Há alguns dias, muitos estão debatendo sobre uma forma de cuidado parental que tem sido chamada de “attachment parenting”, traduzido de maneira simplista no Brasil por “criação com apego”.
Diferentes meios de comunicação estão falando sobre o assunto e eu aceitei participar de uma dessas matérias. O interesse da jornalista foi realmente saber mais sobre o tema e não apenas entrar na polêmica a qualquer preço, tendo o convite se dado não em função da minha experiência como mãe, mas como doutora na área da neurociência. Algumas amplas perguntas foram feitas e respondidas, e as respostas auxiliaram na construção da matéria.
Tem havido muita discussão, muita polêmica e muitos dos depoimentos mostram-se impregnados de preconceito.

Preconceito: ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial; opinião desfavorável que não é baseada em dados objetivos; estado de abusão, de cegueira moral; superstição.

Vivemos um momento histórico em que diferentes grupos sociais vêm levantando suas vozes contra o preconceito. Muitos de nós ensinam os próprios filhos a não serem preconceituosos. Felizmente já existem leis que punem algumas de suas formas (é uma pena que o ser humano precise ser regulamentado em uma questão tão básica quanto respeitar o diferente, mas se assim é, então que bom que elas existem).
Mas a verdadeira batalha é contra o nosso próprio preconceito sobre questões que não sabemos exatamente como funcionam, embora nos sintamos no direito equivocado de julgá-las.
Contra isso, o antídoto: informação. Sem mito, sem lenda, contado por quem vive na prática.
Então, no grupo de discussão Maternidade Consciente, surgiu a ideia de uma postagem coletiva sobre o tema, onde diferentes mulheres – muitas das quais sequer assim nomeiam suas práticas – contariam suas experiências conectadas, ligadas, empáticas de criação de filhos.

Criação com apego: mais amor, menos preconceito – mulheres comuns contando histórias de amor.

Então eu escolhi esse dia para postar as respostas completas à jornalista Danielle Nordi.
Sobre minha experiência de amor e de cuidados com minha filha? Esse blog é inteiro sobre isso. Ele foi ressignificado justamente por essa experiência. Foi porque eu escolhi intuitivamente essa forma de cuidados que mudei ao ponto de ser quem sou hoje. E foi só por isso que passei a estudar o assunto.
Eu não sabia dessas coisas quando senti a força da conexão, do amor e da vontade de cuidar da minha filha de uma forma mais presente, mais vinculada. Mas ao vivê-las e conhecê-las cada dia mais e ao unir os conhecimentos sobre psicobiologia e comportamento ao que que ia observando empiricamente, não restou qualquer dúvida: esse era o nosso caminho.

O termo “Attachment Parenting” vem sendo traduzido como “criação com apego”. Você concorda com essa tradução? 

A tradução “criação com apego” dá margem a interpretações equivocadas, já que vivemos numa época em que “apego” está relacionado mais aos bens materiais que à sua conotação emocional ou psicológica. A expressão se relaciona a uma forma de cuidado com os filhos que leva em consideração a teoria do apego, como proposta pelo psicólogo, psiquiatra e psicanalista John Bowlby – depois recuperada pelo Dr. William Sears, mas anterior a ele – que a propôs para explicar como acontece a formação dos vínculos entre o bebê e seu principal cuidador e quais as implicações da forma como esses vínculos foram construídos – ou não foram – para a vida futura da criança.

O importante é deixar bem claro que a expressão “criação com apego” é, na verdade, apenas uma denominação nova para algo que é antigo, e que sempre esteve presente em muitas culturas sem que houvesse necessidade de se nomear. Ou seja, não é algo que foi criado por alguém, são práticas que vem sendo utilizadas por pessoas ao redor do mundo desde tempos antigos, mas que foram agrupadas sob esse nome.

O que é a criação com apego? É um método ou um conceito? Existem regras?

