Sou uma admiradora dos textos da Eliane Brum.
Mas esse transpassou-me. Costurou como em um patchwork a mãe que sou à filha que fui e sigo sendo.

É um texto sobre dor dos filhos e sobre o sentido da vida.
Mas ao contrário do que imaginei com a leitura do título, não li pensando em minha filha. Li pensando em minha mãe.
Especialmente na mãe que naqueles momentos mais difíceis vi parada à minha frente enquanto eu me desesperava, me perguntando, aflita: “Filha, o que eu posso fazer? Me diz o que eu posso fazer pra te ajudar.”.
Às vezes eu me enraivecia simplesmente por ela não poder fazer nada. Não havia nada que ela pudesse fazer para me ajudar, para me salvar daquela dor – fosse qual fosse. Então eu pensava comigo mesma, por não conseguir me expressar direito (até hoje minha traqueia fecha em momentos de muita angústia): “Não precisa fazer nada. Apenas esteja comigo.“.
Nessas horas, muitas vezes pareci rude, grosseira ou impaciente com ela, que queria apenas me ajudar. Mas era apenas a minha incapacidade de dizer que não havia necessidade de falar nada, de fazer nada, de dar qualquer conselho. Porque era apenas da presença dela que eu precisava. Deitar a cabeça no seu colo e ali me deixar transbordar. E isso se mostrava especialmente gritante em sua ausência, nos momentos difíceis que vivi sem tê-la ao meu lado…

O texto dessa semana da Eliane Brum tem como título “A dor dos filhos”. Comecei lendo com os olhos de mãe, que de uma hora pra outra se transmutavam em olhos de filha e voltavam a ser olhos de mãe.
Que texto…
Um texto que diz exatamente o que penso sobre ser o processo de paternidade e maternidade um constante vir a ser – já citei Paulo Freire aqui inúmeras vezes em função dessa expressão – muito distante de ser apenas um evento biológico. Ter óvulos e espermatozoides viáveis não diz absolutamente nada sobre sua capacidade e habilidade em ser mãe ou pai. Da mesma forma, não os ter também não significa não ser capaz. Se todos tivessem essa noção claramente estabelecida talvez tivéssemos mais pais e mães verdadeiros, independentemente da existência ou não de base hereditária.

Eliane diz, sobre isso:

 E talvez tornar-se pai e tornar-se mãe se dá também na escolha do que fazer com esse sentimento. Tornar-se pai e mãe porque ser pai e mãe não é algo dado, algo que acontece a partir de um ato biológico, sempre mais explícito para as mulheres do que para os homens. Tampouco basta estar no lugar de pai e de mãe, para além dos laços biológicos. É preciso efetivamente ocupar esse lugar – tornar-se pai e mãe é um processo que não está nem dado nem garantido, exige um contínuo movimento de vir a ser, raramente fácil ou simples.

Quando eu e minhas companheiras de maternidade nos debruçamos sobre discussões, por vezes acaloradas, sobre formas e alternativas de maternar, sobre dúvidas e angústias, numa busca incessante por fazer o melhor, pode parecer a alguns olhos superficiais que estamos ali debatendo sobre o que não precisaria ser debatido, buscando a cura do incurável ou uma fórmula secreta da insólita felicidade. Já ouvi inúmeras vezes que “não é necessária assim tanta discussão; ser mãe simplesmente acontece assim que o exame de gravidez dá positivo, quer você queira ou não”. Errado. Totalmente errado.
Ser mãe não existe.
Construir-se mãe, sim.
É por isso que debatemos, que questionamos, que inquirimos e refletimos e vamos em busca. E não encontrei até hoje frase melhor para explicar esse processo do que essa, presente justamente no texto que recomendo  hoje:

Por paradoxal que pareça, me parece que tudo fica mais claro quando se complica.   

Aprendi com minha mãe que o simples nem sempre é o preferível e que não se deve fugir da complexidade, lição que reaprendi depois no estudo da biologia, especialmente em meu gosto particular pela teoria sistêmica que não só valoriza como se baseia na complexidade.
Gosto do complexo porque é nele que vejo a vida acontecer.
Enquanto o reducionismo se ocupa em tentar explicar as partes, é na complexidade que vemos o conjunto da vida em funcionamento, pulsante.
Por que haveria de ser diferente com a maternidade?

Então recomendei a leitura desse texto em nosso grupo sobre maternidade e uma companheira que vive seus momentos iniciais como mãe, tendo recebido seu recém nascido há poucos dias, externalizou sua angústia não somente com a leitura, mas principalmente com esses primeiros momentos como mãe de fato, ao olhar para si, para suas angústias e para a quebra do suposto romantismo, dizendo: “Olho para ele todos os dias e penso: ‘Não há opção, tenho que ser capaz de educá-lo, de estar ao lado dele’. Mas a dúvida sempre paira no ar: ‘Serei capaz?'”.
Eis uma mãe em processo real de vir a ser. Porque aquelas que já se consideram prontas – como se fosse possível estar pronta para uma função em constante construção como a maternidade – sequer se questionam sobre. Muitas seguem o automatismo da vida diária sem pausa de reflexão, reproduzindo comportamentos como quem lê um manual.
E engana-se aquele que pensa que, não fazendo a si esse questionamento, está isento da angústia.
A angústia não vem do questionamento. Vem da busca por seguir um roteiro que não é o seu próprio e não foi construído por si.
Talvez esteja aí a resposta para a pergunta: “Por que raios esse ser que acaba de chegar não veio com um manual?”. Simplesmente porque manual serve para coisas prontas, acabadas. Para aquilo que será construído e terá um modo peculiar e individual de funcionamento não é possível ditar um manual. Não existem instruções. Elas são construídas enquanto se aprende sobre ele, e podem ser desconstruídas a todo instante.

(…) só podemos mostrar aos nossos filhos, porque isso é algo que se mostra, não que se diz, que a tarefa de uma vida humana, desde sempre e para sempre, é criar sentido onde não há nenhum. Inventar uma vida é a tarefa que faz de todos nós ficcionistas. E, em geral, uma vida que faz sentido é aquela em que os sentidos são construídos para serem perdidos mais adiante e recriados mais uma vez e sempre outra vez. É o vazio, afinal, que nos faz inventar uma vida humana – e não morrer antes da morte.

Eis aqui um texto que deveria ser lido por todos os que estão mergulhados – ou se pretendem – nessa maré profunda da maternidade/paternidade, que ora nos submerge, ora nos empurra à superfície mas que, inevitavelmente, se apresenta como um vasto oceano de descobertas e aprendizados.
E que termina assim:

É preciso aguentar. Saber aguentar e escutar a dor de um filho, sem tentar calar com coisas o que não pode ser calado com coisa alguma, é um ato profundo de amor. Um momento sem palavras em que nosso silêncio diz apenas que a tarefa de criar uma vida que faça sentido é dele, pessoal e intransferível. E tudo o que poderemos fazer é estar mais ou menos por perto, ainda que nada possamos fazer.
E um dia, talvez, receber uma carta/email na qual está escrito: “Mãe: o que eu sempre vi em você era uma pessoa que não desistia do próprio desejo. E que nunca deixou a vida matar a vida”.Afinal, o que legamos a um filho é o nosso movimento em busca de sentido. E este não pode ser um arrastar-se de zumbi.

Leia-o na íntegra.
“A dor dos filhos”. Por Eliane Brum.

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