Culpa: sentimento de responsabilidade por uma ação que ocasiona dano ou prejuízo a outra pessoa, dizem os dicionários.
Quando uma mulher se torna mãe, comumente se sente responsável por tudo ou quase tudo o que acontece com os filhos dela. Se fica resfriado, deveria ter-lhe colocado uma camiseta no frio. Se cai, deveria ter-lhe segurado a mão ao pular do brinquedo. Se tira notas baixas, deveria tê-lo ajudado a estudar mais um pouco. Claro que este sentimento nem sempre chega explícito e nem toda mulher assume para si uma culpa máxima por tudo o que os filhos fazem ou sofrem. Mas a criação da mulher ainda neste século entrega-lhe uma formação ainda tão baseada em princípios patriarcais, que é comum que ela se sinta culpada. Sempre. Por tudo. A Eva que comeu a maçã e expulsou a si mesma e ao Adão do paraíso.
O Budismo prega que a causa da dor é o apego. E nós nos apegamos aos filhos. Desde o ventre, na maioria das vezes (ou ao menos quando a gravidez é, se não planejada, desejada). Se não aquele amor enlouquecido, ao menos um apego toma conta de nossas vidas desde que descobrimos gerar aquele ser dentro de nós. Apegamo-nos, inclusive, à imagem que fazemos de como vai ser o bebê. Que cor de olhos, de cabelos. E, em nossa imaginação, aquele ser é perfeito. Fisicamente perfeito.
Depois nos apegamos à ideia de como aquele filho vai crescer. O que ele vai aprender, quando ele vai falar, com quantos meses vai engatinhar. E mais uma vez nos certificamos, lá no íntimo, de que todas as fases de desenvolvimento e de aprendizado vão acontecer no tempo certo, do jeito certo. Idealizamos nossas crias desde o momento em que as descobrimos. E continuamos a idealizá-las até que elas cresçam para nos provar o quanto é bobo idealizar e o quanto não temos controle sobre como serão. Ou ao menos, não tanto quanto gostaríamos.
Mas, o que acontece quando aquele bebê não é perfeito? O que acontece quando descobrimos que a criança que está para nascer não vai ser do jeito que imaginamos, não porque terá cabelos diferentes ou o nariz menos redondo – mas porque ela vai ter alguma deficiência, física ou neurológica? Como nos sentimos quando, depois de conhecer aquele bebê, de vê-lo crescer, de achar que estava tudo bem, descobrimos que ele não irá se desenvolver no mesmo passo que os outros? Ou quando ele tem um cromossomo a mais, um pedacinho da boca a menos?
Quando este filho não vem como planejado, a dor é imensa.
Quando meu primeiro filho estava há cerca de 25 semanas na minha barriga, descobrimos sua deficiência. Uma malformação craniofacial. Ele nasceria sem o céu da boca. E com rachaduras nos lábios e nas gengivas. Guilherme seria uma criança fissurada, como chamamos quem nasce com fissuras labiopalatinas. Estudos ainda estão em desenvolvimento sobre o que leva a essa malformação. Sabe-se que fatores como má nutrição e falta de ácido fólico e fatores genéticos podem influenciar.
Eu não sabia da gravidez até a décima segunda semana. A cabecinha do bebê se forma por volta da oitava. Eu não sabia que estava grávida. E meu filho nasceria com uma deficiência que o impediria de mamar, de se alimentar como as outras crianças, de falar normalmente. Teria que ser submetido a várias cirurgias desde os primeiros meses de vida. Faria tratamento multidisciplinar para aprender os fonemas que os bebês típicos reproduzem no primeiro ano de vida. “Um tratamento que pode durar 20 anos”, diziam os médicos.
Eu não sabia que estava grávida. Não tomei ácido fólico no primeiro trimestre. Fiz dieta e reeducação alimentar para emagrecer. Perdi oito quilos. Fazia exercícios físicos de alto impacto. Como eu não sabia que estava grávida? Três testes BHCG deram negativo. E atribuímos a falta de menstruação e os outros sintomas à mudança de hábitos, à mudança nutricional, aos exercícios.
