No post anterior, contei sobre a avalanche de mudanças pelas quais minha filha está passando às vésperas de completar 2 anos. Mudanças que estão me deixando de cabelo em pé, mas que não deixam de ser admiráveis. Como falar cada dia dezenas de novas palavras e aprender a fazer dezenas de novas coisas poderia não ser admirável?
Acredito que as mudanças de um filho precisam ser acompanhadas de mudança na família, na casa, no modo de viver, mesmo que pequena. Quando eles começam a engatinhar, criamos uma base mais fofa, de menor impacto, para que não se ralem ou se machuquem. Quando começam a caminhar, tratamos de proteger as quinas das mesas e móveis, a trancar gavetas e portas de armário, a mudar de altura aquilo que pode ser perigoso ou quebrar caso caia no chão. Tiramos do caminho o que pode precipitar uma queda, um tropeção e gerar insegurança nos primeiros passinhos. E assim, seguimos mudando.
Ninguém é obrigado a mudar nada se não achar que é preciso. Vai muito sobre o que se pensa sobre a vida, o mundo e os filhos, e da sua disponibilidade física e emocional. Não há um certo ou um errado universal. Há certos e errados para cada concepção de família e de vida.

Então, na quinta-feira, início de feriado, comecei as mudanças por aqui, de um quarto pouco utilizado para um que pudesse despertar seu interesse, sua ação e sua atividade. Claro que os 2 anos chegam e, com ele, diversas modificações concretas de comportamento. Mas observei que eu poderia agir de forma a promover um ambiente mais rico e que a ajudasse a lidar com tantas mudanças e, ajudando-a, também ajudaria a mim mesma a compreender mais sobre essa fase de vida. Observei que as coisas como estavam poderiam tornar as mudanças naturais menos ricas e mais caóticas.
Assim, foi embora do quarto um berço – que já tinha sido transformado em cama, mas que também não era usada – e um grande móvel, coisas muito rígidas e estanques que não permitiam mudanças, movimento, interação. Criei uma caminha no chão,  de forma a favorecer a autonomia de subir e descer dali quando ela quisesse, que forrei com um tecido bem colorido e alegre. Troquei o pequeno tapete por um grande tapete de algodão pra isolar do frio, nessa fase em que ela está adorando ficar deitada no chão. No lugar do grande móvel branco, entrou uma mesinha, que também forrei com tecido colorido, e organizadores onde, agora, estão os brinquedos. Os brinquedos ficavam todos – ou quase todos – guardados em um baú na sala, lugar onde ela passava a maior parte do tempo, entre idas e vindas ao quintal. Mas brinquedo guardado em baú ou caixa faz com que fiquem uns sobre os outros. Então ela sempre acabava brincando com as mesmas coisas, que estavam mais em cima, e outros ficavam lá embaixo um tempão, a não ser que eu virasse o baú de cabeça pra baixo, pra dar uma renovada. Mas isso também criava mais confusão que interação.
Então organizei um a um nas prateleiras dos organizadores, de forma que agora ela pode mexer em todos, brincar com todos e interagir mais. No meio do quarto ficou um espaço, um vão onde poderá brincar à vontade, espalhar todos os brinquedos que quiser e fazer a bagunça que lhe der na telha. Sem paranoias, filhas de Freud. Criança que não pode espalhar brinquedos é uma pobre criança. Sem contar que elas tendem a desenvolver fixação justamente por aquilo que não podem fazer. E vamos combinar que criança que não bagunça não é criança…
Nas paredes, um painel de fotos com fotos das pessoas importantes pra ela: vovó, vovô, tias, primo, pai, mãe, dinda e várias dela bem bebezinhas, e que ela foi narrando enquanto eu as colocava: “Ó mãe, uouó. Ó mãe, uel (papai noel). Ó mãe, Bebé“. Ao lado, um painel que serve tanto para afixar fotos e desenhos quanto para ser desenhado com giz. Na parede oposta, um pequeno espelho, onde ela pode se ver, fazer caretas e cantar em frente, como vive fazendo.
Todas as mudanças foram sendo feitas com ela do meu lado, ajudando. Ajudando a cobrir o colchão, a estender o tapete e a organizar cada brinquedinho nas prateleiras, feliz e participante, me mostrando tudo e dando nome a todos os bois.
Sim: planejei um quarto no estilo montessoriano. Um quarto que respeita as mudanças pelas quais ela está passando e que estimula a individualidade, a atividade e a liberdade. O método montessoriano tem, como uma de suas bases, justamente o fato de “respeitar a personalidade da criança, concedendo-lhe espaço para crescer em uma independência biológica, permitindo uma grande margem de liberdade que se constitui no fundamento de uma disciplina real“. Nisso está embutido algo muito importante: o fato de que disciplina não precisa ser criada com base na opressão, na imposição e na falta de opções, pelo contrário. Ela é estimulada de maneira muito mais sadia quando se estimula a liberdade de escolha por opções previamente elaboradas e pensadas. Era o que eu pretendia: que ela tivesse liberdade de escolha entre diferentes opções.
Terminei de organizar tudo e, na sequência, bateu o soninho. Adivinha?! Foi para sua nova caminha no chão, deitou e dormiu. Simples assim. Para deleite da mãe, que mal acreditava no que via… Liguei o abajur e saí do quarto com aquela sensação de que fiz a coisa certa… Tem coisa melhor pra uma mãe?
Depois de muito dormir, acordou, desceu pra sala, brincou com a gente e logo voltou pro quarto, onde mexeu em tudo, brincou com tudo, cantou e dançou. Ou seja: ela curtiu! Deu certo.
E assim, demos mais um passinho em seu desenvolvimento, questionando possibilidades e de peito aberto pra mudanças. Mudanças que eu nunca havia pensado antes, mas que passei a procurar em função das próprias mudanças dela.
Ela continuará compartilhando o quarto conosco durante as noites. Mas agora já sabe que existe um outro cantinho pra também chamar de seu… Quando quiser experimentar uma noite por lá, poderá ir e voltar sem crise, sem pressão.
Ah, sim! É importante dizer que todas as mudanças foram feitas sem gastar nenhum centavo. Nos dias anteriores, fiz uma lista do que eu precisaria para fazer o que pensava. Vi o que eu já tinha aqui em casa que poderia ser usado. Botei em uso coisas que estavam guardadas, dei cara nova ao que já estava por aqui, organizei outras.
De maneira bem simples, só com base na v
ontade de fazer, na criatividade e numa tentativa de baixar os meus cabelos que estavam de pé.

