No dia em que publico esse texto, Yuja faz 3 anos.

Eu já havia iniciado o trabalho de pesquisa da minha tese de doutorado em Saúde Coletiva há 2 anos e meio quando tudo isso aconteceu. Estava acordada na madrugada justamente estudando para disciplinas do curso quando percebi que algumas ativistas pediam ajuda, online, para uma doula e a gestante que ela acompanhava na cidade de Torres (RS). Até onde sabíamos, a gestante estava sendo conduzida por força policial, em trabalho de parto, de sua casa em direção ao hospital para ser obrigada a uma cesariana contra sua vontade. Mas isso parecia tão horrendo, tão absurdo, tão indignante que me custou alguns minutos crer. Poucos minutos depois, eu estava, junto com outras ativistas, tentando mobilizar esforços para dar visibilidade a essa que foi, sem dúvida, uma gigantesca violação de direitos humanos, especialmente de direitos da mulher. Logo após publicar no site Cientista Que Virou Mãe a denúncia, o caso tomou uma proporção de divulgação imensa, alcançando veículos da mídia tradicional e chegando a outras instâncias. Todo esse percurso está documentado aqui no site. A denúncia inicial. Os encaminhamentos dados pela aceleradora social Artemis. A chegada da denúnica na Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Presidência da República. A manifestação de apoio do Governo Federal a Adelir. E todos os desdobramentos posteriores.

Duas semanas depois do que viveu, já com sua filhinha nos braços, conversei durante mais de 1 hora com Adelir Carmen Lemos de Goes, hoje Adelir Carmen Guimarães Lovari, e seu companheiro, Emerson. Jamais me esquecerei do que ele me disse, pouco antes da conversa:

“Hoje é um ótimo dia! Ela está voltando a sorrir. Fez até um bolinho hoje…”.

Nossa conversa está publicada aqui. E foi a partir de então que desenvolvi com Adelir, a querida Adê, uma ligação que extrapola o ativismo, que mistura solidariedade, carinho, inspiração e motivação. Um ano depois, ela gravou um depoimento, que juntas publicamos aqui. Desde então, nos comunicamos, trocamos apoio, incetivo e amizade. 

Em julho de 2016, defendi minha tese de doutorado intitulada “Ameaçada e sem voz, como num campo de concentração – A medicalização do parto como porta e palco para a violência obstétrica”. Foram dezenas de páginas contendo relatos de violência obstétrica, interpretações, inferências e estudos. E para encerrá-la, convidei três mulheres cujas histórias de vida mudaram a minha própria. Adelir foi uma delas. E, assim, não fui eu a encerrar minha própria tese. Mas elas. Com seus Relatos de Renascimento. 

Hoje, Yuja, filha caçula de Adelir, completa 3 anos. E trago aqui, na íntegra, seu relato, que está em minha tese como testemunha de renascimento. O que ela viveu transformou sua vida para sempre: hoje ela é estudante de enfermagem e ativista das mais engajadas na luta contra a violência obstétrica e em prol da humanização do parto no Brasil. Mas transformou também a vida de muitas outras mulheres, a minha em especial. Movida e inspirada por sua história, infelizmente compartilhada por milhares de outras mulheres também vítimas da violência obstétrica, começo agora a me preparando para, talvez, mais uma jornada. A luta contra a violência obstétrica novamente me chama para ir ao encontro de mulheres brasileiras que sobreviveram a ela e, embora incipiente, já começo os primeiros movimentos para aceitar esse chamado. 

Adelir, minha querida: sua história de transformação da dor e da violência em enfrentamento me move e inspira a continuar neste caminho, e espero sinceramente que nos vejamos em breve em Torres, que é a partir de onde desejo começar um novo projeto. Salve Yuja, menina iluminada, cuja história de nascimento transformou uma mãe e tantas outras mulheres. Que sua vida seja cheia deste amor transformador que inspira tantas de nós. 

RELATO DE RENASCIMENTO – ADELIR

Presente na tese de doutorado “Ameaçada e sem voz, como num campo de concentração – A medicalização do parto como porta e palco para a violência obstétrica”, de Ligia Moreiras Sena (2016)

Eu, uma outra Adelir de quem já me conhece desde que nasci ou desde minha infância e adolescência, e Adelir hoje, a forte e resiliente, para quem me conhece há pouco mais de dois anos. Realmente… São duas pessoas distintas em uma só!

