cedo por uma pequena carinhosa, que se aconchegava comigo tendo vindo de seu quarto, dizendo: “Mamãe, já é de manhã. Ainda é cedo. Vim dormir mais um pouquinho, agarradinha com você“.
Eu precisava me levantar e agilizar os planos para um compromisso. Mas, por motivos alheios à minha vontade, os planos não deram certo…
Eu poderia ter me aborrecido e arrastado o aborrecimento sábado a fora. Mas então me lembrei que uma pequena cheia do mais sincero amor me esperava. Deixei o aborrecimento de lado, voltei para a cama e me aconcheguei com ela. Ela se virou para mim, me abraçou e disse: “Isso, mamãe, vamos dormir mais um pouquinho. A gente precisa…“.
Acordamos juntas, entre dezenas de abraços e beijos e preguicinhas das que gostamos tanto de fazer. Só nós duas, esparramadas na cama. Então nos levantamos, abrimos as janelas dos nossos quartos, fomos ao banheiro, lavamos nossos rostos e brincamos mais um pouco, escovando nossos dentes.
Tomamos nosso café da manhã ouvindo Blues Traveler, depois de abrir todas as portas e janelas e deixar o sol entrar. Nos vestimos em meio a piadas, risadas e correrias entre meu quarto e o dela, sem saber ao certo quem era a criança das duas…
O telefone tocou. Eram amigos nos convidando para ir com eles assistir ao campeonato de windsurf. Fomos. Ela completamente radiante ao ver todas aquelas velas e a movimentação que acompanhava a montagem dos equipamentos, o pessoal entrando na água e domando o vento. Um pouco corria, um pouco assistia, um pouco escalava uma pedra ou conversava com a gente, como antiga entendida dos paranauês daquele esporte que ela via pela primeira vez.
Voltamos para casa – eu havia combinado de passar a tarde de sábado estudando com um grupo de amigos do doutorado para uma prova muito difícil que teremos na próxima semana.
Chegamos. Juntas, abrimos todas as portas e janelas para receber os “amigos do doutorado da mamãe”. Eles chegaram e ela os foi receber no portão. “É aqui, gente! Pode parar o carro ali!“.
Deu as boas vindas ao meu lado. Abraçou um a um. Disse: “Eu sou a Clara e é aqui que eu moro. Minha mãe mora aqui também, ela é a Ligia“. Levou-os até a sala e simplesmente disse: “Podem estudar, gente“.
Eu já havia explicado, no dia anterior e durante a manhã, que estudaríamos muito essa tarde, pois a mamãe e os amigos tinham uma prova muito difícil pra fazer. Sua resposta: “Tudo bem, mamãe, vou ficar aqui do seu lado e cuidar de tudo“.
Assistiu a um filme enquanto estudávamos, esparramada no sofá entre mil almofadas coloridas. Depois, sem que ninguém sugerisse, foi cuidar de suas plantas – ela tem um canteiro que é só dela e que, ao apresentar aos novos amigos, fez questão de dizer “Eu que mando em tudo aqui nesse jardim“. Cuidou de suas plantas, voltou para a sala, sentou-se ao nosso lado, em sua mesinha e, cantando, ficou ali desenhando.
Brincou com seus brinquedos. Nos contou uma história de parto “mormal”. Correu muito entre a sala e o quintal. Cuidou das bicicletas. E, terminando enfim nossos estudos, saímos todos para aproveitar o início da noite na beirinha do mar.
Ela com a gente, sempre sorridente, sempre falante, sempre brincalhona e parceira.
Pediu seu tradicional pastel de vento – que o garçom apelidou de “Pastel Minuano da Clarinha” – e tomou seu suco de limão. Correu muito na praia, pés descalços na areia, enquanto descansávamos de horas e horas de estudo e ríamos e conversávamos. Cansada, se aconchegou no meu colinho e quando eu pensei que ia dormir, disse bem alto: “Mãe, hoje eu ainda aguento um churrasco!“. Mas como a mamãe sabe até onde vai a resistência da filha – e a sua própria, embora tantas vezes pareça que não – voltamos para casa, nos despedimos de nossos amigos, dissemos a eles que são sempre bem vindos, e nos recolhemos.
Ela tomou um longo banho ao som de Love of My Life, cantada por nós duas juntas, e dormiu desmaiada.
Jamais na minha vida eu imaginei que um dia teria uma amiga tão companheira, tão cúmplice, tão parceira, que ao aceitar acolhimento, também me acolheria. Que ao aceitar meu cuidado, também me cuidaria. E que me apoiaria em cada passo do caminho.
Um dia, quando eu estava grávida, uma pessoa que eu não conhecia muito bem apenas se aproximou de mim e disse: “Essa menina que está aí será sua maior companheira de vida“.
Eu não sabia que era uma menina…
Eu não sabia que ela tinha toda razão…
Levei 32 anos para encontrar minha filha Clara.
Eu não a planejei. E ainda assim, a despeito de todos os planos rigorosamente feitos (e desfeitos logo depois), ela chegou. Chegou, me ensinou milhões de coisas e continua me ensinando. Todos os dias, em cada situação.
Ensinando a real dimensão do amor. O poder da compreensão e sinceridade. O poder e magia da empatia, do olho no olho, do abaixar-se para se dirigir a alguém que não alcança teu olhar, de dizer a verdade, de ser sincera, de não culpar outra pessoa por seus problemas, de se acalmar, de se doar, de ser companheira de alguém.
E, principalmente, de entender verdadeiramente que não planejar viver algo não é sinônimo de desvio de rota…
Pois foi somente quando não planejei meu caminho, que o encontrei.

Grata, filha. Você tem apenas 4 anos e me ensinou a lição mais importante desta vida. Que doutorado nenhum seria capaz de me ensinar.

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