“Era uma sessão de terapia. “Não tenho tempo para educar a minha filha”, ela disse. Um psicanalista ortodoxo tomaria essa deixa como um caminho para a exploração do inconsciente da cliente. Ali estava um fio solto no tecido da ansiedade materna. Era só puxar um fio… Culpa. Ansiedade e culpa nos levariam para os sinistros subterrâneos da alma. Mas eu nunca fui ortodoxo. Sempre caminhei ao contrário na religião, na psicanálise, na universidade, na política, o que me tem valido não poucas complicações. O fato é que eu tenho um lado bruto, igual àquele do Analista de Bagé. Não puxei o fio solto dela. Ofereci-lhe meu próprio fio. “Eu nunca eduquei meus filhos…”, eu disse. Ela fez uma pausa perplexa. Deve ter pensado: “Mas que psicanalista é esse que não educa os seus filhos?”. “Nunca educou seus filhos?”, perguntou. Respondi: “Não, nunca. Eu só vivi com eles”. Essa memória antiga saiu da sombra quando uma jornalista, que preparava um artigo dirigido aos pais, me perguntou: “Que conselho o senhor daria aos pais?”. Respondi: “Nenhum. Não dou conselhos. Apenas diria: a infância é muito curta. Muito mais cedo do que se imagina os filhos crescerão e baterão as asas. Já não nos darão ouvidos. Já não serão nossos. No curto tempo da infância há apenas uma coisa a ser feita: viver com eles, viver gostoso com eles. Sem currículo. A vida é o currículo. Vivendo juntos, pais e filhos aprendem. A coisa mais importante a ser aprendida nada tem a ver com informações. Conheço pessoas bem informadas que são idiotas perfeitos. O que se ensina é o espaço manso e curioso que é criado pela relação lúdica entre pais e filhos”. Ensina-se um mundo! Vi, numa manhã de sábado, num parquinho, uma cena triste: um pai levara o filho para brincar. Com a mão esquerda empurrava o balanço. Com a mão direita segurava o jornal que estava lendo… Em poucos anos, sua mão esquerda estará vazia. Em compensação, ele terá duas mãos para segurar o jornal”.
Rubem Alves

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