Dos 14 aos 17 anos, carnaval, para mim, era sinônimo de ansiedade.
Minha família era sócia de um clube que fazia aqueles tradicionais bailes de carnaval dentro de ginásio. Aqueles em que se forma uma roda de pessoas andando sem sentido em círculo por fora, outra roda de pessoas andando sem sentido em círculo por dentro, com um monte de sem noção pulando no meio, cerveja nos copos sacudidos caindo por cima dos outros, confete colando no suor, um ou outro escorregão catastrófico na frente da arquibancada e uma banda cantando “deeeu no niuiórque tchaaaimes”, com o vocalista exagerando no sotaque americano. Banheiro feminino era algo que se aproximava do que eu imagino ser o limbo (para que você saiba, caro amigo, que não é só banheiro masculino que fede não…) e era comum encontrar duas ou três pessoas caídas no corredor já em estado de semi-decomposição. Cenário walking dead. 

Se eu gostava? Se achava legal? Se curtia? AMAVA! 
Passava o ano inteiro juntando dinheiro pra comprar a tal da “permanente“, convite que dava direito a ir em todas as quatro noites e três tardes, pra não ter que pedir dinheiro pros meus pais e, assim, não ter mais um obstáculo a vencer na luta pelo “Tá bom, pode ir”. A ansiedade ficava por conta de saber se eu realmente poderia ir ou não. Porque, obviamente, eu era muito nova e, embora eu achasse aquilo o máximo, minha mãe sabia que não era tanto assim… Passado o ano novo, eu começava a infernizá-la com o tal do “Mãe, posso ir?”, embora soubesse que, quanto mais eu perguntasse, maiores eram as chances dela não deixar, e mesmo ouvindo constantemente “Se perguntar mais uma vez não vai…”. 
No fim, ela deixava. E sempre curtia a empolgação junto comigo… No fim das contas, era isso que fazia do carnaval uma coisa memorável para mim: criou-se uma tradição. 
Eu ia para o baile com minhas amigas e sabia que, por volta da uma da manhã, minha mãe começava, em casa, os preparativos para nos receber. Então, ela ia nos buscar animada, nos perguntava tudo, contávamos, ríamos das aventuras e quando chegávamos em casa… sempre havia uma mesa posta com um ou dois tipos de bolos, sanduichinhos, sucos, leite. Era lindo! Toda vez que lembro disso me emociono…
Comíamos juntas entre mil conversas e íamos dormir entre quatro e cinco da manhã. Acordávamos, almoçávamos, descansávamos e lá íamos nós para a matinê. Era voltar, descansar, jantar e começar tudo de novo. E porque minha mãe sempre foi muito presente, e porque nós sempre tivemos um mínimo de noção, nada de ruim nunca nos aconteceu nesses carnavais. E, a despeito do cenário apocalíptico do qual me lembro, o que ficou mesmo foram as lembranças das madrugadas de acolhimento materno pós-carnavalescas, com cheiro de bolo saído do forno, suco fresquinho e sorriso de mãe.

Mas isso de gostar de carnaval de clube foi na minha adolescência. Depois, entrei na faculdade, fui morar sozinha, entrei numas de bichogrilagem, deixei o Raul e todos os Jim´s possíveis – e seus diminutivos – invadirem minha vida (Morrisson, Page, Hendrix e tal) e o carnaval passou a ser momento de fuga em massa: fugia do caos carnavalesco de samba (para o qual, em minha juventude bicho-grilo-rock-and-roll, eu dizia “eca!”), ia acampar com a turma toda, ou fugíamos em bando para praia ou montanhas e lá curtíamos quatro, cinco, seis dias de comunidade alternativa. Bons tempos aqueles de cenário when the moon is in the seventh house, aquarius

Então, como tudo passa, passou essa fase também. E chegou a fase de não querer nem ouvir falar de carnaval. Nem pra viajar. Curtia uma reclusão junto à minha família ou a amigos que também não curtiam carnaval, churrasquinho, cervejinha, de leve, geralmente regado por uma média de seis a dez filmes que assistíamos compulsivamente. Até hoje, esse hábito de filmes no carnaval me faz lembrar minhas irmãs.

