– Mãe, pode comprar isso pra mim?

– Ué… Mas isso não tem nada a ver com você, filha!

– É que as meninas da minha escola estão usando, eu quero usar também.

– Mas as pessoas não precisam ser iguais só porque vivem juntas, filha. E eu não acho isso muito legal pra criança, sabe?

A voz dela começa a embargar, os olhos se enchem de lágrimas e ela responde:

– Mas só eu que não tenho isso, mãe… Eu não quero ser excluída… – E começa a chorar…

PÁF! Tá lá o coração da mãe partido ao meio. Cria nossa chorando sentidamente, por um motivo tão banal, é de moer o coração. É aí que mora o perigo. E se estivermos desatentas em virtude do correr da vida, perdemos a chance de conversar com elas sobre coisas REALMENTE importantes.

“VOCÊ NÃO É TODO MUNDO”, “ENGOLE ESSE CHORO” E AGRESSÕES AFINS

Muita gente ri de bordões como “Você não é todo mundo” ou “Engole esse choro”, coisas que muitos de nós ouviram quando crianças – e usamos essas frases até pra fazer piada. Mas a verdade é que isso é uma imensa grosseria, uma agressão às crianças.

“Ah, que exagero, sempre fiz isso com meus filhos – OU – minha mãe fazia isso comigo e olha eu aqui, sobrevivi”.

Sabe, gente, criar e educar filho não é uma espécie de Olimpíada da Sobrevivência. Ao invés de propagar o que era feito sem reflexão sobre quem magoamos e as consequências disso, muito mais inteligente e proativo seria buscarmos formas mais amorosas e respeitosas de educar as crianças, também para que elas não cresçam como uma pessoa que acha que tudo bem grosseria e agressão verbal. Sim, você sobreviveu – a uma agressão. Mas sobreviveu achando que é legal ser agressivo, sobreviveu mantendo o ciclo da violência. É isso mesmo que você quer? Sempre é tempo de rever nossas crenças e a forma como estamos no mundo.

Isso sem falar no fato de que coisas como “Engole esse choro” ou “Você não é todo mundo” não significam absolutamente nada pra criança. Não ensinam nada a elas além de que:

“O QUE ELAS SENTEM NÃO TEM IMPORTÂNCIA”

Não dá pra esperar que uma criança pequena entenda o conceito irônico e sarcástico embutido em “Você não é todo mundo”. E mandar que ela engula o que está sentindo porque nós consideramos uma bobagem é de um grande egoísmo – e preguiça. Preguiça de olhar para a criança, vê-la como criança, que precisa de atenção, cuidado, explicações e orientação.

ESCUTA EMPÁTICA DO DESABAFO

É bastante fácil a gente ouvir uma reivindicação como a que minha filha me fez como uma bobeira que não merece atenção porque, afinal, aquele objeto realmente não tem importância alguma – e o que é isso em meio aos boletos que vencem, ao cansaço, aos problemas da vida?

Mas o que importa aqui não é a coisa em si e, sim, o que ela esconde. E há bastante coisa por trás disso: consumismo, necessidade de ser aceita, medo de ser rejeitada, deslocamento do afeto de pessoas para coisas, etc.

No caso que estou relatando, estávamos passeando e ela viu o tal objeto numa feira de artesanato. Assim que eu disse que não ia comprar porque não achava bacana, ela começou a chorar, sentidamente. E ela é uma criança que não tem por hábito chorar quando ouve uma negativa, pelo contrário, ela argumenta até o fim. O choro dela me mostrou que havia mais por trás daquilo. Sentei-me com ela no banco da pracinha, coloquei-a no colo e começamos a conversar. Perguntei por que aquele objeto era tão importante. E ela começou a me dizer que só ela não tinha, que todas as meninas com as quais convivia na escola tinham, que algumas vezes ela se sentia excluída, que não queria ser excluída, que preferia ter também.

Percebe a quantidade de coisa que há aí? Percebe a quantidade de coisa que poderia ter sido tratada como banalidade se eu simplesmente tivesse respondido “Que bobagem! Para de chorar por nada!”? Certamente, ela se sentiria triste, não ouvida, desimportante. E não é esse o tipo de valor que eu me empenho em transmitir. Então começamos a conversar.

