Tenho uma personalidade ansiosa e um tanto controladora. Antes de fazer qualquer coisa na minha vida, eu imagino como será aquela coisa, penso nos detalhes, no que pode dar errado, no que eu preciso que dê certo, visualizo os caminhos para alcançar o que eu quero e chego até a imaginar a derrota de não conseguir – acho bom estar preparada pra tudo.

Não foi diferente quando resolvi ter uma vida sexual. Eu tinha 15 anos, um namorado por quem eu estava apaixonada e, na minha cabeça, ele seria um cara legal pra começar (e foi mesmo). Fui ao ginecologista sozinha, peguei a receita da pílula para não engravidar como moça responsável que eu era e transamos. Tudo ótimo.

Assim, em poucas linhas, parece ótimo mesmo, mas tem um erro grave aí, erro este que eu não previ – eu não tinha como prever – e só fui descobrir 16 anos depois. Essa pílula, tão aparentemente segura e com efeitos tão pouco explicados durante a consulta médica, me fez um mal enorme. Depois de tanto tempo de consumo sem interrupção, a pílula que eu tomei está relacionada aos dois episódios de colestase obstétrica que eu tive, que colocou meus dois filhos em risco dentro de mim; inclusive um deles nascido prematuro, de uma cesárea que eu não queria. E, de brinde, a proibição, pela minha atual médica, de tomar hormônio pro resto da vida – “Você pode ter complicações hepáticas crônicas”. Complicações hepáticas crônicas?! Oi?

Por que isso não foi explicado pra mim lá atrás, quando eu resolvi começar a minha vida sexualmente ativa? Alguma de vocês, aliás, sabe os riscos de tomar uma pílula anticoncepcional? Vocês sabem como funciona o corpo de vocês e como ele reage a esse tipo de medicamento? O médico de vocês explicou? O colégio ensinou? Suas famílias sabem e informaram a vocês?

Eu acredito que a maioria não. E acredito que não é porque a gente esteja vivendo numa teoria da conspiração malvada, mas em determinado ponto, sim, até que estamos. Não interessa saber. Pra não engravidar, você fecha a perninha e se comporta como mocinha de valor, só dá quando tiver um namorado de respeito, toma a pílula e não pergunta nada pra ele, nem pra ninguém, por favor, que isso é feio. Quando você estiver bem bonitinha e casada e quiser ter os filhos, até pode, mas não pode pensar muito nisso não, tá? Relaxa, que engravida.

O tempo passou e eu cumpri exatamente esse script acima: casei e quis ter os filhos. Como já tinha o hábito de registrar as minhas vivências pessoais em blogs, achei que era legal contar um pouco sobre como é a vida de quem está tentando ter um filho – afinal eu tinha me tornado uma “tentante”. E aí eu descobri todo um mundo de tentantes que habitavam a vida online e compartilhavam muitas experiências. Foi lindo e foi revelador.

A tentante pode ser uma mulher muito sozinha, pois ela vive no limbo – nos mais diversos níveis que vocês podem imaginar. Ela é esvaziada de valor e de representatividade. Uma tentante não é uma mãe, embora já entenda muito de maternidade. Uma tentante não é uma grávida, merecedora de mimos e olhares carinhosos. Uma tentante não tem filhos, ora! Ela não sabe de nada, portanto. Uma tentante não tem seus anseios e desejos ouvidos, seu tempo nesta condição pode ser de apenas um mês (um ciclo, sortuda!) ou de anos de frustrações e vazios imensos em testes de farmácia negativos. Ninguém tem paciência ou empatia com a mulher que sonha esse sonho tão grande.

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Voltando à minha experiência: ao longo da vida, antes de ser mãe, fui fazendo alguns exames: esses preventivos e ultrassons que ninguém nunca me explicou para quê catzo serviam. Eu, muito bem treinada e moça de família, também achei por bem não perguntar nada. Só sei que muitos laudos citavam uns “cistos” e os médicos falavam pra eu tomar a pílula, que ficaria tudo bem. Tomei, vocês já sabem disso. Depois me questionei sobre o tamanho dos ciclos – todo mundo menstruava depois de 28 dias? Não, mas toma a pílula que você vai menstruar sim. “Menstruar”, rá. Eu não sabia que aquela menstruação era artificial. Que meu corpo não tinha produzido nada ao longo do mês.

