Hoje o caderno Ciência e Saúde do Correio Braziliense traz a matéria “Estudos procuram entender presença feminina nos laboratórios do século 19“, com o excelente depoimento da pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Ana Maria Alfonso-Goldfarb. Da matéria, copio o trecho abaixo:

“(…) o ato de controlar o fogo e misturar ingredientes – tarefas cruciais a diversos experimentos científicos – era visto como uma atividade tipicamente feminina. “Além disso, as pessoas associavam várias características como exclusivas das mulheres, como a argúcia”, completa a especialista. Essas habilidades foram a porta de entrada delas no laboratório e permitiram à humanidade desfrutar dos primeiros exemplares de extratos, medicamentos, licores, pomadas e perfumes. Isso não significa, porém, que as “quase cientistas” eram vistas com bons olhos. “Na época, essa habilidade não era considerada uma qualidade. Era um atributo de pessoas que não tinham a nobreza de caráter dos homens”, diz Goldfarb. Mas, apesar do olhar cabreiro da sociedade, a “medicina da cozinha” ou “química das damas”, como a prática ficou conhecida nos séculos 16 e 17, não parou de crescer – e de ganhar adeptas ilustres”.

Linda citação, que emociona uma doutora em Farmacologia com eu que, embora não trabalhe mais na área, passou muitos anos na bancada de um laboratório, estudando as propriedades medicinais de plantas psicoativas utilizadas por comunidades tradicionais.
Na sequência, para minha alegria, está um depoimento meu sobre a iniquidade de gênero na ciência. O excerto que está na matéria diz respeito à entrevista completa que dei à jornalista Glaucia Chaves há alguns meses, e que já publiquei aqui no blog. Para facilitar, reproduzo abaixo.
Vale a pena saber um pouco sobre como vivem as mulheres que decidem ser cientistas no Brasil.

Como é a participação das mulheres na ciência hoje em dia?

Embora a participação das mulheres na ciência brasileira venha aumentando anualmente, ainda há uma representação desproporcional. Nos últimos 10 anos, a proporção de mulheres entre pesquisadores cadastrados na base Lattes tem girado em torno de 40%, sendo as áreas da Saúde e Biológicas as com maior representatividade feminina. Um fenômeno interessante é que as mulheres são a maioria no que diz respeito ao recebimento de bolsas de iniciação científica, mas esse número vai reduzindo significativamente conforme vai aumentando o nível de instrução. Os motivos que levam a essa menor representatividade das mulheres em níveis mais avançados e em cargos efetivos, inclusive, têm sido foco de estudos por diferentes grupos no Brasil. Os homens ficam com quase 70%, hoje, das bolsas de produtividade em pesquisa, atestando exatamente isso: conforme se aumenta o nível hierárquivo, maior é a iniquidade no acesso a essas fontes de financiamento. As razões para isso não estão centradas em diferenças de produtividade, como acontece em outros países, uma vez que as mulheres brasileiras têm publicado tanto quanto os homens. Então muito se questiona sobre as razões dessas diferenças e, infelizmente, existem pouquíssimos dados sobre isso no Brasil. Mas, ainda assim, sabe-se que as mulheres cientistas ainda enfrentam dificuldades no acesso a cargos acadêmicos. O número de homens aprovados em concursos para docentes de universidades públicas é significativamente maior que o de mulheres, quase o dobro, embora elas, por vezes, representem a maioria das inscrições nestes concursos. Junto a isso, o número de mulheres em cargos de liderança de grupos de pesquisa também é significativamente inferior aos dos homens.

Quais os principais problemas enfrentados por elas? São os mesmos que os homens enfrentam?