SÓ EU QUE NÃO…” – NÃO EXISTE

O sentimento das crianças de que “só elas não têm algo” vem da necessidade de pertencimento. Porém, é preciso mostrar que isso não é verdade. Que muita gente não tem aquilo, que talvez a maioria das pessoas não tenha. E que tudo bem não ter o que é supérfluo.  Chamar a atenção para o fato de que muitas pessoas não têm muitas coisas e, ainda assim, pertencem a um coletivo é dar valor aos valores comuns em detrimento dos individualismos.

Expliquei pra ela que aquilo não era verdade, que não era só ela que não tinha. Ela insistiu, disse que sim, que só ela não tinha. Então propus um exercício prático, de observação das pessoas ao nosso redor. Que ela olhasse ativamente pras pessoas que passavam por nós e atentasse para o fato de que não, essas pessoas também não tinham aquilo naquele momento. Pode parecer uma bobagem, mas exercitar o olhar para o outro, o desconhecido, o que, ainda que não seja eu, também sou eu, ajuda a colocar as coisas em perspectiva.

Esse argumento funcionou? Ela deixou de estar aborrecida? Não. Não é simples como mágica transformar o descontentamento das crianças em reflexão. Mas o importante é o caminho percorrido, é o exercício.

“EU NÃO QUERO SER EXCLUÍDA” – CRIANÇAS QUE EXCLUEM

É verdade que muitas crianças excluem outras apenas porque estas não têm algo que elas julgam importante? Sim, é. As crianças estão em constante movimento de observação e formação de pares. Elas acreditam, também, que semelhante é aquele que tem o que ela tem. Mas isso precisa ser desconstruído ativa e urgentemente todos os dias, toda hora. E por que? Porque se não fizermos isso:

1) permitimos que elas confundam o TER com o SER;

2) porque as tornamos presas fáceis para os valores de consumo, para a publicidade infantil, para o estabelecimento de valores materialistas;

3) porque elas podem estar propagando injustiças ainda mais severas com outras crianças, que sofrem muito mais do que elas por não terem nem o essencial, quanto mais o supérfluo.

Conversei com ela sobre esse sentimento. Disse que entendia que ela se sentisse assim, que eu já havia me sentido assim também quando era criança. Contei algumas histórias sobre isso, a pedido dela. E perguntei: “Você está sendo excluída por não ter isso ou acha que está sendo excluída?”, ao que ela me respondeu:

– Eu me sinto excluída, mãe! E a [menina de nome tal], da [sala tal] outro dia disse que só eu que não tinha…

– Bom, meu amor, agora você já sabe que isso não é verdade. Você já percebeu que muita gente não tem, e que tudo bem não ter o que não é importante. Que ninguém precisa ter tudo pra ser respeitado, muito pelo contrário. Coisas nunca serão mais importantes que pessoas.

– Mas ela foi cruel comigo, mãe…

Bingo.

Cuidadosamente, mostrei pra ela que o problema, então, não estava em ela não ter aquilo. Estava na forma como a [menina de nome tal] estava tratando outras pessoas. Que não era legal fazer isso, que trazia tristeza às outras pessoas, não era gentil, fazia as pessoas se sentirem mal.

– Sim, mãe, e eu me sinto muito mal por isso.

– Você já disse isso pra ela?

– Não…

– Então eu te apoio para que fale.

– Sim. Eu vou falar. Isso não tá certo! A gente não precisa ter tudo. A gente nem pode ter tudo. É só uma coisa! Fico triste por ela ser cruel. Ela que está errada… E…[e começou uma descrição das coisas que ela mesma observa quando algumas crianças são cruéis com outras. Vejam onde fomos parar…].

Deixei-a falar um pouco e, em determinado momento, a interrompi, dizendo que era importante que ela tivesse visto isso – para que também não fizesse com os amigos e as amigas aquilo que não gosta que seja feito com ela. Que, às vezes, as crianças fazem isso sem pensar. Mas que era importante ela lembrar de como se sentiu injustiçada para que não cometesse a mesma injustiça com outras crianças. Ela pareceu entender. Fomos finalizando a conversa no tom de convidá-la a conversar com as outras crianças quando isso acontecesse novamente – porque, sim, irá acontecer. Que, ao ser confrontada com um discurso como “SÓ VOCÊ NÃO TEM”, ela mostre o outro lado, dizendo: “Tudo bem não ter. E você está sendo cruel comigo”.