E aí nasceu minha filha e o carnaval nos pegou quando ela tinha sete para oito meses. Nem vi o carnaval passar. Minha repulsa carnavalesca continuava, muito mais pelo que a mídia nos mostra do que ela considera “carnaval” do que pelo próprio. Porque o que se vê nos jornais e na televisão aberta é esse carnaval baixaria, putaria, de gente caindo bêbada em cima dos outros, de cinco a dez peitos e bundas por metro quadrado sendo esfregados na cara de quem nem curte peito e bunda tanto assim, de massacre da cultura popular e total dominação por essa pseudocultura que vende. Até tentamos ver um carnaval de bairro tradicional daqui, mas chegamos depois do desfile e não vimos nada. Então, continuei a deixar o carnaval enterrado lá nas minhas memórias adolescentes. 

No segundo carnaval dela, a coisa já relaxou um pouco. Eu já não assistia mais televisão aberta e, portanto, não via mais o carnaval baixaria que a mídia faz questão de nos trazer. Calhou do evento que nós organizamos aqui em Floripa para mães empreendedoras e suas famílias cair bem pertinho do carnaval, organizamos um bailinho e, então, me peguei amando as marchinhas antigas, as musiquinhas infantis de carnaval, Clara ganhou uma fantasia de fada feita por nossa amiga e confesso que minha bronca com o carnaval diminuiu. O que contribuiu para isso? Ter uma criança em casa e manter a televisão ligada apenas para filmes – e uns seriados madrugueiros que assisto enquanto trabalho. Minha irmã veio nos visitar e aproveitamos para passear muito. Mas longe de qualquer folia.

E então chegou 2013. 
E chegou com uma entre vinte e tantas resoluções da minha listinha anual: vou recuperar o carnaval dentro de mim. Ainda mais porque adoro a cultura popular e aquilo de dizer “eca!” para o samba (samba propriamente dito, não aquele arremedo feito por meninos com cara de carinhosos dançando no mesmo passinho) era só fachada descolex de xente xófem. E essa vontade veio também do fato de que o carnaval tradicional de rua é uma festa bacana em sua essência e minha filha precisa conhecer esse carnaval, antes que a vida mostre a ela aquele outro, versão apocalipse zumbi. Uma criança que vive em um ambiente onde todos dizem que carnaval é ridículo, é baixaria, é violência, é sinônimo de álcool e otras droguitas mas, cresce achando que carnaval é tudo isso aí mesmo. E cresce achando isso sem nunca ter vivido o lado bom da festa popular. E pode ser que, lá na frente, ela não saiba escolher – como eu e minhas irmãs escolhemos, tendo conhecido os dois lados da moeda. Carnaval é tudo isso aí de ruim? Sim, é, porque foi o que fizeram dele. Mas não é isso. É também música, cultura, fantasia, brincadeira, trabalho coletivo, imaginação.

Tendo decidido aproveitar de maneira diferente o carnaval deste ano, a vida se encarregou de dar uma forcinha. Nós moramos em um bairro conhecido por sua cultura açoreana, um bairro que já foi apenas de pescadores, e aqui pertinho, no bairro vizinho, há uma associação que ajuda a promover um carnaval muito legal, a Baiacu de Alguém. É um bloco de carnaval popular tradicional, formado por moradores da região e outras pessoas que querem ajudar a fazer uma festa bacana. Foi então que meu marido foi convidado para fazer a ilustração do bloco nesse ano, com o tema de “Baiacu Engarrafado”, em alusão aos constantes e caóticos engarrafamentos que já há um bom tempo tomam conta de Florianópolis.  Dali a umas semanas, começariam os ensaios da bateria do bloco e, então, decidi: vou tocar! Dez anos depois de estudar percussão, sem nunca mais ter tocado nada. Mas e daí? Aprendo de novo. 
E então começamos.

Durante um mês, as noites de quarta e sexta-feira foram preenchidas por ensaios. Clara sempre com a gente. Então fizemos amigos, conhecemos vizinhos, nos inserimos nas atividades do bloco e foram momentos inesquecíveis de parceria, alegria e união. Isso sem falar que ver nossa filha tocando junto, ou dançando à frente da bateria, foi algo incrível.
Todo mundo passou a conhecê-la e a chamá-la de mascote do bloco e ela foi tratada com muito amor por todo mundo e completamente incluída na programação, e quando não estava dançando ou tocando, estava comendo pastelzinho de berbigão, que ela, como boa manezinha, adora. 
Nós chegávamos nos ensaios e todos já vinham cumprimentá-la, de forma que ela se sentiu muito à vontade. Pessoal da Baiacu dando aula de inclusão de crianças, de respeito à infância, de cooperação. Não só com a Clara, mas com todas as crianças que acompanhavam seus pais. Nos tamborins, a primeira fileira foi dedicada às crianças que quiseram tocar. A Baiacu, definitivamente, é um grupo amigo da criança.

