– Mãe, quero te contar uma história que aconteceu. Recusei um papel na apresentação de teatro. E aí criaram um outro personagem pra mim.

– Como assim “criaram”?

– Criaram um novo personagem pra mim. Se chama “Crítica Reflexiva”

Foi assim que minha filha de 9 anos veio conversando comigo após pegá-la na escola. Mas vou contar desde o início.

Clara está passando esse trimestre estudando Teatro como linha norteadora. Fará visita à universidade para conhecer o curso de Artes Cênicas e está ensaiando A Tempestade, uma peça escrita por William Shakespeare. Falando bem sinceramente, eu nunca me interessei por Shakespeare. Por nenhum motivo em especial, apenas nunca fui muito chegada aos clássicos. Com ela é o contrário. Ela tem uma personalidade muito ligada às ciências humanas e é apaixonada por todas as formas de arte. Tanto que se juntou ao grupo que está estudando Teatro na escola.

Por não conhecer o enredo desta peça, faço muitas perguntas a ela, e ela explica com detalhes, a ponto de que hoje eu já sei quem foi Próspero, sei que ele é pai de Miranda, que existiu o Ferdinando e tudo mais. Ela passa dias e dias com o roteiro na mão e está verdadeiramente interessada.

Então veio no carro dizendo que havia recusado um papel. Que achava inclusive um absurdo que as pessoas aceitem interpretar papeis como esse.

– Filha, mas por que? O que te indignou tanto?

– Mãe, ele é um escravo. Escravizam ele. Isso é inaceitável. Assim que me deram o papel eu disse: “Jamais. Não vou fazer”.

Bem, frente a essa argumentação, não há muito o que dizer. Então perguntei o que foi feito.

– Eu falei com o profe e, como não tinha mais personagens a serem interpretados, ele então criou um para mim.

– Criou? Criou um personagem para uma obra de Shakespeare?!

– Sim, criou.

– E como se chama esse personagem?

– Se chama “Crítica Reflexiva”.

Eu dei uma gargalhada alta porque entendi o que havia acontecido. E sei que crítica reflexiva é um recurso bastante utilizado em algumas obras. De maneira simples, é quando se produz uma pausa para análise de determinada passagem, levando o público a refletir sobre ela. Eu já havia entendido, mas pedi a ela que me explicasse.

– Então, mãe, em alguns momentos eu vou parar a peça e perguntar às pessoas se elas concordam com o que está acontecendo, vou mostrar que há coisas inaceitáveis, esse tipo de coisa.

– Sei, filha. Eu particularmente acho muito bom. E você? O que acha?

– Eu adorei, né mãe?

– Ah, é? E me diz uma coisa: você identifica alguma semelhança entre você mesma e esse papel? 

– Claro né, mãe! Acho até que foi por isso que o profe me deu. Eu faço isso o tempo todo, sempre paro tudo pra questionar. Até quando eu disse pra ele que jamais faria esse papel, porque tenho horror a escravidão, ele disse: “Nossa, Clara, eu nunca tinha pensado nisso. Você tem razão”. Ou seja, mãe, eu levei o profe, um ADULTO, a repensar as coisas.

Eu já estava querendo me ejetar do carro e dar uns gritos de êxtase, né mores, mas segurei a onda e disse:

– Você acha que faz isso sempre, filha?

– Claro que eu faço. O tempo todo.

– E como é isso pra você?

– Ué, normal. As pessoas tinham que fazer isso. Tem coisa que não se aceita.

– Concordo totalmente com você.

– Eu sei, mãe, que às vezes chega a irritar o tanto que eu argumento. Mas tá vendo, funciona. Olha o que aconteceu. Você lembra quando me convidaram pra fazer um comercial pro governo do Estado e eu não fiz? Jamais. A gente não pode estar do lado de quem não cuida das pessoas.

Pensa na cara desta mãe que vos escreve. Eu já estava entre a gargalhada, a emoção (e o desespero). Então disse a ela que achava isso maravilhoso – mesmo quando chega a me irritar a quantidade de argumento (porque sim, amigos, creiam, não tem fim…). Que pessoas como nós muitas vezes causamos certos desconfortos em função do que discutimos, do que não aceitamos. Mas que era assim mesmo. Que nem por gerar desconforto a gente tinha que parar de discutir ou argumentar, pois isso leva as pessoas a refletirem em um outro grau. Expliquei pra ela que, em algumas situações, não seremos bem vistas. E que isso jamais deve ser um problema. Afinal, há coisas que realmente não podem ser aceitas. E se ela, por ventura, se sentir intimidada, ou cansada por esse motivo, eu sempre serei um porto seguro – inclusive porque eu também sei como é ser assim…

Por que estou contando isso? Para fortalecer todas as mães, pais, educadores, famílias e grupos que trabalham estimulando a reflexão e a crítica nas crianças. Que não as veem como subalternas devedoras de respeito aos mais velhos. Que as ensinam a desafiar os conceitos postos, a debater respeitosamente, a argumentar com seus pontos de vista, a rejeitar soluções pré-concebidas apenas porque sempre foi assim. Quero dizer a todas e todos vocês, que muitas vezes se sentem perdidos neste mar de normose, sentindo-se estranhos num ninho podre, que é importante seguir. Seguir fortalecendo uma nova geração de crianças criadas com total respeito e que, também por isso, busca o respeito na coletividade. Onde há crianças violentadas, há novos violentadores. Há novos seres que aceitarão o violento e o indigno. Onde há crianças criadas com amor e empatia para serem cidadãs ativas no mundo, há transformação em curso. Muitas vezes, nossa forma de educar – crítica, reflexiva, inquisidora, estimuladora da autonomia, da emancipação e da democracia – é criticada, é vista como desnecessária, usando para isso de uma série de argumentos. Argumentos esses que estão a serviço de muitos fins e nenhum deles vê o ser humano como detentor do direito de construir sua história e de modificar positivamente a história do grupo ao qual pertence.

Ensinar as crianças que elas têm o direito de divergir e, sobretudo, o dever de respeitar todos os seres não é produzir uma mudança no futuro. É mudar o agora. Da mesma forma que minha filha – e muitas outras crianças em seu entorno – não aceita a escravidão, ela também não aceita o racismo, o sexismo, o machismo e o fascismo. Porque ela sabe que há direitos inalienáveis. Da mesma forma que há o dever de protegê-los.

Não, não era apenas uma peça teatral da escola.

É exercício ativo de vida.

O que estimularmos nossos filhos a fazerem enquanto se desenvolvem e amadurecem, será o que eles farão desenvolvidos e amadurecidos.

E isso pode ser tão perigoso quanto gratificante.

Ensinar às crianças o valor inestimável da recusa à violência com base em uma educação livre e não violenta: deveria ser o primeiro capítulo daquela cartilha sobre como criar filhos para transformar positivamente o mundo. Aquela que nenhum de nós recebe quando nos tornamos mães e pais. Mas estamos aqui, juntas e juntos, para que possamos construí-la. E, em tempo, meu agradecimento a esse professor, que reconheço como companheiro nesta tarefa de dar à criança um dos maiores direitos de um ser humano: o de ser divergente em busca do respeito a todos os seres. A mãe-cidadã que há em mim saúda o pai-cidadão que há em você.

E na imagem que abre este texto não está minha filha. Mas, sim, Greta Thunberg. Essa menina revolucionária – que recebeu inúmeros diagnósticos em função de seu comportamento divergente antes que se aceitasse que sim, ela é incrível. E que eu recomendo que você conheça. Ela está mudando o mundo. 

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.