Nós tínhamos acabado de entrar no carro para ir para casa. Sempre que estamos juntas, conversamos sobre tudo, o diálogo não tem fim. Ela me conta o que aconteceu, o que assistiu, o que fez, o que leu, pergunta coisas sobre meus dias, a conversa é fluida e potente. Mas não naquele dia. Percebi que ela estava mais quieta que o normal, olhei para trás e a vi pensativa, com uma clara expressão de aborrecimento. Então, delicadamente, perguntei:

– Tá tudo bem, filha?

– Hmmm… Mais ou menos, mamãe.

– O que houve? Posso ajudar?

– Acho que pode.

– Então me diga, meu amor. Como posso te ajudar?

– Mãe, sabe aquela hora que a Sofia (nome não corresponde ao real) pediu que eu fizesse tal coisa?

– Sei, filha.

– Então. Eu disse “a gente vê”, mas na verdade eu queria dizer “Não quero fazer”.

– Eu percebi, filha. Percebi que você não queria fazer, vi que você não fez e ouvi você dizendo “a gente vê depois”. Por que você não disse que não queria fazer?

– Porque eu não queria magoá-la, mãe… Não queria que ela achasse que eu não gosto dela. E como eu também não queria fazer, então eu disse “a gente vê depois”. Mas a verdade é que eu não quero fazer e não vou fazer, mas não sei como dizer. Ela pode ficar chateada.

Esse tipo de diálogo é muito frequente entre nós. Minha filha (8 anos – e meio, como ela faz questão de dizer) consegue descrever muito bem as coisas que sente, mesmo que ela não saiba exatamente porquê está sentindo aquilo. E isso porque sempre dei espaço para que ela falasse sobre si, seus sentimentos, suas percepções. Então, continuei a conversa:

– Entendo, filha. Muito importante esse seu pensamento. Mais importante ainda foi você ter se respeitado e não ter feito algo que não queria fazer.

– Eu sei, mãe. Mas eu quero aprender a dizer pras pessoas o que eu penso sem magoá-las. Me ensina?

Aí bateu aquele desespero, né mores? Porque, não sei se todo mundo já sabe disso, mas nós não nos tornamos perfeitas apenas porque nos tornamos mães. Pelo contrário. A maternidade abre em nós a imensa possibilidade de olhar bem fundo no nosso próprio fundo – e às vezes vemos coisas que não gostaríamos de ver… Se estamos aqui tentando rever dores, hábitos e posturas é justamente porque vemos em nós coisas que não queremos que sejam passadas para frente, e estamos em busca de nos transformarmos.

E uma das maiores dificuldades das pessoas é, justamente, falar o que pensa sem magoar o outro. E isso porque a geração dos nossos filhos talvez seja a primeira que está sendo estimulada a refletir sobre o que pensa, o que gosta, o que sente e a falar sobre isso – e ainda assim, nem todos. A nossa geração e as anteriores ainda viveram sob o jugo do “criança não tem querer, criança não tem voz, quem manda em você sou eu, você vai fazer o que eu quero que seja feito e fim e engole esse choro”. E aí a gente cresce sem exercitar o diálogo, o argumento, sem saber mostrar os próprios pontos de vista. Quando não queremos fazer algo, de três, uma: ou silenciamos – prato cheio para uma série de condições psicossomáticas -, ou fazemos o que não temos vontade, o que nos traz uma série de frustrações; ou vomitamos coisas com agressividade quando o que queríamos era, somente, dizer: “Não gostei disso”, ou “Prefiro não fazer”, ou ainda “Acho que você está errado”. Mostrar argumentos para nossa opinião, então, é mais difícil ainda… É só olhar ao redor e ver quanta gente tem imensa dificuldade de comunicar seu pensamento de maneira respeitosa. É tudo na base da indireta, da acidez, da agressividade explícita e da maledicência – quando uma conversa franca e calma poderia ajudar a resolver, além de manter amizades e amores.

Eu sou uma mulher em constante transformação e reforma íntima, revendo minhas posturas, meu comportamento e com a autocrítica até meio descompensada, vivo procurando em mim mesma problemas e maus hábitos a fim de desconstruí-los – e isso é bastante doloroso, porque ser humano é isso aí, é só procurar que encontra. E sorte minha que faço terapia, pra conseguir balancear a crítica excessiva e também conseguir enxergar meus pontos positivos e crescimentos alcançados. Mas há até bem pouco tempo, eu não conseguia frear o sincericídio e dizia as coisas de maneira brusca, magoando as pessoas. De vez em quando ainda acontece, como todos nós, mas consigo ver, me desculpar e procuro estar vigilante para que não aconteça novamente. Treino árduo. Treino constante. Treino difícil. Um iron woman da autotransformação, eu diria.

