Uma hipotética pessoa se sente mal. Indisposição e falta de ar associada a uma forte arritmia e a um formigamento nos dedos da mão esquerda. Ela acaba de ter um súbito e intenso mal estar enquanto dirigia e, como o quadro anda se repetindo há algum tempo, decide ir ao atendimento médico. 
Objetivo do jogo: descobrir o que está causando as indisposições repentinas, a falta de ar e o formigamento.
Plantão. Estudantes do sexto ano de medicina, residentes, uma sala de espera cheia e um único médico supervisor. Volte doze casas e aguarde sua vez.
A enfermeira chama. Apresenta-se, diz que é enfermeira, que se chama Andreia* e que vai fazer uma triagem. Ponto. Que bom saber quem é a pessoa dentro do jaleco que vai te atender. Pule três casas.
Pergunta os sintomas, mede pressão, frequência cardíaca e saturação de oxigênio. Como os sintomas são associados a quadro cardíaco, solicita à paciente que espere ali nas cadeiras em frente à sala de consulta, enquanto ela passa o caso para um médico. Você acaba de pular os outros peões que estão à sua frente, embora estejam jogando há mais tempo e você não saiba se precisam tanto quanto você, ou se estão na última vida do jogo. Jogo tenso, esse.
A pessoa hipotética senta-se na sala de espera e aguarda alguns minutos.
Chega o médico. Anuncia o nome da pessoa em voz bem alta. Ela se identifica, se levanta e ele pede para segui-lo. Entram numa salinha. Ele diz: “Maria, né?”. A pessoa deixa de ser hipotética e se torna real. “Então, Maria, o que você tem?”.
E começa o diálogo de Maria com a pessoa hipotética, que agora está dentro do jaleco branco. Jogue os dados e torça.
– Sim, sou Maria. E você?
– Eu sou o médico que vai lhe atender – Volte ao início do jogo.
– E seu nome, qual é?
– William.
– Oi William. Você é médico ou é estudante?
William está, agora, um pouquinho inseguro… Titubeia em jogar os dados.
– Sou estudante ainda.
– Ah, tá. 
– E você, Maria, o que você tem? – Volte ao início do jogo novamente.
– Não sei, Wiliam, é o que eu gostaria de saber com a sua ajuda. Você quer saber o que estou sentindo, é isso?
– Isso, o que você está sentindo?
– Tenho sentido episódios repetidos de arritmia extra-sistólica que tem me causado mal estar. Eu sempre tive isso, mas ultimamente eles têm estado mais fortes e frequentes, e há duas semanas vêm acompanhadas de formigamento nos dedos da mão esquerda e falta de ar. Tive um súbito mal estar relacionado a isso pouco antes de decidir procurar atendimento agora.
– Uhum. Sei – anotando.
Anota. Anota mais um pouco.
– Pratica atividade física? – pergunta sem olhar para Maria.
– Não mais, infelizmente, porque um dos ligamentos do meu joelho esquerdo não existe mais e eu preciso fazer uma cirurgia, o que fica difícil quando se tem uma filha que está dando as primeiras corridas.
– Sei. Fumante?
– Ex.
– Há quanto tempo parou de fumar?
– 1 ano e 8 meses + 9 meses.
– Uhum.
E anota.
– Está estressada?
– Nada além do que estou acostumada há cerca de 2 anos e meio e totalmente administrável. Sem perdas importantes, sem muitas situações traumáticas e, comparativamente com outras pessoas, até que estou bem.
– Sei. Sono?
– Como está o seu padrão de sono?
– Eu durmo geralmente das 4 às 10 da manhã. Mas durmo bem, profundamente. Meu padrão de sono é diferente da maioria das pessoas, porque sou muito noturna.
– Uhum. Sei.
Anota. Um tempo depois.
– Olha, a mim parece claro que você tem um transtorno de ansiedade.

– Oi?!
– Parece que você está com um transtorno de ansiedade.
– Opa, perdi alguma coisa? Por que você acha isso?!
– Os sintomas que você me relatou são todos relacionados.
– Mas se eu tivesse cheirado cocaína ontem, por exemplo, não poderia gerar uma arritmia, uma dormência, coisas assim?
– Mas você usa cocaína?! – agora William olha para Maria.
– Não, William. É um exemplo.
