Todo ano é isso. Vai chegando o dia dos pais, essa data exclusivamente comercial, e o pessoal vai tirando do fundo do baú aquelas coisas que precisam acabar. Dar parabéns a “mulheres que são mães e pais”? Isso precisa acabar. Achar que existe a figura da PÃE?! Isso precisa acabar.
Exceto se você estiver de nariz entupido, PÃE não existe. Se você cuida sozinha de uma criança, você é MÃE. Se você está sobrecarregada por esse cuidado porque quem deveria cuidar junto não faz a sua parte ou faz bem meia boca, você é MÃE. Uma mãe cansada e que está vivendo uma forma importante de desigualdade e injustiça.
Como cientista, um dos meus principais interesses é tentar explicar como as coisas da vida funcionam. Explicar partindo do ponto de vista de que ninguém sabe tudo nem é obrigado a saber e que, se a humanidade ainda tiver jeito – e eu torço para que sim -, as pessoas desejam saber mais sobre todas as coisas para melhorar seus pontos de vista. E vou focar na esperança de que, muitas vezes, as pessoas só propagam conceitos equivocados porque não tiveram acesso a outro tipo de debate – por favor, não me tire esse ilusão…
Isto posto, é fundamental que, nessa altura do campeonato, a gente entenda que uma mãe solo não é uma PÃE. E que a frase “PARABÉNS A TODAS AS MULHERES QUE SÃO MÃES E PAIS” é um conceito bastante equivocado, além de ser cruel.
Claro que quem usa essas expressões não são más pessoas nem estão tentando nos ofender, muito pelo contrário. Elas partem de um ponto bacana, pois já estão reconhecendo coisas importantíssimas, como:
- há mulheres que cuidam de seus filhos sozinhas porque os pais não cuidam como deveriam cuidar
- são muitas as mulheres que cuidam sozinhas de seus filhos porque os pais não cuidam como deveriam cuidar
- cuidar dos filhos sozinhas porque os pais não cuidam não é tarefa nada fácil, portanto quem está nesta situação precisa ser reconhecida, e a sociedade convencionou dar “parabéns” para quem precisa ser reconhecido.
Então tá, já entendemos isso. Agora precisamos avançar no debate e entender o motivo disso não ser legal, ser cruel e precisar deixar de ser feito.
Há mais de 5 milhões e meio de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento. E quem nos dera isso fosse devido à presença de duas mães em famílias homoafetivas ou acontecesse em função da escolha da mulher. Não são esses os motivos. O motivo é: abandono paterno. São homens que abandonaram a função paterna quando souberam que as mulheres estavam grávidas, ou homens que “não abandonaram mas também preferiram não constar na certidão” (ou seja, abandonaram) – acreditem, já ouvi isso por aí. E eu nem estou contando as crianças que têm o nome do pai na certidão mas não os tem em suas vidas de fato. Então, na imensa maioria dos casos, são milhões de mulheres que não tiveram outra opção além de CUIDAR SOZINHAS DOS FILHOS QUE NÃO FIZERAM SOZINHAS. E isso numa sociedade machista, que exclui crianças e que julga mulheres pelo simples fato de existirem, quanto mais se forem mães.
Essas condições fazem com que essas mulheres que não tiveram outra opção além de criar seus filhos sozinhas tenham vidas muito duras. Muito mais duras que a maioria das outras mulheres. Porque tudo na vida delas passará a ser mais difícil: arrumar emprego, gerar renda, descansar, cuidar de si, cuidar das crianças, socializar, manter a saúde física e mental, ter um círculo de amigos, etc. “Ah, eu acho que não é bem assim”. Acontece que não adianta você achar nada se você não conhece essa realidade. É ASSIM. Trabalho com mulheres mães, sou estudiosa exatamente desta área, conheço a teoria e a prática. Basta você ter ao seu redor mães solo – e olhos de ver – e você facilmente verá isso.
