Há mulheres que engravidam depois de muito planejar. Há mulheres que engravidam sem nenhum
planejamento. Há mulheres que engravidam sem sequer terem pensado em ser mães um dia. Há mulheres que engravidam depois de muitos anos desejando um filho. Há mulheres que se tornam mães sem engravidar. Há mulheres que ainda estão esperando – a gravidez, o nascimento, a chegada. Todas essas mulheres, sem exceção, passarão ou já passaram por profundos momentos de mudança quando da chegada do filho. Radicais momentos de mudança. Uma mudança que atinge todos os domínios de nossas vidas. Emocional. De disponibilidade. Logística. Profissional. Para algumas, mudanças de valores. Para outras, de carreira. Para outras ainda, de olhar sobre a vida. Para tantas, todas essas mudanças juntas. No tempo de sono. Na divisão do tempo das tarefas diárias. De ressignificação de si mesma no mundo. De reformulação da rotina. Do círculo de amizades. De hábitos alimentares. E tantas outras… E, sim, tudo isso gera angústia.

 

E como se isso fosse pouca coisa, ainda precisam enfrentar algo extremamente cruel: o confronto e constrangimento que parte de algumas mulheres que já são mães e que já passaram por situações que as que estão esperando ainda irão passar. Mulheres que nutrem e propagam uma visão ácida, áspera e, sobretudo, não empática da maternidade. E que justamente num dos momentos de maior vulnerabilidade e insegurança, disparam contra outras mulheres frases duras como essas:

"Aproveita agora, porque depois acabou sua vida".
"Espera pra ver… Aproveita enquanto pode".
"Prepare-se para nunca mais dormir".
"Logo sua paz vai acabar".
"Não queria? Agora aguenta".

Se você já passou por uma situação de gravidez, a chance de já ter sido alvo de algumas dessas frases (ou suas correlatas) é alta. Eu as ouvi quando estava grávida. Vejo gestantes passando por isso todos os dias. É absoluta e infelizmente comum.

Que tipo de comportamento é esse?
Seria uma espécie de autoafirmação? De deboche? Ou é apenas mais um tipo de brincadeirinha senso comum, feita por quem sequer se deu ao trabalho de pensar sobre o que de fato significa, e que diminui a maternidade, ridiculariza as mulheres, reduz bebês e crianças a estorvos sociais? Com que tipo de valores se está compactuando quando se escolhe fazer esse tipo de comentário? O que se quer dizer, verdadeiramente, com isso? Que tipo de conceito sobre ser mãe e exercer a maternidade nutre quem se sente à vontade para dizer coisas como essas? Você acha que a maternidade é isso mesmo e não há nenhuma mentira nisso? Desculpe-me, mas preciso discordar veementemente. Para mim, não é. Para inúmeras outras mulheres mães, não é. Mas se para você é, então talvez já saibamos onde está o problema… E ele não está na maternidade. Está na relação que você, particularmente, estabeleceu com ela. Como diria o escritor italiano, "Così è (se vi pare)". Assim é, se lhe parece…

Minha vida não acabou quando minha filha nasceu. Sim, minha vida mudou. Radicalmente. Acabou? Jamais. Teve início. Teve início uma nova forma de vida. Uma vida mais empática, mais preocupada com questões coletivas, mais ligada à responsabilidade que é bem criar um ser para o mundo. Preocupada com transformações pessoais que pudessem refletir na formação da minha filha – afinal, como sempre digo, é pelo exemplo que se ensina mais e melhor.
Aproveitar enquanto pode? O que? Por que não se pode aproveitar depois? Vai haver algum impedimento que inviabilize uma vida? As mudanças te impedirão de viver? É isso o que está acontecendo com você? Você está se sentindo castrada de alguma maneira? Está sentindo que não está aproveitando sua vida? Onde está o problema? É na maternidade? Ou é fora dela?
Preparar-se para nunca mais dormir? Seu filho não está dormindo? Ele nunca dorme? Por que? Como a rotina de sono é feita na sua casa? Quais são os seus hábitos de sono? E os do bebê? Como vocês se preparam para dormir? O que o momento de ir para a cama representa para a família? Por que está assim tão difícil dormir, para você? Quem está te apoiando? Você tem apoio? Ou tá sozinha nessa?
Ter a paz de uma vida toda interrompida por um filho? Você sinceramente acha que seu filho é a antítese da paz? O que está acontecendo para que você considere impossível sentir-se em paz e ser mãe? Como é ser mãe na sua família? Quem te ajudou a construir essa visão sobre a maternidade? Por que você está tão sozinha? Será que o problema é mesmo seu?
Agora aguenta? "Aguentar"? O que? Uma criança? É assim que seu bebê ou sua criança tem sido visto? Como alguém a ser tolerado, suportado?