Cara de alface.
– E se eu tomei muito café, muito chá estimulante, ou se estou fazendo uso de remédio de emagrecimento tipo anfetamina, não poderiam ser efeitos colaterais?
Cara de alface.
– E se eu realmente estou com um problema cardíaco? Não poderia gerar esses mesmos sintomas?
– Mas você não relatou nada disso.
– Mas você também não me perguntou, não é? – diz Maria, muito cordialmente.
A cordialidade de Maria, que teoricamente deveria estar numa situação de fragilidade, uma vez que estava se sentindo mal, despertou a sensibilidade em William.
– Tem razão, Maria. Vamos ali na maca que vou fazer um bom exame em você.
Mediu frequência cardíaca prolongadamente, avaliou os sintomas neurológicos, respiração, força muscular, pupilas, pressão. Anotou tudo e disse:
– Aguarde só um pouquinho que vou ali conversar com meu supervisor.
Demorou bastante, talvez pela existência de apenas um supervis
or no plantão. Voltou.
– Olha, Maria. Eu fiz uma boa anamnese (todo mundo sabe o que é anamnese? William acha que sim) e seus sinais vitais estão bons. Não consegui verificar uma extra-sístole, mas talvez porque não seja algo que aconteça constantemente e, sim, episódios isolados, como você mesma relatou. Sua pressão está boa, embora a diastólica e a sistólica realmente estejam muito próximas (todo mundo usa, todos os dias, os termos sistólica e diastólica? “Oi Seu Vadinho, como é que tá a diastólica, tudo bem?”). Frequência cardíaca normal, sinais neurológicos normais, boa saturação de oxigênio. Aparentemente está tudo perfeito com você. O que eu te recomendo é fazer um acompanhamento com um cardiologista, pra tentar descobrir algo que esteja oculto. A não ser que você queira fazer um eletro agora, mas o ideal seria fazer um teste de esforço. Acredito que o eletro não vá revelar nada agora, já que te examinei e não deu alteração no momento. É como eu te disse, Maria. Aqui é para casos de emergência e eu não tenho condições de te dizer com certeza o que pode ser. Eu fiz uma boa anamnese e não constatei nada.
– Mas agora estou confusa. Se você fez uma boa anamnese e não constatou nada, quais aspectos da sua anamnese te permitiram concluir que eu poderia estar com um transtorno de ansiedade, se você não me perguntou nada do que orienta o DSM, se eu não estou sequer alterada, se estou conversando com você bem tranquilamente, se a anamnese para esse transtorno é algo a ser feito durante várias consultas, se o diagnóstico diferencial envolve meses de sintomas, se aqui é apenas uma emergência que não te permite isso e se os sintomas de transtorno de ansiedade generalizada, ou qualquer um dos mais de 10 subtipos dela, não se verificam apenas por meio dos sinais vitais?
– Você é médica? – perguntou Wiliam, desconfiado.
– Não, não sou médica.
– E como sabe de todas essas coisas?
– Bom, você é médico – ou será – e parece que não sabe também, não é?
– Mas você tem informações detalhadas sobre isso, informações médicas.
– Médicas? Mas eu não sou médica.
– Quero dizer que não estou tratando com uma pessoa leiga.
 – E se estivesse? Eu poderia tomar diazepam, midazolam ou clonazepam se fosse leiga, numa boa?
– Não foi isso o que eu quis dizer…
– Mas o que eu quero te dizer, Wiliam, é que se eu aceitasse seu diagnóstico, você provavelmente me medicaria com algum ansiolítico, não?
– Talvez.
– Talvez? Eu arriscaria com certeza. Porque aí do seu lado direito está um banner com diferentes tipos de categorias de medicamentos, inclusive de ansiolíticos. Seria de se esperar que sim.
Ele dá uma risada.
– Sim, eu te medicaria. Não foi por isso que você veio até aqui?
– Não. Eu vim aqui pra que você me ajudasse a descobrir porque estou me sentindo mal, com sintomas cardíacos. E você me medicaria pra ansiedade sem nem saber a quantidade de café que eu tomei, ou se faço uso de psicoestimulantes, ou se meu pai é hipertenso, ou se minha avó paterna teve um ataque cardíaco. E eu iria embora com uma receita controlada. Passaria a tomar algo que alteraria toda a minha função mental, me sentiria estigmatizada por estar tomando um tarja preta e, além disso, continuaria com a arritmia, já que ela não é fruto de um quadro psiquiátrico.