Se eu soubesse que estava grávida, e tivesse tomado todos os cuidados que uma grávida deve tomar, ele seria fissurado? Não sei. Talvez não. Talvez sim. Foi com este pensamento que entrei no ciclo do luto pelo filho que eu não ia ter. O filho perfeito. Eu precisei desapegar da imagem que tinha sobre o bebê que gerava. Eu até tentei culpar os laboratórios que fizeram os testes, mas três anos depois eu também teria dificuldade em confirmar a gravidez do meu segundo filho – foi preciso uma ultrassonografia, nos dois casos.
Então foi impossível não me sentir culpada. “Eu deveria ter insistido nos testes”, “Devia ter prestado mais atenção”, “Devia, devia…”. A culpa me acompanha até hoje, embora agora eu consiga lidar com ela de uma forma mais racional. Mas em épocas de cirurgia, quando ele passa por procedimentos invasivos, uma dieta altamente restritiva, analgésicos a cada 4 horas durante semanas, sem brincar, sem pular, sem ver os amigos, nessas épocas a culpa dorme comigo todas as noites. E eu me sinto a mulher mais irresponsável do mundo. “Como deixei isso acontecer com o meu pequeno?”. É muito duro.
Ela, a culpa, também bate à porta cada vez que ele se frustra por não conseguir reproduzir um fonema. Cada vez que ele tenta falar uma palavra do seu rico e desenvolvido vocabulário e eu não entendo o que ele pronunciou. Ela é sutil. É rasteira. Mas está lá.
Perguntei-me se a culpa também assolava as mães de crianças que nasciam e cresciam sem problemas aparentes. Que experimentaram colocar no mundo seus filhos esperados do jeito que imaginaram, até um outro diagnóstico, como autismo. Descobri que sim. Conversei com algumas mães de autistas e entrevistei uma delas. Andrea Werner é mãe do Theo, de nove anos. Um garoto lindo, de olhos expressivos e muito carinhoso. O diagnóstico dele veio depois dos 15 meses de vida. Theo regrediu. Parou de falar, de bater palmas, de interagir. Como se a vida tivesse dado àquela mãe um trote, um sorvete imenso que derreteu rápido demais.
Conheço Andrea. Ela é uma mulher sorridente, brincalhona, que tenta ser leve apesar de carregar uma bagagem imensa. Tem uma visão positiva sobre as coisas. Escreve muito, ajuda outras mães de autistas. Lançou seus livros. Particularmente, acho que este é o jeito que ela encontrou de lidar com o turbilhão de sentimentos que envolve ter um filho atípico. Ela escreve, dá palestras. E no seu livro “Lagarta vira pupa”, de 2016, onde conta sobre todo o processo de descoberta do diagnóstico e tratamento do Theo, ela escreve sutilmente sobre como passou por cima do sentimento de culpa.
“É genético”, disse o médico que entregou o diagnóstico. “Nada de culpa aí”, completou. Ela diz que agradeceu, que precisava ouvir aquela frase. Para mim é como se nós sempre precisássemos de alguém “gabaritado” para aceitarmos que a culpa não é nossa. Perdi as contas de quantas vezes ouvi de médicos e familiares “a culpa não é sua”. Nem sempre adiantou. Mas, às vezes, eu precisava que esta afirmação viesse de fora, porque sozinha eu não dava conta de acreditar nela.
Durante o crescimento do meu filho eu percebi que a montanha russa de emoções de ser mãe de um filho atípico não se encerrava na culpa. Minha autoestima foi pro chão. Como mãe, como mulher. Quando você dá à luz um filho atípico, você entra num carrossel de rótulos. Você vira uma “mãe especial”. E eu não gosto deste termo porque parece que só as crianças que têm alguma deficiência são especiais. As outras, não.
O pequeno Pedro, filho da fotógrafa e doula Mari Hart Dore, percebeu isso quando tinha só 3 anos. Ele é irmão gêmeo do Leo, que tem paralisia cerebral.