E aí, como é que a gente, sendo tão falível, tão cheia de questões a serem resolvidas, vai ajudar as crianças quando elas pedem ajuda? A respostas a que cheguei é: sendo sincera, simples e objetiva, explicando da forma como a gente gostaria de ter sido ensinada. Então respirei fundo, me enchi de propriedade e respondi:

– Posso pensar sobre isso, filha? 

Ou seja, escapei lindamente… Afinal, mostrar que tem coisa que é preciso elaborar também é um ensinamento às crianças. É melhor refletir sobre algo do que responder qualquer coisa.

Mas ela é essa guria que não deixa nada escapar… Chegamos em casa, coloquei as compras no armário, preparei um lanchinho pra ela, sentei junto e nos 5 minutos do primeiro tempo, ela:

– Ok, mãe. Agora você pode me ensinar como eu posso fazer pra dizer pras pessoas que não quero fazer uma coisa mesmo que elas queiram que eu faça, sem magoá-las?

Filho é tipo curso online: está onde você estiver tentando te ensinar coisa mesmo quando você não quer ou não está preparada, uma loucura.

– Ok, filha. Vamos lá. Vou tentar te explicar, tá?

– Tá bom, mamãe, tô ouvindo.

– Eu penso que a gente precisa dizer os motivos reais com gentileza. Por exemplo: por que você não queria fazer aquilo?

– Ah, mãe, porque eu queria ficar com você, queria ficar junto com você, fazer as nossas coisas.

– Entendo. E por que você acha que isso iria magoar a sua amiga?

– Ué, porque pode ser que ela quisesse muito que eu ficasse com ela.

– Mas ela não é sua amiga?

– É.

– Se ela é sua amiga, você acha que poderia contar pra ela que queria ficar comigo no lugar de ficar lá?

– Acho que sim.

– Você acha que ela entenderia?

– Eu acho que sim.

– Então é isso. Dizer gentilmente “Sofia, eu não quero fazer isso porque quero ficar com a minha mãe, faz alguns dias que não fico com ela, estou com saudade”.

– Mas e se ela ficasse brava?

– Você poderia dar alguma alternativa, como: “Que tal fazermos isso no fim de semana?”.

– Gostei, mãe, acho bom, porque no fim de semana eu já fico mais com você mesmo. Mas e se ela não gostasse mesmo assim?

– Vamos supor que você já tenha explicado o motivo real pra ela. Nesse caso, você explicou pra ela o motivo?

– Sim.

– Você deu uma alternativa?

– Sim.

– Ainda assim ela ficou brava?

– Sim.

– É um problema seu, então?

– Não, mamãe.

– De quem é o problema de ficar brava, se você se esforçou pra explicar com sinceridade e gentileza?

– É dela, mamãe, que não me entendeu.

– E vai adiantar você fazer qualquer outra coisa, nesse caso?

– Não…

– Você estaria tranquila por ter dito a verdade e ter sido gentil?

– Estaria.

– Então é isso, filha. O máximo que a gente pode fazer precisa ser feito. Mas a gente nunca vai conseguir controlar tudo. Se ela ficar brava com você mesmo assim, talvez ela não tenha sido muito sua amiga… Ou talvez ainda não esteja tão crescida pra conseguir entender.

– É verdade.

– Que bom que você me entendeu, filha.

– Ô mãe, acontece isso com os adultos também?

– Todo santo dia, filha. É um inferno.

– E como você se vira?

– Não me viro. Ainda estou aprendendo também.

– Você sofre com isso, mãe?

– Sofro. Muito.

– Pois não devia. Afinal, se você respondeu com sinceridade e gentileza e a pessoa ainda assim ficou brava, o problema não é seu, mãe. É dela. 

Então é isso, senhoras e senhores. Vida de mãe é isso aí. É esse eterno tapa na cara por ver que estamos tentando criar as crianças para serem mais razoáveis, gentis, fortes e seguras que nós. Mesmo quando ainda estamos aprendendo a ser.

Ponto pra elas. E seguimos.

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.