A criação com apego nunca será um método. Ela não é um manual, não possui regras, não é um guia, nem uma técnica que ensine criação de filhos. É fácil entender o porquê de se perguntar se ela é um método: o que mais vemos hoje são métodos, guias e técnicas sendo vendidas na tentativa de se ensinar às famílias como criar uma criança, como ensiná-la a dormir, como treiná-la para que se comporte como a sociedade espera que ela se comporte. A criação com apego é um conceito amplo que envolve, sobretudo, a criação de pessoas seguras, autoconfiantes e empáticas, baseada no respeito aos comportamentos inatos da criança – aqueles que ela demonstra sem precisar aprender, como chorar quando não se está satisfeito com algo, desejar constantemente o contato físico ou visual, tocar, sorrir – e na proximidade física e emocional com a mãe (ou o principal cuidador). Se nós tivermos sempre em mente que muitas pessoas criam seus filhos assim intuitivamente, sem precisar aprender ou ler nada sobre isso, fica fácil entender que não existem regras ou técnicas. É, apenas, o respeito às necessidades naturais de um bebê, de uma criança, permitir a ela que crie o vínculo de maneira inata e espontânea, sem limitações impostas por convenções
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Levando em consideração o conhecimento atual da neurociência, quais os benefícios para a criança e para a mãe?

Hoje já se sabe que o grau de ligação e afeto recebido na infância é fator decisivo na constituição das personalidades, na capacidade de adaptação do indivíduo a diferentes situações e em suas respostas ao estresse. Quando o psicólogo John Bowlby divulgou a teoria do apego, ainda na década de 50, sugerindo que a privação materna (ou do principal cuidador) durante a infância poderia levar ao desenvolvimento de adultos deprimidos ou hostis ou com problemas de relacionamento, muito pouco ainda se conhecia sobre como o cérebro processava a depressão, a ansiedade e outros transtornos afetivos. Mas com o tempo, pesquisadores começaram a divulgar resultados de pesquisas comportamentais com primatas mostrando que o rompimento da ligação entre mãe e filhote levava a comportamentos violentos e agressivos no primata adulto. Naquela época, quase tudo o que se sabia a respeito da influência do cuidado parental sobre a prole na idade adulta era experimental. Mas hoje a neurociência tem condições de mostrar onde e como algumas mudanças acontecem nas pessoas em função do tipo de cuidado que recebem. Estudos internacionais recentes mostram, por exemplo, que o cuidado materno afetuoso e presente na infância leva ao aumento de uma estrutura cerebral chamada hipocampo, envolvida no processamento da memória e do comportamento emocional. Juntamente com outros estudos, isso mostra que existe, realmente, uma ligação entre as experiências afetivas que a criança vive na infância, a forma como seu cérebro se desenvolve e, consequentemente, o comportamento que apresenta na idade adulta. Obviamente não se pode excluir a genética do indivíduo, mas isso mostra como o ambiente em que uma criança vive é capaz de alterar sua neurobiologia a ponto de influenciar seu comportamento. Se a qualidade do afeto e do cuidado que as crianças recebem na infância é capaz de moldar seu cérebro, de forma que em sua juventude e idade adulta tenham maiores chances de uma vida emocionalmente saudável, a criação de filhos de maneira afetuosa, conectada e apegada – utilizando aqui a concepção de apego utilizada por Bowlby – só traz benefícios não só a essas crianças, mas às famílias nas quais se inserem. Mas esses são benefícios do ponto de vista neurocientífico, embora muitos outros benefícios sejam vistos no cotidiano das famílias que buscam criar seus filhos dessa maneira, sem que haja necessidade de qualquer conhecimento teórico. Pelo contrário. Famílias que buscam uma forma mais apegada ou ligada de criação não o fazem, geralmente, por suas bases científicas, mas pelo que representa em termos de resultados práticos no dia-a-dia, em termos da tranquilidade e harmonia que podem vivenciar.

Psicologicamente, a criança fica mais segura? Se sente amparada? Se torna uma criança mimada, necessariamente?