Essa é uma forma de fazer com que as crianças também atuem na transformação dos comportamentos ao seu redor, mostrando e apoiando outras crianças. Se a gente as orienta no sentido de “Chame-a de boba! Diga que ela é chata! Diga que você tem outra coisa e ela não!”, nada de bom é construído, pelo contrário – e isso além de não estarmos ensinando estratégias de enfrentamento pacífico.

Repito a pergunta que fiz ao final do tópico anterior: esse argumento funcionou? Sim, funcionou, ela entendeu. Isso fará com que ela também não faça isso com outras crianças? Provavelmente não… Mas educar é isso aí: é estar atenta o tempo todo, não deixar passar, insistir, repetir, marcar firme. É, de novo, aquele papo de que o importante é o caminho percorrido…

FAMÍLIAS QUE INCENTIVAM A EXCLUSÃO

Nesse ponto, é fundamental que a gente lembre também do papel das famílias. Há muita gente adulta que incentiva que seus filhos e filhas ajam no sentido da exclusão.

“Vou te dar isso, que ninguém mais tem!”

“Não deixe ninguém brincar com isso, isso é seu!”

“Só você vai ganhar, seu irmão não”

“Só você vai ganhar isso porque é especial”

Não tem como esperar que as crianças que vivem em lares onde esse tipo de valor reina ajam de maneira diferente com as pessoas ao seu redor. As crianças tendem a reproduzir o que vivem em casa – é assim com a violência, é assim com os preconceitos, é assim com as discriminações, é assim com a empatia, é assim com a gentileza, é assim com tudo. Portanto, caro adulto, tá na hora de rever seu comportamento excludente. É impossível criarmos uma infância gentil enquanto nós mesmos não formos gentis em nossos valores.

O APELO EMOCIONAL

Claro que ver uma filha/um filho chorando ou triste é desconfortável e vem carregado de um apelo emocional. Porém, é preciso colocar cada coisa no seu lugar. Quando vem a vontade de ceder e dar a tal coisa pra criança – que tem muito a ver com COMPRAR a tal coisa pra criança – é fundamental refletir: é necessário? Ela realmente precisa? Está realmente fazendo falta? Se a resposta a essas perguntas for “não” e, mesmo assim, você se sentir compelida a comprar, a dar, pode ser que você esteja caindo em uma armadilha…

Se sente culpada por algo? E comprar aquilo talvez te faça sentir menos culpada? Armadilha.

Trabalhando demais e não consegue estar com a criança e, por isso, vê na compra disso uma forma de compensar? Armadilha.

Negou algo anteriormente e está com medo de que a criança pense que você é malvada e não pensa nela? Armadilha.

Teve uma infância muito difícil, de bastante escassez, e tem medo de que ela esteja sentindo o mesmo? Armadilha.

Ou qualquer outra coisa que esteja sendo usada como substituição e compensação? Armadilha, minha gente. O que significa que você pode até dar/comprar, se quiser, se puder. Mas o buraco vai continuar aberto, o vazio vai continuar ali, porque afinal você não atacou o problema de fato. E a tendência é que isso vire uma grande bola de neve… Por isso, gente querida, muita atenção quando aquilo fala muito ao coração, dói muito, faz sentir muito desconforto: há coisas maravilhosas ali para serem cuidadas com amor – não com coisas.

A FACILIDADE ESCONDE O PERIGO

Ai gente, que exagero, quanta coisa pra pensar, pra sentir, por uma coisa tão boba quanto um brinquedo, um acessório; não é mais fácil ir lá e dar logo, e economizar tempo, e dor de cabeça? Ai quanto mimimi…

Certa vez, escrevi:

“A facilidade esconde o inimigo. A facilidade é a mãe da mercantilização. Madrinha dos valores de consumo. Tia-avó da artificialização da vida. Genitora da coisificação do mundo. E das pessoas”.