“Desde o início quando meu Leo ainda era bebê, a expressão ‘especial’ me incomodava bastante, mas eu nunca soube exatamente o porquê. Só evitava usar. Pode soar estranho, mas eu não conseguia entender o que tinha de especial em ter um filho que não anda, não fala, tem convulsões, não enxerga normalmente, não mastiga perfeitamente, tem pneumonias por repetição etc… Por que especial? Talvez por ser muito realista e pé no chão, nunca romanceei o fato de ter um filho com paralisia cerebral, acho perigoso e irresponsável. E então, o irmão gêmeo de Leo, Pedro, certa vez falou: ‘Mãe, porque só o Leo é especial!? Eu quero ser especial também!’. Ele tinha por volta dos 3 anos e só ali eu entendi a necessidade de problematizar o termo. Desde então, nunca mais falei ‘meu filho é especial’, porque todos os meus filhos são especiais, cada um à sua maneira. Todas as crianças são especiais”, me contou Mari numa entrevista.
Ser uma mãe “especial” nos traz um pacote completo de “mas” e “se”:
– Se ele fosse “normal” ele já falaria com essa idade, não é?
– Ele é muito esperto, mas vamos precisar estimular muito a coordenação motora.
– Insira aqui uma frase com um elogio à criança acompanhado de um porém.
Parece que a sociedade julga o quanto você se esforça por aquele filho. Quanto trabalho você dispende na criação dele. Quanto tempo investe, quantos médicos contrata. E, mais do que isso, o quanto da sua vida você sacrifica pelo bem estar dele. Como se o simples fato ser mãe, só mãe, já não fosse o bastante para todos estes itens de dedicação estarem bem preenchidos.
E então, constantemente, a gente se pergunta sobre nossa capacidade de fazer as coisas direito. De fazer filhos.
“Acho que o sentimento de incapacidade é uma constante na vida de qualquer mãe. O que eu acho que afeta um pouco a autoestima é ver que você, agora, é ‘a diferente’. É a única do seu grupo de amigas que está passando por isso. É a única que não tem um filho com desenvolvimento normal, que não vai contar historinhas sobre como ele já fala tudo, que vai evitar levá-lo às festas de aniversário porque dá trabalho demais (e, às vezes, nem vai ser convidada). É a única que tem um filho que não tem a menor noção de quem é Nemo, Woody, Mickey. É a mãe que tem que escutar ‘nossa, que menino mal educado’ quando seu filho grita no shopping (e sabe que não é, definitivamente, uma questão de educação). É a que não vai vê-lo fazer a coreografia de dia das mães junto com os coleguinhas. Principalmente no início, parece que você virou uma ‘mãe de segunda categoria’ e que nem tem papo com as outras”, reflete Andrea.
No meu caso, a deficiência do meu filho é física. Quando ele nasceu, precisei lutar contra o sentimento de querer mostrá-lo ao mundo. Porque não era fácil. Ele não era um bebê fofinho e fotogênico. Ele tinha duas enormes fendas no lábio superior. Eu via no rosto das pessoas o choque ao vê-lo pela primeira vez. Ele mesmo, quando viu uma foto sua quando recém-nascido, assustou-se. Para mim ele sempre foi um bebê adorável e bonito. Mas não o era para o mundo. Eu tinha feito um filho com defeito. Será que eu não era capaz de gerar um filho perfeito?
“É uma sensação de derrota indescritível. De culpa. Fracasso, como mãe e mulher. Até de vergonha. E por isso compreendo porque muitas mães ainda escondem seus filhos da sociedade, não saem de casa. Muitas, talvez até uma grande maioria, são abandonadas por seus parceiros. Vi esta realidade de perto em ONGs que frequentei. Mexe muito com o ego. Eu, particularmente, sentia como se meu corpo fosse incapaz de ter gerado um filho saudável. A questão ‘e se?’, nos ronda frequentemente. E saber que o tempo não volta causa um pesar imenso. Eu me sentia a última das mulheres. Injustiçada. Me perguntava o que fiz de errado na vida para merecer isso”, conta Mari.
Mari também lida com o preconceito alheio à forma física do filho. E com a dificuldade das pessoas em ter respeito e empatia.
“Passei oito anos de minha vida, ou seja, os primeiros oito anos da vida de meu filho, saindo de casa com ele como se fosse para uma batalha. Voltava exausta física e emocionalmente. Porque a sociedade não está preparada para lidar com o que lhe é diferente. Olhares e comentários preconceituosos, desrespeito, falta de dignidade, humilhações. Tudo o que poderia ser evitado com uma sociedade mais inclusiva, mais preparada e mais bem informada. A ignorância é a raiz de tudo”, ela diz.