Sim, crianças criadas dessa maneira tendem a ser mais seguras, justamente por se sentirem sempre amparadas e por saberem que suas necessidades são prontamente atendidas, sem que haja barganha. Vamos analisar o exemplo da criança que é deixada chorando no berço para que aprenda a dormir sozinha. Nesse caso, seu comportamento inato – o choro – não é respeitado como sinalizador de que ela está se sentindo desamparada ou insatisfeita. Ao ser deixada chorando, ela não aprende que pode dormir sozinha. O que ela aprende é que não adianta chorar – seu único mecanismo de defesa até então – porque sua mãe não vai atendê-la. É o “desamparo aprendido”: aprende-se a se sentir desamparada. Existe um teste neurobiológico que leva exatamente esse nome e que é utilizado para testar drogas antidepressivas. Por que? Porque já sabemos que o desamparo persistente leva a comportamentos de anedonia, que é a incapacidade de sentir alegria, uma espécie de indiferença por estímulos que seriam interpretados como bons. E esse é considerado um degrau anterior à depressão. Ou seja, mais uma vez a neurociência mostra como sentir-se desamparado e inseguro pode levar a comportamentos patológicos.Sobre se a criança pode se tornar mimada: respondo na próxima pergunta, por achá-las interligadas.

Quando entramos em contato pela primeira vez com o termo e com alguns texto, temos a impressão de que a criação com apego nada mais é do que dar à criança tudo que ela pede, tudo que precisa. Daí vem uma noção de que a criança vai “ter tudo” e limites não farão parte da vida dela. O que isso tem de verdade? Como a questão do limite é trabalhada na criação com apego? Existem castigos, punições? 

Limite pode ser interpretado como “saber até onde vai seu espaço e onde começa o do outro” ou “respeitar os anseios dos outros” – e aí entra a questão anterior, do ser ou não “mimado”. Existem diferentes formas de se ensinar uma criança a respeitar seus próprios limites e os dos outros. Entre essas diferentes formas está a forma autoritária, baseada numa relação de poder entre o mais velho, que sabe mais, e o mais novo, que sabe menos. Essa forma, geralmente, ensina o “não” pelo “não” e não raro ouvimos, para a pergunta “Por que não, mamãe?” a resposta “É não porque estou dizendo que é não”. Isso não ensina limite. Isso ensina autoritarismo e medo. A criança continua sem saber o porquê do não, o que gera frustração e ansiedade. Se queremos que a criança cresça segura e sentindo-se próxima da mãe e do pai, é necessário respeitá-la como pessoa, e isso passa por questionar a nós mesmos o porquê dos “sins” e dos “nãos”, para que sejam bem empregados, e explicar a ela esses mesmos motivos. Se a criança quer algo e os pais julgaram por bem não permitir, explicar “Não, filho, porque isso pode ferir seu amigo, ou pode ferir a si próprio, ou porque você não precisa agora, você já tem, ou porque a mamãe não pode comprar agora” é respeitá-lo como indivíduo, como pessoa capaz de compreender. Sem menosprezo por sua capacidade de compreensão. Isso ensina respeito, proximidade, disponibilidade em ouvir o outro. Se ele vai chorar? Pode ser que sim, o choro é natural e inato, não é patológico como se acredita ser, não precisa ser combatido a todo custo. O choro desamparado sim, é prejudicial, mas não o choro como manifestação natural. E aí entra mais uma vez a forma afetuosa
: o respeito ao choro, o entender que ele está chorando porque não teve o que queria e que, melhor do que fazer o choro cessar com a concessão do que se quer apenas para que cesse, é ampará-lo em seu choro e mostrar compaixão, compreensão por aquilo que ele está sentindo.
Ou seja: agindo assim, ensina-se não somente os limites, mas a ouvir e ser ouvido, a respeitar e ser respeitado.  Não se pode confundir limites com autoritarismo, se quisermos criar crianças seguras e conectadas com seus pais. O primeiro, liberta. O segundo, aprisiona.Pensando assim, na questão do respeito à criança e seus anseios e na adoção de posturas compreensivas e não autoritárias, torna-se fácil compreender porque esse conceito de criação exclui totalmente a possibilidade da punição física, moral ou psíquica. 

Como se poderia explicar para pais leigos no assunto porque a criação com apego diz para você fazer o contrário do que todo mundo faz atualmente? O conceito de criação de filhos atual está errado ou simplesmente ultrapassado?

