É incrível como a maternidade potencializa preconceitos já existentes contra a mulher. Em primeiro lugar, tão sagrada é, para a sociedade em geral, a dádiva de poder ser mãe que, uma vez grávida, a mulher não tem o direito de se recusar a ser. Isso mesmo, as pessoas nascidas mulheres, essas que se diferenciam do resto da humanidade pela capacidade de gerar novas vidas humanas, não têm o direito de decidir se querem ou não, em determinado momento de suas vidas, cumprir a função biológica de reprodução da espécie. Passado o primeiro impedimento, que abstrai da mulher seu direito sobre seu corpo e sua vida, na sequência da maternidade virá outra série de impedimentos que dificultarão a vida da mulher-mãe, seja na sua sexualidade, na família, nos estudos, na profissão e também no exercício pleno da política.

Recentemente, uma polêmica envolvendo a deputada Manuela d´Ávila, do PCdoB do Rio Grande do Sul, revelou um pouco da dimensão dos preconceitos que as mulheres-mães enfrentam no ambiente político. Após divulgar uma foto, em perfil de rede social, em que amamenta seu bebê, a deputada recebeu uma enxurrada de críticas tais como:

“Exposição desnecessária da mama de uma deputada, ela deveria apenas falar o que faz sem mostrar, depois reclamam de assédio e falta de respeito” (1).

O incômodo causado por uma mulher que ousa ser atuante na política é ainda maior quando ela é mãe e deixa explícito que é mãe, não guarda sua maternidade no ambiente “reservado” do lar. 

Na mesma época da polêmica com a deputada Manuela, no Brasil, janeiro de 2016, houve um rebuliço na imprensa europeia pelo fato da deputada espanhola Carolina Becansa, do Podemos, ter levado e amamentado seu bebê em uma sessão do parlamento (2). A imagem da deputada amamentando em uma sessão plenária do Congresso espanhol foi descrita como “invulgar” pelos jornais à época e levou a vários questionamentos e críticas, inclusive por parte de seus colegas parlamentares. Questionada, Carolina reagiu:

“Se uma mãe tem que cuidar do seu filho, ela tem que cuidar do seu filho em qualquer lugar” (3).

Este tipo de “choque”, causado por mulheres que ousam ser mulheres no ambiente masculinizado da política, revela o quanto ainda há por conquistar.

A tentativa de fazer com que sejamos as eternas “mulheres de Atenas” reproduz uma concepção patriarcal em que a esfera pública, que também é a esfera do político, mantenha-se ad eternum como um ambiente masculino e a esfera privada seja sacralizada e continuada como o ambiente “natural” da mulher. Por que alterar esta ordem perfeita? Os homens continuam decidindo os rumos da coletividade no espaço público e as mulheres continuam gerando suas proles no espaço privado do lar. Por que trazer para o espaço público sua condição irritantemente humana de parir e cuidar de pequenas vidas? Por que trazer distúrbios à ordem pública com choros de bebês, cheiro de leite e fraldas sujas? É humanidade demais para ser tolerada. Ao mesmo tempo, muitas se perguntam: por que levar para o espaço imaculado do lar as discussões políticas? Os temas que somente os homens dominam? As reuniões até altas horas? As negociatas? Os temas de “difícil entendimento” para mulheres? Homens e mulheres que dividem os mesmos lares se estranham e não se reconhecem na interseção dos dois mundos.

Como bem escreveu a pesquisadora Daniela Peixoto Ramos, no seu artigo A família e a maternidade como referências para pensar a política:

“A desigualdade de gênero, ao contrário de outras, como as de classe e raça, se constrói de forma irrefletida entre pessoas que convivem intimamente e que possuem laços fortes, assentados em valores de honra e afetividade, relacionados a cuidar dos filhos e de outros familiares. Trata-se de uma desigualdade sub-reptícia, mascarada e duradoura porque encoberta por relações de amor entabuladas por familiares e amigos num contexto supostamente marcado pelo consenso e altruísmo e desprovido de assimetrias de poder. Dado que o cuidado sequer costuma ser encarado como ‘trabalho’, sendo antes caracterizado como um conjunto de atos de amor e devoção, torna-se difícil discutir quem deverá executar que fração dele. E, ao se concentrar todo ou uma parte desproporcional desse cuidado sobre a mulher, que se considera possuir as disposições naturais para tal, estabelece-se uma divisão do trabalho que expressa a forma mais acabada de organização familiar.” (4)

Não é por acaso que, avaliando-se o resultado das eleições nos últimos trinta anos, constata-se um lentíssimo crescimento da participação das mulheres no Legislativo brasileiro. Na Câmara dos Deputados saímos de 1,5% em 1982 para míseros 9,9% em 2014 (estamos atrás de pelo menos uns 150 países). No Senado Federal, saímos de 0% em 1982 (continuamos em 0% em 1986) e chegamos a 18,5% em 2014. Isso considerando que, pelos dados do IBGE, as mulheres somam 51,3% da população e formam a maior parte do eleitorado: 52% (TSE). Pensando em números absolutos, sobre as eleições de 2014, das 142,8 milhões de pessoas habilitadas para votar no Brasil, 74,4 milhões são mulheres!! Segundo a PNAD somos também a maioria nas universidades e ocupamos 41,9% dos postos de trabalho. Somos as responsáveis pela manutenção financeira de mais de 38% das famílias brasileiras! (5)

A sociedade grita pra nós: vocês podem fazer tudo, para além de ter filhos! Estudar, trabalhar e até votar! Agora, por que seria desejável para a mulher ser votada? Imiscuir-se na vida política? Abandonar marido e filhos desolados no lar? Misturar o sacrossanto exercício da maternidade com o exercício da política? Falar de política com os filhos? Levar para a manifestação, para o debate, para a votação? Participar das menores às mais altas instâncias de poder? O fato é que no dia em que nós, os 52%, nos dermos conta dessas perguntas e da exclusão a que somos submetidas dentro da sociedade que nós mesmas parimos e formamos muita coisa vai mudar. Como bem disse a atual presidente do Chile, Michele Bachelet:

“Quando uma mulher entra na política, muda a mulher. Quando muitas entram, muda a política.”

Notas:

(1) http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2016/01/criticada-por-foto-de-amamentacao-manuela-d-avila-devolve-o-peito-e-meu-4952291.html
(2) http://expresso.sapo.pt/internacional/2016-01-13-Uma-imagem-simbolica-e-invulgar-um-bebe-no-Parlamento-uma-mae-e-deputada-a-amamenta-lo
(3) http://www.brasilpost.com.br/2016/01/15/deputada-espanhola-amamentando_n_8987862.html
(4) http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n16/0103-3352-rbcpol-16-00087.pdf
(5) https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/2a-edicao-do-livreto-mais-mulheres-na-politica

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