Criar nossos filhos é uma tarefa complexa, desgastante e especialmente difícil. Por mais que às vezes não consigamos ser a mãe que idealizamos, sempre estamos fazendo o nosso melhor POSSÍVEL. Além de termos que lidar com as inúmeras demandas do dia a dia nesse cuidado, temos que dar conta de uma série de questionamentos vindos de todos os lados acerca da não “tradicionalidade” da nossa família.

Falo isso por mim que, junto à minha esposa, somos mães de uma pequena que não tem pai, mas também falo por muitas outras mães que, interna e/ou externamente, encontram-se questionadas sobre o formato de suas famílias.

Estes questionamentos começam no nível básico, com perguntas sempre pressupondo que há um pai; essa é a parte fácil onde é dito que não tem pai nessa família. As perguntas passam para o nível médio e questionam o porquê de não ter pai; aí gera um certo incômodo pela insistência no assunto “pai” e por ter que ficar explicando a formação da família (nem sempre há paciência pra isso). E, por fim, o nível avançado.

No meu caso, surgem perguntas de como duas mães conseguiram ter um bebê. Já não respondi, já dei as mais variadas respostas, já achei graça nas caras de interrogação que as pessoas fazem por não entender como duas mulheres fazem para ter filhos e já fiquei muito brava.

Para outras famílias, o nível avançado pode ser ainda mais sofrido por mexer em feridas que não estão cicatrizadas, como, por exemplo, quando há abandono. Mas ainda pode piorar: o nível super avançado, que é quando chegam à conclusão de que “há um pai nessa família porque em algum momento é necessário um homem para que um bebê exista”. Para avançar e seguir adiante – estando neste estágio super avançado -, quando estou de muito bom humor digo que o médico responsável pelo tratamento de reprodução assistida foi um homem. Caso contrário, digo – de novo – que não tem pai e pronto, acabou.

Mas, para outras famílias, isso pode ser ainda mais cruel, não apenas cutucando feridas, mas também colocando em cheque toda a estrutura desenvolvida pela mãe para dar conta de tudo. Dizer que um homem é pai de uma criança porque ele cedeu suas células germinativas (espermatozoides) para a mulher que gestou é de um simplismo irritante e cruel. É dizer que a função paterna é simplesmente fecundar a mulher, não se responsabilizando pelo exercício da parentalidade. É colocar pra fora todo aquele machismo que vez ou outra tenta se esconder. E é reduzir a importância que um homem pode ter na criação e desenvolvimento de outro ser humano.

Por vezes, já ouvimos falar nos termos de “função materna” e “função paterna”. Sobre a função materna, geralmente não temos muitas dúvidas do seu significado, somos constantemente cobradas a exercê-la à perfeição. A função materna, dizem, seria formativa, na qual a mãe provê amparo, noção de existência e integração importantes para o desenvolvimento psíquico da criança. E a função paterna, dizem também, seria a de quebra da simbiose mãe-filho e a inserção de novos elementos na vida do bebê, apresentando-lhe o mundo que o rodeia para além dos braços maternos.

Quando eu e minha esposa pensávamos em formar uma família com filhos, nunca tive nenhum questionamento interno sobre nossa estrutura familiar, porém a questão da função paterna mexia um pouco com ela. Pelo pouco conhecimento e visão tradicional das coisas, na ideia que ela fazia sobre isso, era atribuído a um homem a função paterna e na nossa configuração de família isso não aconteceria. Muitas dúvidas vieram e, junto com elas, uma imagem errada de que estaríamos deixando de proporcionar todas as condições para que nosso bebê tivesse um desenvolvimento pleno.

Esse conceito de figura paterna surgiu com a psicanálise de Freud (branco, machista, de classe privilegiada), quando as famílias não eram formadas apenas por afetividade e amor e, sim, por algumas conveniências sociais. Naquela época, as ideias do patriarcado eram dominantes e atribuía-se ao homem a responsabilidade de prover sustento à família. Tornou-se evidente a figura paterna como sendo o exercício da masculinidade autoritária e hierarquicamente superior, impondo aos filhos limites, regras de conduta e determinando o que seria e o que não seria permitido.