– Mas também, se fosse, não seria um quadro psiquiátrico…
– Não?
– Não, seria emocional.
– Onde estão os critérios diagnósticos dos transtornos de ansiedade? Não estão no DSM? Manual de Estatística e Diagnóstico da Associação Psiquiátrica Norte-Americana? Então seria.
– Entendo o que você quer dizer, Maria – William corta o assunto – Mas é muito difícil pra gente, com o pouco tempo de que dispomos numa emergência, fazer uma anamnese perfeita e chegar a um diagnóstico preciso.
– E é mais fácil prescrever algo que vá me deixar calminha e vai mascarar os sintomas, não é?
– Mas é que as chances de acertar eram grandes.
– Chance de acertar? Você está testando hipóteses em mim?
Ele não se pronunciou mais.
– Wiliam, entendo perfeitamente a sua falta de tempo para tratar um paciente de maneira completa. Sei que você não dispõe aqui, agora, de recursos melhores. A sala de espera está cheia, você tem apenas um supervisor para compartilhar com mais dezenas de plantonistas e provavelmente está sob supervisão de outros estudantes, residentes ou afins, porque o ensino das últimas fases da medicina é assim hierarquizado mesmo. Mas olha, você está há pouco tempo de se formar. Não se esqueça de que nem sempre o mais fácil é o melhor. Não se esqueça de que são pessoas sendo atendidas. De que medicar é algo sério demais pra se fazer na base da tentativa e erro. Ainda que algumas pessoas só se sintam bem atendidas quando levam uma receita em mãos, lembre que isso implica em grandes riscos, quando a prescrição não é adequada. Imagine se eu fosse alcoolista e tomasse um benzodiazepínico?! O que me aconteceria?
– Mas você não me parece alcoolista.
– E com quem se parece um alcoolista?
– Não, não foi isso que quis dizer.
– Não vou mais tomar o tempo dos cidadãos que estão lá fora, Wiliam. Mas vou seguir sua recomendação e vou fazer um acompanhamento cardiológico sim. Mas faça também um acompanhamento. Sempre. Constante. Da sua prática. Porque a sua dedicação, interesse e vontade sincera de ajudar pode ser o melhor que uma pessoa pode estar recebendo naquele dia. E dizer a uma pessoa que ela tem um transtorno psiquiátrico é muito sério pra ser feito assim, à queima roupa, sem acompanhamento detalhado. Não é porque a epidemiologia te diz que tantos por cento da população vai desenvolver ansiedade, ou esquizofrenia, ou transtorno obsessivo-compulsivo em algum momento de suas vidas, que todo  mundo que entrar aqui com coração acelerado ou recolhendo pedacinhos de papel da sua mesa será um paciente psiquiátrico em potencial. Tem gente que pode, realmente, estar com um problema cardíaco; outros, podem ter um câncer escondido atrás de uma dor de garganta, que será medicada com antibiótico, vai passar, vai voltar e isso só vai atrasar o tratamento e aumentar suas chances de morte; outras, podem estar grávidas por trás de um sintoma de labirintite. Não sei você, mas eu conheço casos assim. Obrigada por seu tempo. Vou procurar um cardiologista pra entender porque dessa extra-sístole estranha…
Maria se levantou, estendeu a mão. Com cara de surpresa pela mão estendida, Wiliam a cumprimenta, e Maria vai embora. Pensando que deveria ter ficado em casa lendo as 20 páginas pra aula de bioética e tomando um chá de erva-doce. Enquanto isso, provavelmente, William se pergunta por que raios não prescreveu um antipsicótico pra essa louca que adentrou “fingindo que estava com arritmia extrassistólica só pra contestar sua autoridade médica” (Maria já ouviu isso, pasme…). Ou, na melhor das hipóteses, permanece problematizando sua postura enquanto futuro médico.
A caminho de casa, Maria conversa com seu companheiro sobre a banalidade do atendimento médico que as pessoas em geral têm recebido. E é quando sente mais um descompasso no coração e abrupta falta de ar.
Volte ao início do jogo.

*Os nomes utilizados não são os reais.

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