Consegue perceber onde está o problema? 

Como sempre, essas são frases que mais dizem sobre quem as profere e seu contexto social do que sobre seu próprio conceito. A mim, parece muito claro que mulheres que se sentem confortáveis em confrontar outras mulheres com frases como essas, justamente em uma fase de vida em que o apoio e amparo social são tão importantes e podem fazer tanta diferença, estão com problemas sérios com relação ao modo como veem a maternidade. Ao que, de fato, seus filhos representam para elas. Sentem-se diminuídas, prejudicadas, nutrem uma espécie de raiva pelas mudanças que a maternidade operou em suas vidas. Não as enxergam como parte natural da decisão de gestar e criar uma criança. De certo modo, veem a chegada dos filhos como uma espécie de "castigo". Sim, elas estão com problemas. E se elas estão com problemas, elas também precisam de ajuda. Porque alguma coisa aconteceu para que construíssem essa visão. E o que aconteceu não foi bom para elas.

Eu sei que, para você, gestante ou mãe recente, enfrentando as angústias do novo modo de vida, ainda incerta sobre como conseguirá conciliar tudo, comentários como esses podem parecer cruéis, injustos, agressivos, violentos. E realmente são. Mas interrompa o mal estar que você possa estar sentindo e responda à pergunta: ONDE ESTÁ O PROBLEMA?
 

Não. Ele não está na maternidade. Não está em ter um novo filho. Nem, sequer, na mulher que te disse isso. O problema está no que se incentiva e reforça por aí, nessa sociedade patriarcal agressiva, onde mulheres são consideradas sempre as únicas ou maiores cuidadoras e responsáveis pela criação dos filhos, onde poucos são os homens que, de fato, se responsabilizam pelo filho que também colocaram no mundo. Sim. Essas mulheres estão com problemas. De alguma forma, podem ter sido deixadas sozinhas na missão tão complexa de cuidar de crianças. Sim, podem estar se sentindo castradas, enraivecidas, solitárias.
Assim, te pergunto: quem está com problemas?

 

ONDE ESTÁ O PROBLEMA?

Michelli é uma amiga dos tempos da graduação. Nós fizemos o mesmo curso, na mesma universidade, em anos diferentes (ela foi minha caloura). Não tivemos mais notícia uma da outra por bastante tempo, até que nos reencontramos na virtualidade das redes sociais. Hoje, ela está esperando a Isabel, há 7 meses na barriga, bebê muito esperada. Ela mora em outro país, sente-se um tanto longe da família e dos amigos, perdeu um primeiro bebê com 11 semanas de gestação e agora aguarda, ansiosa, a chegada da filha. Por ser mãe pela primeira vez, está sensível, confusa, sentindo-se sozinha, trabalhando dobrado pra compensar a licença maternidade. Muitas de nós sabemos exatamente como é se sentir assim… Num momento de desabafo e buscando alguma forma de apoio, Michelli me escreveu e perguntou à queima roupa:

"Será que as mulheres, depois que seus bebês nascem, tentam aparentar serem melhores que as outras, se tornam sádicas ou simplesmente se esquecem do que passaram?". 

Sua pergunta vem do fato de, ao buscar apoio em outras mulheres, que já são mães, receber de volta, com muita frequência, aquele tipo de comportamento não empático sobre o qual estamos falando.
"Essa é a parte mais fácil… Espera nascer pra você ver!", "Depois piora…", "Esquece a vida como você conhece! Acabou namoro com o marido, cinema, restaurante, viagem…", "Não vai dormir por anos!", "Não queria tanto ser mãe? Agora aguenta…".
E ela termina seu desabafo dizendo:

"Incrivelmente, tenho encontrado mais palavras de alento com as amigas que não têm filhos. Óbvio que não é uma regra, mas  a maioria (esmagadora) das mães parecem tentar se supervalorizar, diminuir ou assustar (como se já não fosse insegurança o suficiente) quem ainda está chegando nesse novo “grupo”. (…)  Já existe pressão demais na sociedade com quem quer ser mãe… Portanto, MULHERES, VAMOS NOS AJUDAR!"

Minha resposta a ela foi a seguinte:

"Quando alguém disser coisas desse tipo pra você, confronte. Diga, docemente: 'Estou numa campanha: troque uma palavra de desânimo para uma grávida por uma de apoio".