Felizmente, a sociedade está evoluindo e, junto com ela, os conceitos e práticas da psicologia. A figura paterna, hoje, não tem nada a ver com gênero ou parentesco e pode ser entendida como aquela que comunica à criança que a mãe é um ser separado dela, é aquela que desconstrói a simbiose, que insere a criança no mundo. Porém, não há rigidez quanto a quem a exerce, podendo ser uma pessoa fazendo isso diretamente, ou podendo ser um interesse maior da mãe (ou de quem exerce a função materna), como por exemplo o trabalho, um hobby, os amigos.

As crianças filhas de mães solo não ficarão sem essa função operando, desde que algo ou alguém rompa essa simbiose. Romper essa simbiose a princípio pode parecer algo relacionado a não se conectar com o bebê ou a ser uma pessoa fria e sem coração, que não ama e está trazendo só frustrações para aquele serzinho, mas estas funções não operam no nosso consciente. Conscientemente, todas as pessoas que estão envolvidas nos cuidados de um filho colocarão regras e estarão conectadas. Tais funções operariam no inconsciente. Um cuidador exercerá prioritariamente uma função, mas todas as funções oscilarão entre os membros da família, não sendo papéis rígidos e limitantes no exercício da parentalidade.

Parentalidade é o conjunto de atividades executadas pelos adultos responsáveis pelo cuidado de uma criança. Estas atividades incluem o sustento, alimentação, proteção, abrigo, assim como atividades relacionadas ao vínculo afetivo, desenvolvimento cognitivo e social. Estes adultos estão relacionados de maneira afetiva e próxima a essa criança e, na maioria dos casos, são seus pais. Porém, não podemos ignorar que a conformação social está mudando e, junto dela, a estrutura familiar. Sendo assim, encontramos muitos avós, tios, irmãos e adultos sem laços sanguíneos exercendo a parentalidade. Eu mesma fui alvo de diversos atores no exercício da parentalidade. Na maior parte do tempo, foram minha mãe e meu pai os responsáveis por tudo isso, mas já fui cuidada e fiquei sob a responsabilidade de minha avó e tive meu padrasto presente em boa parte da minha vida.

Assumir que a parentalidade é e pode ser exercida por outros entes de uma criança é uma construção de conceitos e modificação de um paradigma para o qual devemos nos atentar. A partir do momento que isso é assumido, passamos a ter uma visão mais ampla sobre o conceito de família do que apenas como sendo a tríade pai-mãe-filhos. Assim, passaremos a nos referir à família como esse conjunto de pessoas responsáveis pela criança e aliviaremos o peso das costas das mães, que são extremamente cobradas em seu exercício da parentalidade. E também nos abrimos a entender como cada família é formada e é especial em sua essência e não precisa seguir padrões para assim ser chamada.

Para que esta visão patriarcal de família seja mudada nós precisamos primeiramente nos esforçar cotidianamente para não falar nem assumir que aquela criança está numa família de apenas pai e mãe. Temos que estar abertos a escutar e a entender o que cada um considera ser sua família. O responsável por receber os bilhetes da escola e tomar as providências cabíveis pode ser a tia ou o irmão mais velho e, sendo assim, o bilhete que geralmente é endereçado à mãe poderia vir de outra forma. Quando, na intenção de conversar com uma criança, perguntamos qual o nome da mamãe e o do papai, poderíamos apenas perguntar como é formada a família dela.

Poderíamos conversar com nossos filhos desde sempre e explicar que existem inúmeras formas de família, que vários adultos podem ser responsáveis por uma criança e que, para isso, basta que haja amor, cuidado e respeito. Hoje ainda não se vê muita diversidade nos modelos de família que são representados na mídia. Crescemos vendo a clássica propaganda de margarina com todos acordando de bom humor em uma família de pai, mãe e filhos e isso está no nosso subconsciente. Eu gostaria muitíssimo que minha filha tivesse contato com as mais diversas formas de família, não só pessoalmente mas também em desenhos animados, filmes, livros e músicas, mas infelizmente não está sendo possível. Lembro-me muito bem quando compramos um livro que fala de um menino que tem dois pais e ficamos radiante que nossa pequena teria livros que a aproximariam de diversas formações de família, mas meio que ficou por aí.