Já se sabe há muito tempo que a iniquidade observada com relação à questão de gênero na ciência não diz respeito à maior ou menor habilidade científica feminina, ao contrário do que se tentou estabelecer na década de 80. Assim, o que se discute hoje é que as dificuldades enfrentadas pelas mulheres cientistas sejam de ordem estruturais, de organização das instituições científicas nacionais e, também, de formas sutis, às vezes imperceptíveis para quem não está atento, de discriminação sexual. Embora a questão da discriminação sexual no meio científico apareça de maneira disfarçada, ela existe, como atestam algumas publicações existentes sobre o assunto. Essa discriminação pode ser vista, por exemplo, na interpretação da agressividade e alta competitividade masculina como sendo características positivas para um homem cientista, enquanto para a mulher cientista isso seja visto como característica dominadora ou autoritária, uma diferença de percepção que acaba por dificultar o acesso de excelentes cientistas mulheres a posições de destaque ou a altos níveis hierárquicos. Em função disso, não é raro que as mulheres cientistas desistam de concorrer a esses cargos.
Como não poderia deixar de ser, há a questão reprodutiva e familiar. Atualmente, o auge da produtividade científica feminina muitas vezes coincide com a fase da vida da mulher em que ela está estabelecendo e consolidando laços familiares ou decidindo por ter filhos. E essa é uma questão crucial. A gestação, ou apenas a possibilidade dela em função da idade da mulher, pode representar empecilho para que ela se insira no quadro institucional ou, ainda, para que assuma níveis hierárquicos superiores. É muito frequente encontrarmos cientistas mulheres que fizeram pausas em suas carreiras ou as redirecionaram em função da maternidade. Por outro lado,  existe uma outra situação também bastante frequente, quando mulheres cientistas optam por focar em suas carreiras e acabam por protelar o estabelecimento de laços familiares, ou até mesmo desistem deles. A grande pressão existente na carreira acadêmica, que exige, muitas vezes, total disponibilidade de tempo e dedicação que extrapola as 40 horas semanais, por vezes traz dificuldades ou tensões conjugais, uma vez que os companheiros tendem a aceitar menos a total dedicação feminina, quando comparado com a aceitação feminina da total dedicação masculina. Embora não existam dados sistemáticos a respeito, quem trabalha na área científica sabe que isso é real: é grande o número de mulheres cientistas solteiras ou separadas. E isso tende a ser mais frequente quanto mais alto o destaque alcançado por essa mulher. O que acontece é justamente isso: ou se protelou a formação familiar em prol da dedicação total à carreira (algumas vezes, inclusive, abdicando dessa situação), ou os laços familiares foram rompidos em função da grande pressão do trabalho científico.
Aquelas que optam por constituir famílias e, simultaneamente, dedicar-se às atividades acadêmicas sofrem, constantemente, discriminação em função da necessidade de flexibilização de horários ou de jornadas parciais. 

Você acredita que elas têm o mesmo reconhecimento que os homens? Se não, o que falta?

Não, infelizmente. A título de exemplo, pode-se citar uma situação frequente: quando prêmios importantes são concedidos a cientistas brasileiros, isso é encarado com naturalidade. Mas quando é uma brasileira cientista a receber o destaque ou a ser condecorada, as sociedades científicas e a própria mídia enfatizam o fato de ter sido “uma mulher” premiada, como se isso fosse um fato surpreendente. Nisso está embutido um conceito de discriminação e preconceito que, por vezes, não é percebido como tal. Acredito que faltam algumas coisas importantes para que o reconhecimento feminino na ciência seja uma constante, modificações estruturais, políticas públicas e de formação humana. As mulheres não deveriam, ao meu ver, precisar optar por uma ou outra área de suas vidas. As mulheres conquistaram, com o auge do movimento feminista das décadas de 60 e 70, o direito de estar em locais que antes eram dominados por homens. A academia é um desses lugares, acentuadamente masculinos. Mas isso não basta. Uma mulher cientista não deve precisar se comportar como um homem cientista para ser reconhecida. Ela deve ter o direito de ter suas escolhas como mulher respeitadas, sem que isso interfira no reconhecimento que possa vir a ter. Embora isso seja um assunto que aparece de forma velada na academia, quem está inserida nela sabe que é real, muitas sentem na pele essa discriminação. Uma pesquisa brasileira mostrou que as cientistas jovens, recém-inseridas no ambiente acadêmico, sentem-se integradas e apoiadas, poucas se sentem discriminadas. Para essas profissionais, o entrave mais comum é o de conciliar trabalho e família. Mas, à medida que progridem em suas carreiras, começam a sentir-se marginalizadas ou excluídas. Ao contrário do que se pensa, a discriminação sexual na ciência não é uma questão que foi resolvida pelas gerações anteriores de mulheres cientistas. E afeta a todas nós ainda hoje.