Se é facilidade o que você quer e busca, ok, não julgo. Mas me preocupo muito com os valores que você estará, implicitamente, passando às crianças. Crianças criadas com sentimento de busca de facilidades aprendem a fazer a mesma coisa. E eis aí uma terrível armadilha para elas, capaz de colocá-las em inúmeras situações perigosas e arriscadas – além do sentimento de desamor e desimportância que isso traz… Porque, amigas e amigos, se tem uma coisa que criar filhos e filhas não é, é fácil. Claro que é mais fácil ceder, quando é possível que se ceda. Mas mais importante que facilidade, estamos falando de conversar, fazer-se entender, estimular a reflexão, a compreensão do mundo ao seu redor, criar crianças que façam a diferença na transformação do mundo.

TODO MUNDO TEM E EU NÃO” – DUPLAMENTE PROBLEMÁTICO PARA AS FAMÍLIAS NEGRAS

Recentemente, estive em São Paulo a convite do MILC (Movimento Infância Livre de Consumismo), do Instituto Alana e do Criança e Consumo, para um encontro de produtores de conteúdo sobre infância. Foi um momento indescritível com outras pessoas que também estão se dedicando ao enfrentamento de situações que colocam nossas crianças em risco – e que são muitas.

Lá, tive a imensa alegria de conhecer Clélia Rosa, que emocionou a todos nós com sua fala sobre como o apelo do consumo ataca duplamente as crianças negras. Clélia é mãe da Eloisa e da Aisha, é Pedagoga, Mestre em Educação e escreve no Coletivo Naná – Maternidade Preta. Conversei com ela sobre essa questão do “Só eu que não tenho” e perguntei de que maneira isso impactava ainda mais às crianças negras. Clélia me disse o seguinte:

“Não é segredo pra ninguém o quanto o mercado para o público infantil é vasto e diversificado. Nem o quanto as empresas investem em publicidade voltada para esse público. Tem produtos e propagandas de tudo que é coisa e para quase todas as crianças. Digo quase pois, no Brasil, país que têm maioria de população negra – 52%, de acordo com o último IBGE – a criança negra é totalmente invisibilizada quando o assunto é produtos e publicidade infantil. Cotidianamente, as crianças negras vivenciam situações de embranquecimento, pois todo o material imagético que é apresentado a ela tem como referencial o modelo europeu e, então, na frente da televisão são espectadoras da própria ausência, uma vez que não se veem representadas nos produtos que são oferecidos a ela: brinquedos, roupas, personagens, temas para festas infantis. Diante desse terrível cenário, lidar com a ideia de que “todo mundo tem e eu não” é duplamente trabalhosa para as famílias negras, pois além de educar nossas crianças na contramão do consumismo desenfreado, precisamos lidar com a frustração de não se ver representada nos produtos e ao mesmo tempo fortalecer sua autoestima, uma vez que sempre procuramos e/ou produzimos nós mesmas produtos em que elas se vejam”.

A QUEM INTERESSA O DISCURSO DO “AI QUANTO BLÁBLÁBLÁ, DÁ LOGO O QUE A CRIANÇA QUER”?

A todos os que não desejam que as crianças sejam seres reflexivos. Aos que preferem que as crianças se tornem massa de manobra. A quem deseja manipulá-las, agora ou futuramente, para motivos vis. Em especial: à indústria do consumo. À publicidade infantil. Aos que acham que tudo bem esse tipo de coisa aqui, da qual não esqueceremos.

O QUE FAZER, ENTÃO?

Escute. Converse. Mostre os inúmeros problemas desta questão – apontados neste texto. Mostre que não precisamos de coisas, mas de pessoas que acolham e se preocupem com as outras pessoas. Que não precisamos ter medo de ser diferentes, porque, afinal, todos somos mesmo, embora também sejamos iguais. Mostre o que esse discurso do “querer o que os outros têm” esconde. Mostre que o problema não está em não ter, mas em achar que é preciso ter. Entenda que o “Só eu que não tenho” é, na verdade, um grande convite para conversar profundamente sobre coisas sérias. E que estarão na vida delas para sempre.

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.

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