Mas a pílula trazia menos espinhas, menos inchaço e menos cólicas, olha que bom! Sem o remedinho, você não funciona direito, eles dizem. Você fica feia, inchada, espinhenta e com cistos, sabe lá o que cistos sejam. Então a boa era tomar a pílula e ser adequada. Sem espinha, sem curvas “a mais”, sem TPM, sem ciclos, sem menstruação. A moça perfeita, praticamente a barbie plástica, sem vida, padronizada, que agrada todo mundo.

E aí foi se construindo para mim o que acontece com muitas (todas?): o fantasma do corpo defeituoso. Não só pela pílula, é claro, mas por todo o contexto que envolve a vida de uma mulher. Ela é feia, ela está errada e ela não sabe funcionar sem a ajuda externa, especialmente de homens, hétero, brancos (se forem médicos, melhor ainda). Eu me convenci de que o controle que eu tanto prezava ter estava na mão de outros. O controle, na verdade, nunca esteve nas minhas mãos.

Foi quando eu finalmente abandonei a pílula e comecei a tentar engravidar que eu percebi tudo isso. Percebi que não tinha conhecimento sobre o funcionamento do corpo, que não sabia quantos dias durava meu ciclo, eu não sabia se eu estava ovulando, se poderia ovular, se aqueles cistos estavam me atrapalhando, que dias eu deveria ter relação sexual, quantas vezes por mês eu deveria ter relação, o que eu poderia fazer para ajudar meu corpo a funcionar como eu queria. Eu não me conhecia e, pior, eu não acreditava em mim. Ainda mais porque, quando eu relatava tudo isso para pessoas próximas e mesmo para os médicos, eu ouvia a clássica e odiosa frase “Relaxa! Você está pensando demais nesse assunto! Esquece isso que você logo engravida”.

Mas olha. Alguém me conta se existe algum fenômeno biológico que acontece quando a mulher está ansiosa que a impeça de ter seu óvulo fertilizado por um espermatozoide? Até onde eu sei, a ansiedade está intimamente ligada ao medo do desconhecido, então não é possível que conhecer o meu corpo possa me trazer mais ansiedade. E vou além: e daí se eu ficar mais ansiosa? Por que essa sociedade tão controladora e castradora se sente no direito de determinar quando eu tenho que sentir isso ou aquilo? Por que não podemos viver a plenitude das coisas?

Pois eu acredito que tentar ter um filho é uma coisa muitíssimo séria. A mulher que tem o privilégio de planejar a chegada de um bebê tem, no mínimo, a responsabilidade de pensar sobre o assunto. Uma e outra vez, sim. Mesmo que a tentante ainda não seja mãe, ela sabe perfeitamente que a decisão de ter um filho é capaz de mudar completamente a vida dela. E, mesmo sabendo disso, ela aceita a missão. Ela abraça a missão.

Então a grande virada na minha vida veio quando eu decidi que eu tinha voz. Meus anseios, meus medos, meus desconhecimentos, tudo isso merecia ser validado. Comecei a perceber que conhecer o meu ciclo menstrual e meu próprio corpo eram apenas um primeiro passo para o meu empoderamento pessoal, para evitar a excessiva medicalização da vida e para começar a construir uma maternagem mais ativa e – por que não? – mais sensitiva e mais natural. Uma vez que você consegue viver sem tanto remédio e orientação externa, é possível se ouvir mais, se entender mais e melhor.

Acredito que, a partir do momento que a mulher conhece e confia no próprio corpo para engravidar, ela começa a construir as bases para uma mãe que faz escolhas bem informadas. Ela confia no processo natural da gravidez, ela consegue pensar sobre um parto respeitoso, ela acredita na capacidade de nutrir o filho através da amamentação, ela tem a noção de que não é necessário medicar cada febrinha do filho, ela sabe dos benefícios de uma criação afetuosa e por aí vai.