Sim, depois que a Isabel nascer, Michelli vai ficar cansada nos primeiros meses, vai sentir que não tem tempo para as outras coisas. Todas nos sentimos assim, isso é totalmente natural. E estar preparada para isso, entender que é uma fase de adaptação e ajustes, é o que nos ajuda a passar por essa fase de maneira mais tranquila. Mas o mais importante é que, embora cansadas, vamos sentir uma coisa nova muito forte, algo sem precedentes, e que algumas pessoas chamam de AMOR. Um tipo diferente de amor, que não conhecíamos antes. E em meio ao cansaço, é possível que também sintamos uma grande força surgir, por vezes uma euforia, que talvez nos leve a dançar no meio da sala, ou a cantar, ou a fazer algo diferente do que já fizemos. Talvez queiramos mudar a vida. Talvez nossa vida anterior não nos caiba mais. Talvez passemos a ver o mundo como um imenso universo a ser desbravado. Talvez tenhamos mais coragem para assumir quem de fato somos. Pelo nada simples fato de termos nos tornado mães. 
 

Não é fácil ser mãe, não pe. Mas ninguém que decide seguir adiante com uma gravidez e escolhe ser mãe faz isso buscando facilidade, não é mesmo? O que a gente busca é criar filhos bacanas, sentir essa mudança, fazer bem feito, com responsabilidade, com afeto, sentindo que depende de nós e está em nossas mãos o tipo de mundo que queremos ajudá-los a criar. E isso será mais forte que o cansaço. E a gente vai encontrar novas formas de viver. Vamos namorar na sala, sem gritar, pra não acordar o bebê. Iremos à universidade com nosso bebê à tiracolo. Trabalharemos embalando o bebê-conforto. Vamos inventar novas reuniões sociais, inclusivas. Vamos construir novos círculos de amigos. Vamos fazer yoga com as crias (viu, Michelli, você vai ter tempo sim). Vamos colocar cadeirinhas nas bikes para andar com elas. Vamos dormir agarradinhos em horários estranhos. Vamos passar madrugadas vendo o leite escorrer das boquinhas. Vamos ter coragem para nos libertar de padrões que não nos servem mais. Vamos chorar sim, também. De cansaço, de angústia, de dúvida, teremos crises. 

E, principalmente, VAMOS LUTAR PARA QUE A SOCIEDADE ACEITE E APOIE UMA MULHER QUE VIRA MÃE. Vamos lutar para ter o direito de namorar. Para ir à universidade com bebê à tiracolo. Para ir ao trabalho levando bebê se assim for necessário para que continuemos trabalhando. Para que as reuniões (todas) incluam as crianças. Para que mulheres não sejam excluídas das formas mais sutis porque são mães. E não vamos aceitar outras mulheres mães nos excluírem com o argumento de que "Também sou mãe, sei o que você passa", porque se você não luta pela inclusão das mães então sua experiência não contribuirá para que a iniquidade que outras vivem tenha fim.

E é, também, nos braços umas das outras que vamos encontrar morada, força, apoio e sustentação.
Precisa ser assim. Tem que ser assim.
Nós já temos muita gente nos oprimindo. É justo – e necessário – que nos apoiemos umas às outras. Uma mãe "lava" a outra. E seca. E ampara. E alimenta. E acolhe.

Eu poderia citar muitos artigos que já mostraram os comprovadamente benéficos efeitos do apoio social materno. Ter um grupo de mães que te apoie, sustente, acolha, empodere, fortaleça, ajuda nas adaptações do puerpério, aumenta o sucesso da amamentação, diminui o isolamento social e o embotamento afetivo característico da chegada de um novo filho, torna mais fácil a volta ao trabalho, diminui o cansaço e, principalmente, diminui a possibilidade de ocorrência de agressão contra as crianças. 

Eu poderia falar sobre tudo isso e citar inúmeros artigos. Mas eu prefiro recorrer à afetividade e dizer: chega de frases angustiantes, de ressaltar as dificuldades, de constranger, de oprimir. Nós precisamos umas das outras. Uma mãe que vê outra mãe dar conta, acolher com amor e fortaleza a maternidade, é uma mãe fortalecida. E uma mãe fortalecida pode apoiar e sustentar outra. E isso não tem mais fim.
"Vai piorar"?
Não. Pode ser que não.
Pode ser que sua angústia por não saber o que virá adiante seja, também, a sua força. 
Filhos nos tiram o sono. 
E nos dão inúmeros motivos para querermos estar despertas. Em muitos sentidos. Muitos sobre os quais jamais pensamos antes deles chegarem…

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