Então, veja. Chega o dia dos pais. Essas mulheres muitas vezes já têm que administrar toda a angústia e a dor com inúmeras situações que as excluem e aos seus filhos – como, por exemplo, ter que manejar a dor da exclusão em escolas arcaicas que ainda comemoram o “Dia dos Pais”, tentando administrar essa dor tanto em si quanto em suas crianças. Sem contar tudo o que vivem nos demais 364 dias do ano. E aí elas recebem, com todo amor e boa intenção, “parabéns” por fazerem papel duplo, como pai e mãe…
Gente, isso dói.
É parabenizar alguém por estar vivendo algo muito difícil e à sua revelia. É parabenizar alguém por não ter tido escolha. Por aguentar tudo o que essa condição lhe impõe, compulsoriamente. É dar parabéns por sofrer.
“Mas não era esse o meu intuito, era reconhecer que são mães muito guerreiras”.
Eu entendo isso. Elas também entendem. E saibam que essas mulheres acham muito bom serem vistas, serem enxergadas, não invisibilizadas. Mas elas só querem, agora, serem vistas de maneira REAL. Não serem vistas como guerreiras. Porque ninguém aqui escolheu ir pra guerra no lugar de ter paz na vida.
Então, agora que você já entendeu como dar parabéns para alguém que está tendo muito mais dificuldade de acesso a coisas fundamentais não é algo muito bom, é hora de mudar o discurso.
E você pode estar pensando: “Verdade, você tem razão. Então o que eu posso dizer a essas mulheres no dia dos pais, para que elas saibam que eu me importo?”.
Você não precisa dizer nada. Se estiver com elas em todos os demais dias do ano, apoiando, fortalecendo, ajudando a diminuir o peso, oferecendo colo, ombro, força, uma mão na logística, para que tenham vidas menos duras, esteja certa de que no dia dos pais você não precisará dizer nada. E ainda assim elas se sentirão amadas, apoiadas e, sobretudo, VISTAS.
PÃE não existe.
O que existe é uma mulher dando conta de coisas que não precisaria estar dando conta sozinha. Ou é uma mulher que está sendo mãe. Há muito de “passação”de pano e invisibilização na forma como reconhecemos uma sobrecarga como algo bom. Vamos atualizar esse discurso, vamos abrir a mente, vamos olhar para o redor com olhos críticos, vamos estender os braços para acolher as mães que não são pais e mães. São somente mães. E mulheres. E precisam de apoio.
E sobre o pai que não é pai de fato e reivindica esse lugar e as homenagens todas neste dia? Bom, aí você pode ficar completamente à vontade para constrangê-lo. Porque, afinal, também somos responsáveis por aquilo que validamos ao nosso redor. O invés de parabenizar uma mulher pela paulada que ela toma, quer ajudar? Pergunte àquele homem por que ele escolheu ser um pai de selfie ou um pai meia boca ou um pai que não assume os filhos tanto quanto aquela mulher. Taí uma coisa mais eficiente.
Mas e quanto às crianças que precisam conviver com pais ausentes, com pais que deixam claro que elas não são sua prioridade, com pais que não cumprem os acordos e os combinados? Acolha-as. Não inventem histórias. Explique que você está do lado delas e que, infelizmente, não somos responsáveis pelas atitudes péssimas das outras pessoas. Que isso é um problema de falta de responsabilidade desses pais, não delas, não nossa. E, sobretudo, confie no seguinte: a educação amorosa, emancipatória, forte e gentil que você, como mãe, dá a essa criança vai ajudar a fortalecê-la para que, enquanto ela cresce, possa enxergar as dificuldades da vida sem passar pano pra gente sem noção, sem invisibilizar injustiças, sem aceitar o inaceitável, sabendo lidar com as coisas de maneira madura e sabendo com quem, de fato, podem contar. Não force a barra de um “dia dos pais” pra vender cueca e meia quando essa criança não está sendo bem acolhida por esse pai. E, mais importante: confie. Elas crescem. E passam a formar a própria opinião sobre o que merecem e o que não merecem.
Feliz dia dos pais aos pais que se importam todos os dias com suas crianças. É isso aí, rapaziada, não estão fazendo mais que sua obrigação.
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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico, relacionamentos. Com amor, Ciência e informação. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.