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Toda mulher tem o direito de se conhecer, de saber como são seus ciclos, como ela pode se preparar para uma gravidez, de planejar sua família. O Ministério da Saúde brasileiro possui uma cartilha (1) que explica detalhadamente os métodos de planejamento familiar, inclusive os que mais sofrem preconceitos por parte dos médicos (e dos desinformados em geral), como a medição da temperatura basal e a observação do muco cervical para definir o período fértil da mulher (que pasmem: nem sempre é no meio do ciclo!). Essa cartilha é muito interessante e corrobora com muito do que estou falando (e tive que descobrir praticamente sozinha):

– Direito reprodutivo é o direito das pessoas decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas. Direito a informações, meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos. Direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, imposição e violência.

– O planejamento familiar é um direito sexual e reprodutivo e assegura a livre decisão da pessoa sobre ter ou não ter filhos. Não pode haver imposição sobre o uso de métodos anticoncepcionais ou sobre o número de filhos. O planejamento familiar é um direito das pessoas assegurado na Constituição Federal e na Lei n° 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regulamenta o planejamento familiar, e deve ser garantido pelo governo.

– É importante que homens e mulheres conheçam o funcionamento do seu corpo. Esse conhecimento os auxilia no controle da sua capacidade reprodutiva e ajuda a entender melhor como agem os métodos anticoncepcionais, de modo que possam planejar a gravidez, quando ela for desejada.

Ufa, eu não estava louca, até o Ministério da Saúde concorda comigo. Então, por que será que não é bom eu me conhecer? A quem interessa isso? Vamos pensar?

Primeiro de tudo, não interessa que a mulher saiba de nada. Se ela sabe, ela começa a questionar o saber alheio, principalmente o saber médico, este tão endeusado. E isso é, no mínimo, ousado e indesejável. Quanto mais sabemos sobre nós mesmas, menos precisamos de remedinho, de indutor, de consultas no especialista. Quanto mais sabemos sobre nós mesmas, melhor sabemos quando é a hora de intervir, se for o caso. Quanto mais sabemos, mais nos apoderamos das nossas decisões, dos nossos corpos.

Se você acompanha seu ciclo, por exemplo, e reparou que está ovulando tarde demais e sua fase lútea é curta, saberá conversar sobre isso com o médico e decidir por alguma intervenção ou não (esse foi o meu caso, aliás e eu decidi não intervir – engravidei no sexto ciclo de tentativas). Se você não prestou atenção em nada disso, é capaz de demorar um monte pra engravidar, chegar no médico desesperada e ele “te salvar” com medicações milagrosas – ou te mandar pra casa com a orientação de “relaxar”.

Quando a mulher detém a informação, não sobra nada pro marido, pro namorado, pro pai, pro transeunte palpiteiro. Se ela tem a informação, ela tem o poder (e os machista tudo treme!). A violência obstétrica, problema tão marcante e atual, se baseia nesse enfraquecimento do poder feminino, afinal. Só que essa violência, pelo que vi ao longo da vida, começa muito antes do parto, do filho. Começa minando a autonomia da mulher desde o início da sua idade fértil, quando lhe é receitada uma caixa de pílulas anticoncepcionais sem nenhum esclarecimento sobre os riscos, sobre a sua sexualidade, sobre os seus direitos reprodutivos. Foi o que aconteceu comigo.

Existem diversas maneiras de engravidar: no susto, em um mês, em muitos meses, deixando rolar ou planejando – e inclusive por fruto de uma abominável violência. Eu escolhi, pude e quis planejar; eu escolhi e quis (o) saber. Eu preferi me conhecer, me entender e nunca relaxei. Eu me permiti. E eu me empoderei. Mas não existe uma forma correta, é claro. O que existe é o direito à informação e o poder que vem com ela. Não perca a oportunidade de conhecer melhor a pessoa mais importante da sua vida: você mesma.

Referências:

Cartilha de Direitos sexuais, direitos reprodutivos e métodos anticoncepcionais do Ministério da Saúde:

Manual de Assistência ao Planejamento Familiar:
Manual 1
Manual 2

Com a carinhosa inspiração e colaboração de Daiana Almeida, companheira da vida de tentante, de gravidez e puerpério.

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