Livros para bebês e crianças pequenas com poucas frases e muitas figuras não têm essa abordagem, a não ser os específicos que falam sobre famílias. Em relação a músicas, não encontrei nada no estilo. Fui até a página de uma cantora que faz músicas bacaninhas e pedi/perguntei por músicas nessa temática de outras estruturas familiares e ela me respondeu que fez uma música para os avós (que é mãe da minha mãe e pai do meu pai). E na TV não conheço desenho/filme que apresente isso. Não assistimos a uma grande variedade de filmes e desenhos, pode ser isso, mas dos que já vimos não há um que dê visibilidade às outras possibilidades. Forçando um pouco a barra, existem alguns que mostram famílias só com mãe ou irmãos, mas fazem questão de pontuar que são assim pois pai e/ou mãe morreram.

Minha filha fala em pai na composição de uma família durante algumas brincadeiras. Embora não tenha pai na família dela, tem na maioria das famílias com quem ela tem contato. Aconteceu dela chamar o pai de alguma outra criança de pai. Fiquei extremamente desconfortável, corrigi e disse: “Você não tem pai, ele é pai da sua amiguinha”. Depois, fui entendendo que o meu desconforto talvez fosse pensar que as outras pessoas poderiam interpretar isso como ela querendo ter um pai. Muito louco isso! Fiquei meio mal com a situação de estar desconfortável com uma possível interpretação dos outros sobre a minha família. Outros esses que eu nem sabia quem eram! Com o tempo, fui me fortalecendo e entendi que ela só repetia o que a outra criança falava, tanto que já fui chamada de mãe por quem não era meu filho. São etapas do nosso crescimento em conjunto. Com a ajuda de um livrinho sobre famílias conseguimos dialogar com o conceito de família na vidinha de uma pequena de dois anos.

Recentemente, estávamos andando, vi um esquilo e mostrei pra ela. Ficamos observando e de repente apareceu outro e falei: “Olha filha, outro esquilinho” e ela, na maior naturalidade, falou: “É a família dele”. Fiquei com um quentinho no coração por ver que o conceito de família, para ela, passa por dois esquilos andando juntos. Fico imaginando o quanto isso poderia estar presente na vida de tantas outras crianças que, mesmo não tendo acesso a esse livro, poderiam ter acesso a mais conteúdo como esse e a mais exemplos no seu dia a dia.

Estamos criando e educando crianças que em breve serão adultos e explicarão para outras crianças sobre esse mundo em que vivemos. Se conseguirmos passar por cima das nossas ideias pré-concebidas e ensiná-los com naturalidade as diferenças que existem, e que ser/estar diferente não é problema, nossos netos tratarão essas questões com muito mais facilidade. Se é que isso já não estará incorporado ao seu cotidiano e nem será ressaltado como uma diferença. Todos os diferentes serão iguais.

Gostaria de deixar claro também que este texto não diminui a importância dos pais na criação dos filhos. Pais podem fazer total diferença na vida de um filho, desde que estejam comprometidos em prover segurança e vínculo afetivo, estimulação cognitiva, estabilidade e segurança física e psicológica desde a primeira infância (da gestação aos seis anos), suporte e atenção durante períodos críticos do desenvolvimento e suporte e promoção de resiliência em contextos que são desafiadores. Além disso, também não quero que entendam que homens não fazem diferença na vida e crescimento de uma criança. A participação dos homens no desenvolvimento da primeira infância traz impactos para suas próprias vidas, para as relações de construção de gênero, para a vida de suas/seus companheiras/ companheiros, das crianças e das mulheres e homens em geral. Portanto, essa participação pode ter efeitos de longo prazo no mundo à sua volta. Mas esses homens podem ser homens comprometidos com a educação e o bem-estar das crianças, não necessariamente o pai. Porque afinal, famílias sem pais existem e estão transbordando amor por aí.