O bloco saía na sexta e na segunda. Nossas camisetas foram entregues dois dias antes. Eu, 34 anos e feliz da vida com meu “abadá” – das coisas que jurei que nunca escreveria na vida… Pensando em como transformá-la de uma simples camiseta em algo mais bacaninha – ou, como dizem as mais entendidas no assunto, “customizadas”. Cuspe caindo na testa, a gente vê por aqui.
E, desafiando meus parcos talentos costurísticos… FIZ À MÃO UM VESTidO PARA MINHA FILHA! Momento “minha mãe, meu orgulho”. Te mete, falecido Clodovil.

Chegou a sexta-feira de carnaval e estávamos todos ansiosos pela apresentação. E então… caiu a maior água do universo. Chuva pesada o dia inteiro. Meia hora antes do horário do desfile, parou de chover, mas aí já não adiantava nada, o desfile foi transferido para o sábado. Clara perguntando “E o samba, e o samba?” e a gente explicando que não ia rolar… Ficou frustrada. Mas conversamos e ela entendeu que com aquela chuva não daria mesmo.

No sábado, então, saímos! 
Mas antes de sair, ainda na concentração, rolou daquelas aventuras do NEM TÃO MARAVILHOSO ASSIM MUNDO MATERNO… 
A concentração demorou mais do que imaginávamos. Fui pegar a Clara no colo e eis que sinto um líquido amarelinho e quentinho, também conhecido como xixi, molhando minha mão: a fralda não aguentou. Aquele mundaréu de gente esperando na concentração. O carro a quilômetros dali. Sem chance de ir até lá buscar o kit de sobrevivência. E aí
O pai dela, num momento derrotista, chegou a cogitar “Vou embora com ela, ué…”. Mas não. Jamais permitiria isso. Imagine a frustração da pequena (e do grande também), depois de participar de tudo, não poder sair no bloco, no “samba”, como ela aprendeu a dizer. 
Mas, caro amigo e cara amiga, se há uma coisa que tem em todo lugar é… MÃE
Saí correndo em meio às pessoas, em busca de alguém que tivesse uma fralda para emprestar, no maior estilo As Aventuras de Pi. 
Eis que encontro uma moça com um bebê no colo. Sinto-me salva. Aproximo-me dela e disparo: 

“Moça, desculpe incomodar. Mas minha filha fez xixi, a fralda está no carro há quilômetros daqui, não vou conseguir passar por essa multidão, você teria uma fralda para me dar, por uma gentileza imensa?”

Ao que a moça, com cara de confusa, responde: “No entiendo“. 
Argentina…
Eu ali toda atrapalhada, fiquei pensando em como me expressar, sem nunca ter ouvido ou escrito “fralda” em espanhol… Então, num acesso de “no quiero deixar la dama embaraçada”, disparei: “alguna cosa… alguna cosa para cambiar la chica“.
Cambiar la chica…
V-e-r-g-o-n-h-a. 
Alguém por favor use isso num comercial de escola de línguas.
A cara da mulher foi algo assim… hilário. Ela tentava segurar a risada da minha cara, enquanto tentava entender o que eu dizia, gesticulávamos, linguagem corporal, só faltou libras. Até que ela diz: “Pañal?! e aponta para a fralda da filha. Eu: “Si! Si! Isso! Pañal!“.
Então as mães soltaram as gargalhadas, relaxaram, se abraçaram em comunhão, uma entregou a fralda à outra como um bastão de maratona, aquele sentimento de vitória rolando. Digo “Muchas, muchas gracias, obrigada mesmo, gracias“, ela coloca a mão no peito, punhos cerrados, como naquele gesto brasileiro de  “É nóis, companheira!” e rolou aquele sentimento de “namastê”, a mãe que mora em mim também mora em você, embora fale outra língua. Viva la globalizacion!