Nunca pensei em minha vida que algo pudesse me acontecer que repercutisse de forma midiática como foi a violência obstétrica que sofri. Muita crítica e xingamentos de pessoas que não conheço e de pessoas que conheço profundamente como amigos e familiares, e o mais importante: o apoio de pessoas que também não conheço. Dessas guardei boas relações de amizade, duas ou três pessoas de minha família e poucos amigos antigos que restaram.

As pessoas já têm uma cultura de julgar e apontar quando veem uma notícia, principalmente sobre um assunto polêmico e que desconhece. Mas e essas pessoas que pararam seus afazeres e vieram me procurar? Foram muitas, nem sei dizer quantas, mas foram centenas  e o mais surpreendente: a maioria também havia passado por violência obstétrica. Eu me horrorizei! Não sabia que estava tão comum esse tipo de prática na obstetrícia. E foi assim que me fortifiquei. A sensação que tive, usando uma metáfora, foi a de que havia “saído da matrix” e me uni a essas outras mulheres que, iguais a mim, se fortificaram. E levantei a bandeira do ativismo. E juntas choramos as mortes maternas, as vítimas de violência obstétrica, seja parindo ou em situação de aborto, e que sentem dificuldades de encontrar apoio. E vi que essa rede de empoderamento é essencial, junto com os profissionais da obstetrícia humanizada, e dessa rede não quero sair mais. Mudou não só a minha vida, mas envolve agora toda a educação que passo para os meus filhos para que se tornem adultos dignos!

Não existe outra razão para essa superação… Quando comumente se entra em depressão pós parto, a união desse coletivo foi a melhor terapia que eu tive além de dentro de minha casa, marido e filhos. E da mesma forma como fizeram comigo, procurei e deixei mensagens de fortalecimento a outras que passaram por situações assim e estou cada vez mais envolvida, de tal forma que não consigo mais me calar, me manifestando a cada ato de violência. Mudou a forma como eu enxergava a vida, mudou as minhas conversas com outras pessoas, tenho hoje uma visão mais crítica e desconstruo as visões erradas que tinha, sempre me informando e aprendendo Sem perceber, me tornei uma feminista, orgulhosamente feminista!

Sou a caçula de três irmãos e fui mimada pelos meus pais, que logo na adolescência perdi. Solteira e sozinha com meus irmãos já casados, tive que enfrentar uma sociedade patriarcal e machista, baixava a cabeça para tudo que me mandavam fazer, sem querer fui me tornando uma mulher frágil que não sabia negar nada, e assim se acostumaram comigo. Hoje, essas pessoas de meu antigo convívio me desconhecem por eu ter negado uma cesárea desnecessária, e foram vendo que diante de muita humilhação pública, fui resistindo. E me desconhecem ainda mais por perceberem que eu não estava sozinha. E acabaram por se calar e se afastar… Claro que isso dói no mais profundo de minha alma, principalmente quando vejo fotos do meu passado, primos e tios que conviviam praticamente diariamente comigo, amigas de quem tenho boas recordações e nunca mais nos falamos. Também houve brigas e intrigas na família de meu marido, foi um período muito difícil… Mas a outra Adelir teve que renascer, porque ainda tinha três filhos e mais uma recém nascida para cuidar e tentar, junto com meu marido, ter um puerpério minimamente tranquilo.

E hoje pretendo seguir uma carreira, fui motivada, sem demagogias, não por vingança ao sistema. Entrei com processos e a lei vai decidir (se fizer cumprir dessa vez de forma correta). Fui motivada por um grupo de humanização que me faz bem, que me faz gostar da nova pessoa que sou e que me mostrou que posso fazer valer a pena o que passou, continuar nas causas, que também agreguei às causas ciganas, nas quais já era engajada. A violência obstétrica veio somar para minha experiência de vida. É vida, se tinha que ser assim… E mulheres ciganas, vítimas de tantos preconceitos, inclusive de violência obstétrica… Essa cultura que adquiri através do marido de etnia cigana, frequento acampamentos, e lá é uma verdadeira aula sobre a vida e lá também é como se fossem minha família, onde também encontrei apoio e carinho entre eles, porque eles como ninguém sabem o que é passar por violência. E com pessoas assim, que fazem da empatia o seu lema, que se unem e aprendem juntos e juntas acima de erros e sem julgamentos, mas com certeza com bastante acertos, e sem nos calar. Principalmente passando as nossas experiências ao público, sem ter medo que somos muitas e que um dia isso pode mudar, tenho fé!

Não quero que me entendam, quero que me respeitem!

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico, relacionamentos. Com amor, Ciência e informação. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.

 

 

 

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