E faz uma afirmação que pode mudar o jeito de vermos este tipo de contexto:
“A paralisia cerebral de meu filho nunca foi o problema e, sim, a forma como mundo lida com a deficiência”.
DEPOIS DO LUTO, DA CULPA, DA QUEDA
O que ninguém nos conta é que essa culpa, essa autoestima abalada, podem se tornar marginais no processo. Mas não se enganem: é preciso muita força. É preciso uma rede de apoio. É preciso respirar fundo e passar por todas as fases do luto, da culpa, da tristeza. É preciso porque há, ali, um ser indefeso e ávido pela vida, mas que precisa mais do que nunca acreditar que esta vida vale a pena. Mari diz:
“Com o tempo, as respostas vão chegando, naturalmente, no dia a dia, sem procurar. Simplesmente chegam. E é preciso sensibilidade para perceber que estas respostas estão ali, na nossa frente. Por isso é fundamental não pular nenhuma etapa do luto. E uma rede de apoio, mulheres ajudando mulheres, mães dizendo para outras mães ‘você não está sozinha’, é essencial para dar a volta por cima”.
Andrea também acredita nisso:
“Conhecer outras mães na mesma situação é essencial”.
Eu fecho com as duas. Ter uma rede de apoio, conhecer mulheres que passaram pelo mesmo que eu estava passando ou iria passar foi fundamental. Eu tive o privilégio de encontrar em meu caminho duas mães que vinham pelo mesmo caminho. A Luiza Pannunzio e a Patrícia Sakavicius. Foi através das redes delas, dos blogs e das páginas que encontrei um pouco de alento e de paz. Em seguida foi a minha vez. Embora tenha colocado o blog e a página de Facebook numa longa pausa, ainda hoje recebo mensagens de vários Estados solicitando orientações sobre tratamento, uma palavra de apoio, um qualquer coisa que ajude a passar pelo processo desde o início.
“Sou uma pessoa que gosta de fazer as pessoas acreditarem que é possível! Quando uma mãe se depara com o diagnóstico de fissura labiopalatina, uma carga de dúvida, preocupação e culpa chega junto com esse diagnóstico. Essa carga foi aliviada em mim com informação, muita informação. E amparo. E carinho. E a certeza de que era possível. E é isso que pretendo compartilhar, para que, de alguma forma, o benefício que tive seja multiplicado sempre. É uma forma de retribuir, sabe?”, diz Patrícia sobre a importância do trabalho que ela e outras mães fazem ao escrever sobre os diagnósticos e tratamentos de seus filhos atípicos. “A cada nova mãe que lê o blog ou conversa comigo, sinto que mais um passo foi dado em cumprir essa missão que aceitei como minha. Muitas hoje fazem o mesmo. É uma corrente do bem que não acaba nunca! Acho que isso me fortaleceu e me fortalece até hoje: transformar o limão numa limonada doce é muito mais divertido e útil”, finaliza ela.
Mari e Andrea também fazem este trabalho. Apoiam. Escrevem. Orientam. Por isso as escolhi para estarem aqui neste texto comigo. E, assim como essas quatro mulheres sensacionais, várias outras encontram nesta rede de apoio não só um ambiente para se levantarem e erguerem suas cabeças, mas também para ajudarem outras mães a fazerem o mesmo. Como nós tentamos fazer.
Eu escuto muito sobre como o ativismo que faço é “de sofá”. Sobre julgamentos e dúvidas a respeito do valor de textos tão pessoais, quando sou jornalista e comecei minha carreira escrevendo reportagens para jornais impressos e revistas de grande circulação na cidade onde nasci.
Mas depois de entender como funciona esta rede de apoio, e perceber que uma parte imensa dela acontece aqui, no mundo virtual, aceitei que nos mostrar de forma crua e aberta é o jeito mais profundo de dizer àquelas que estão lendo: eu entendo você.
E isso vai se acertar. A vida segue, e nós vamos seguir juntas. Pega aqui a minha mão.
O caminho é mais suave quando você não está sozinha. E você não está.