A questão familiar, como ter que cuidar dos filhos, é um quesito que influencia na quantidade de mulheres envolvidas com ciência? De que maneira?

Sim. A carreira científica é árdua e necessita de atenção e dedicação constantes. Não bastam as 40 horas semanais, são necessárias viagens constantes, participações em congressos e outras reuniões, produção científica, docência e extensão. Essa grande quantidade de tarefas conflita com a necessidade de cuidado com os filhos e, por vezes mostra-se incompatível com um exercício consciente, presente e ativo de maternidade. Muitas cientistas precisam se separar de seus bebês precocemente para retornar ao trabalho, uma vez que o habitual é a jornada de 8 horas diárias. Embora algumas instituições permitam uma flexibilização dos horários, isso não é bem visto pelos companheiros cientistas e, novamente, a mulher será alvo de discriminação. Assim, é muito frequente, como já mencionei, o abandono da carreira ou a pausa para a criação dos filhos ou, ainda, a aposentadoria precoce. No entanto, é importante mencionar que a cientista que opta por fazer uma pausa em sua carreira para cuidar dos filhos dificilmente conseguirá voltar ao cenário acadêmico de maneira satisfatória, uma vez que, em ciência, as coisas tendem a se tornar obsoletas muito rapidamente, e é necessária atualização e produção constante, inclusive exigido pelas agências de fomento como critério para a concessão de incentivos.

Como conciliar os trabalhos acadêmicos e pesquisas com a maternidade, sem que nenhuma das partes (incluindo, claro, a mãe) seja prejudicada?

Essa é uma questão difícil de ser resolvida e as soluções existentes hoje são parciais e insatisfatórias. Algumas universidades disponibilizam creches para os filhos de seus funcionários, locais que permitem, inclusive, o prolongamento da amamentação em função da pouca distância, se essa for a escolha da mulher. No entanto, as demais exigências da carreira acadêmica acabam sendo conflitantes com a função materna. Não que não seja possível, obviamente é possível, tanto que muitas mulheres cientistas têm filhos pequenos e, ainda assim, continuam a desempenhar bem suas funções acadêmicas. No entanto, não dá pra negar que essas crianças passam muito menos tempo com suas mães do que poderiam passar. Isso é prejudicial não somente para a criança, mas para essa mulher, que tem reduzida a possibilidade de se dedicar mais ativamente a seus filhos. É muito doloroso precisar se separar de um filho ainda bebê, muitas vezes ainda amamentado, para retornar a um ritmo de trabalho muitas vezes extenuante. É, inclusive, uma justificativa utilizada para o desmame precoce. Não raro, se observam afastamentos posteriores por parte dessas mulheres em função de problemas de saúde emocional. Afinal, não dá pra negar que é extremamente desgastante e doloroso precisar, obrigatoriamente, abrir mão da companhia de seus filhos para retornar às suas atividades. E engana-se quem pensa que, findada a jornada de trabalho, estão findadas as obrigações. Muito do trabalho acadêmico precisa ser continuado em casa, em horários que deveriam e precisariam ser da pessoa, para si e/ou sua família.
São exceções quem consegue desempenhar com excelência ambas as atividades – a carreira e a maternidade. Seria necessário um tempo maior de licença maternidade e jornadas flexíveis que permitam à mulher dar conta de tantas tarefas e, principalmente, que permitam sua adaptação à nova condição. Obviamente, isso precisaria vir acompanhado de apoio, co
mpreensão e incentivo por parte de seus colegas cientistas homens. E acredito sinceramente que esse é o maior problema… Inclusive, utilizado como forma de excluir mulheres dos processos de seleção.

Mas tenho esperança que, num país agora governado por uma mulher, e onde as conferências sobre políticas públicas para mulheres estão ocorrendo e prometem dar origem a ações práticas, isso possa mudar. A própria Universidade Federal de Santa Catarina, onde fiz meu primeiro doutorado e onde estou fazendo, no momento, o segundo, vive um momento muito positivo, com a recém eleição de duas mulheres para os cargos de reitora e vice-reitora, pioneiras nisso. Tenho esperanças na mudança desse cenário.

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