Achar que atualmente exista um único conceito de criação de filhos é errado. Existem múltiplas formas de se criar filhos, que, inclusive, interagem entre si. Cada família escolhe uma forma que é a mais afim aos seus valores, crenças e particularidades. Mas da década de 60 para cá, vem-se estimulando cada vez mais o individualismo, a desconexão, a separação precoce, e que faz sentido quando analisada do ponto de vista histórico, social e econômico. As pessoas estão cada vez mais envolvidas com seus trabalhos, com suas necessidades individuais, com a realização de sonhos e anseios particulares, com o acúmulo de bens materiais que lhe dão a (falsa) sensação de segurança. Para isso, saímos de casa cada vez mais cedo, voltamos cada vez mais tarde e não raro precisamos trabalhar também às noites e aos finais de semana. As relações sociais mais fortes e rotineiras têm sido aquelas que excluem a presença física e a substituem pela mediação da máquina. Nesse contexto, que é hegemônico e fortemente influenciado pelas sociedades industriais mais avançadas, não sobra muito tempo para o cuidado ativo com as crianças, que logo precisam aprender a lidar sozinhas com seus anseios – seja na hora de se alimentar, dormir ou receber afeto. Então apressa-se o nascimento (muitas vezes encarado com produção em série), apressa-se o desmame quando ele é possível (ou nem há o incentivo por seu início), apressa-se a separação física da criança e dos pais, apressa-se a pseudo-socialização em substituição à presença familiar, não se valoriza o choro nem o que representa (que é encarado como vilão), se diz “sim” quando se queria dizer “não” e “não” quando se queria dizer “sim”.
Então, vista por esse ângulo, a criação com apego é, na verdade, o retorno a uma criação mais presencial, ativa, conectada, como era mais fácil de ser observada antes da frenética busca pela acumulação de bens materiais, enquanto os bens emocionais foram sendo deixados de lado.Ou seja: a forma como as crianças vêm sendo criadas atualmente tem contribuído para o que hoje todos chamam de “crise mundial de valores”. Se concordamos com isso, então concordamos também que para mudar essa crise, é preciso mudar os valores que são passados às crianças desde seu nascimento. Se queremos um mundo melhor para nossos filhos, devemos também querer filhos melhores para o mundo, porque uma coisa depende da outra. E não se cria filhos melhores com base no autoritarismo e na negação de si.A criação com apego é uma alternativa à forma hegemônica de se viver, atualmente. 

Para conseguir levar esse estilo de vida, a mãe precisa necessariamente ficar em casa ou ela pode trabalhar fora? Como fazer no intervalo de tempo que ela não está próxima da criança?

Como dito anteriormente, a criação com apego não subentende regras, normas, método. Por ser um conceito amplo, permite as mais diferentes possibilidades. É possível criar filhos com apego tendo dois pais que trabalham fora, dois pais que trabalham em casa, pai que trabalha fora e mãe que trabalha em casa, pai que trabalha em casa e mãe que trabalha fora, todas as possibilidades.
E se a criação com apego busca criar pessoas mais seguras e conectadas com seus pais, ainda que eles não estejam presentes em alguns momentos do dia, ela se sentirá segura. Principalmente porque sabe que eles estão sempre emocionalmente disponíveis a ela. Agora, focando na mãe. Para aquelas que precisam continuar trabalhando fora, seja para gerar renda, seja para se realizar como mulher profissional, a criação com apego oferece um alento, um descanso, um apoio. Aderir a práticas que só aumentam o vínculo, que envolvem presença física afetuosa, que implicam em conexão, em estar sempre ao alcance dos filhos nos momentos que se está em casa, só vem ajudar a essa mulher e a essas crianças, valorizando o tempo de que dispõem juntos. Ou seja, acreditar que a criação com apego é algo ao qual somente uma mulher que abdique de seu trabalho, ou que o transfira para dentro de casa, pode realizar, é um grande engano.Inúmeros são os casos de mulheres que viram na criação com apego um alento para suas angústias como mães. Mulheres que, ainda que tenham tentado aplicar técnicas ou métodos com os primeiros filhos, puderam experimentar os benefícios da criação com apego com o segundo ou terceiro filho. Mulheres que, superando preconceitos, respeitaram mais seus anseios como mãe, rejeitaram técnicas anteriormente utilizadas, viram seus filhos dor
mindo melhor, viram bebês mais calmos, crianças mais seguras, viveram menos angústias e, em grande parte das vezes, se reencontraram com suas próprias mães. O que também se vê com frequência são mulheres que praticam a criação com apego sem nem se darem conta, dizendo, apenas, que “seguem seu coração”.

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