Voltei, trocamos a Clara num cantinho protegido, voltamos ao bloco e o bloco, enfim, saiu.
E foi a coisa mais emocionante do mundo carnavalesco. Foi demais estar com aquele pessoal todo, vizinhos, crianças, amigos, gente contribuindo para um carnaval sem palhaçada, sem peladices, sem babaquices, sem violência, sem gente caindo de bêbado no meio do bloco. Crianças nos slings dos pais porque as mães estavam tocando, crianças abrindo a ala dos tamborins, crianças de cavalinho nas mães, gente tocando voluntariamente para contribuir para um carnaval bacana, bonito, de cultura popular mesmo. Esse era o tipo de carnaval que eu queria mostrar à minha filha – que não conhece outro, nunca nem ouviu falar. 

No dia seguinte, nós a levamos para o bailinho infantil. Linda, vestida de abelha. Dançou um monte, brincou, pulou, se divertiu.

Na segunda-feira, o bloco saiu novamente. Sensacional! Melhor que a primeira vez. Pai e filha abrindo a ala, ela no sling dele com seu tamborim (que foi da mamãe, que foi do vovô), a mãe tocando tamborim na bateria. Trabalho em família, em equipe, gente nos abraçando por estarmos ali juntos, representando muitas coisas mas, principalmente, um carnaval que inclui famílias. 


Ao final, comemos uma paella junto aos amigos, celebramos juntos um lindo carnaval tradicional, divertido, feito respeitosamente.
Mostrando que carnaval divertido e com respeito também é possível. 
Porque, afinal, quem faz o carnaval são as pessoas, e existem pessoas de diferentes tipos.


Ontem, ao ouvirmos da nossa varanda os fogos que finalizavam o carnaval em nosso bairro, demos tchau ao carnaval de 2013. Então Clara pergunta: “Acabou o carnaval, mãe?”. Eu digo que sim, que o carnaval desse ano acabou. E ela: “Mas eu quero tocar tamborim, mãe”. Eu digo que ela pode tocar, mas não no carnaval. Que carnaval agora só no ano que vem. E então ela saiu pela sala de ombros caídos, dizendo “Não quero ano, mãe. Quero carnaval…“. Mais de 100 milhões de habitantes fazem coro com ela no dia de hoje.

Essa foi a história de como foi que recuperei o carnaval em minha vida.
Como fui do carnaval apocalíptico zumbi para o carnaval tradicional, com minha filha e marido.
Sinto-me muito feliz por não passar conceitos pré-estabelecidos para ela e por continuar a mostrar que, para tudo o que fazemos, existem sempre formas mais afetuosas de fazer o que se faz.
E de carnaval apocalíptico mesmo só restou uma tal de espuma que vem n
um tubo metálico, nojenta, que o povo gosta de jogar na cara dos outros e que tem, acredite se quiser, butano como propelente.
Como é que alguém tem coragem de jogar numa criança algo que é inflamável?
Coisa horrorosa.

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Em tempo.
No caso de você se pegar em apuros por conta de uma fralda, aqui vai um pequeno dicionário do mundo globalizado, que as amigas do mundo virtual ajudaram a montar. Agradeço a todas que ajudaram nessa questão de imprescindível, fundamental importância. E se você acha que não é tão importante assim, espere até precisar de uma no meio de um bloco de carnaval…

Como se pede uma fralda emprestada em diferentes línguas:

  • ESPANHOL: Puedes prestarme (o dejarme) un pañal, por favor? Gracias. (por Angélica Lequerica).
  • INGLÊS: Excuse me. Would you have an extra diper to lend? I would really appreciate it! (por Manuh Martins Guilherme).
  • GALEGO: Podería prestarme un cueiro? Obrigada. (por Mercedes Martínez)
  • FRANCÊS: Excusez-moi, avez-vous une couche à me prêter? Merci. (por Gabriela de Andrade, que diz já tê-la utilizado no aeroporto em Montreal)
  • ITALIANO: Mi scusi, avrebbe un pannolino da prestarmi? (por Serena Improta)
  • JAPONÊS: Sumimasen, omutsu wo kashite itadakemasu ka? Arigatou gozaimasu (por Thais Saito)
  • ALEMÃO: Bitte. Kanst du mir ein windel leihen? Danke! (por Luisa Fernandes).
  • HOLANDÊS: Pardon, heeft u een extra luier die ik kan lenen? Dank u wel. (por Tessa Vindevogel-Colauto)
  • HÚNGARO: Elnézest, kölcsön tudna adni egy pelenkát? Köszönöm! (por Carolina Godinho Rosa Szabadkai)
  • CARIOQUÊS: Caraca! Esqueci a fralda! Tem como tu me arrumar uma? (por Raquel Petersen)
Vai que…

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