Polêmica sobre a ideia de que meninos e meninas podem compartilhar banheiros na educação infantil chama atenção para dificuldade da sociedade avançar nas questões de gênero

Já na saída da escola para casa, meu filho Caetano pediu para retornar à sala de aula porque estava com vontade de ir ao banheiro. Do lado de fora, conversava com outra mãe enquanto o aguardava. Percebi uma demora e resolvi ir atrás para me certificar de que ele não precisava de ajuda. Quando entrei no banheiro – que fica dentro da sala e tem duas cabines sem porta, mas separadas por uma parede -, me vi diante de uma cena que instigou a pergunta que passei a investigar nas semanas seguintes: há ganhos ou perdas com a prática do banheiro misto na educação infantil? Era sexta-feira.

Em Belo Horizonte, o tema ganhou as páginas de jornais quando o pai de um garoto de 4 anos procurou uma rádio da capital mineira para dizer que seu filho tinha feito xixi na roupa porque a escola pública em que ele estudava tinha abolido a separação entre banheiro feminino e masculino. Membro do grupo Rede Cidadã de Pais de Família, o pai concedeu entrevistas para diversos veículose repetiu em todas elas que o filho se sentiu constrangido em dividir o banheiro com as meninas. Para ele, o modelo misto teria sido adotado na rede municipal com o objetivo de inserir o conceito de gênero nas diretrizes do Plano de Educação.

Pressionada a se manifestar após o episódio, a Secretaria Municipal de Educação de BH explicou que, com exceção dos banheiros usados por crianças de até 2 anos, nunca houve banheiros unissex nas escolas públicas da cidade e tudo não passou de um mal-entendido, já que as placas indicativas haviam sido retiradas apenas para manutenção.

Sabemos que, por pressão religiosa, a palavra ‘gênero’ foi retirada do Plano Nacional de Educação (PNE) em 2014 e que, neste ano, cada município brasileiro deveria aprovar seu texto. Assim, a divulgação da história resultou ainda na visita da Rede Cidadã de Pais de Família a outras casas legislativas de Minas Gerais. Mobilizados para garantir que a temática não seja incluída nas escolas públicas Brasil afora, católicos e evangélicos sustentam que tal conceito é uma questão ideológica e usam a expressão ‘ideologia de gênero’ para sustentar a argumentação.

‘Altar dos heterossexuais’

A verdade é que fui pega de surpresa [ou nunca tinha parado para pensar] que a questão do banheiro feminino e masculino não estava restrita ao direito das pessoas trans em usar ‘o lado’ com o qual se identificam enquanto gênero. E quando Laerte veio a público dizer que ‘banheiro é altar de heterossexual’ porque, segundo ela, já tinha sido expulsa tanto de banheiros masculinos quantos femininos desde que iniciou a transição de gênero em 2004, a ideia de sacralidade advinda da frase dita em entrevista se encaixa bem à polêmica levantada em Minas Gerais.

A noção de que menino e menina são diferentes se dá ainda na primeira infância (considerada aqui até os 6 anos), geralmente aos 4 anos, mas depende do contexto cultural em que a criança está inserida. A psicóloga e doutora em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Anna Cláudia Eutrópio B. D’Andrea, explica que essa diferenciação é um processo que vai se complexificando: parte do corpo e alcança comportamentos culturalmente atribuídos a cada um dos sexos.

Já a diferenciação no sentido de saber que “menino pode ser papai e menina pode ser mamãe”, segundo a psicopedagoga e psicanalista Cristina Silveira, tende a estar cognitivamente entendida até os 6 anos. No entanto, esse reconhecimento é inocente e comumente atribuído durante as brincadeiras que reproduzem a diferenciação de papéis referentes ao gênero.

Assim, junto com o conhecimento de que o corpo de um e de outro não é igual, começam a brotar os primeiros rótulos do comportamento de gênero. ‘Menino não gosta de rosa. Menina gosta de boneca. Menino gosta de carrinho. Menina não gosta de futebol. Menino não chora. Menina é fraca.‘ Se o foco é o presente, essa divisão limita a experiência de meninos e meninas.

(E aqui abro parênteses para lembrar que quando se fala em crianças, o mais comum é a preocupação com o futuro, como educá-las para que, na vida adulta, elas possam ser o que desejarem, que tenham coragem para seguir em frente, que saibam lidar de maneira saudável com as dores da vida, com as perdas inevitáveis. Que sejam fortes. No entanto, deveríamos olhar para a infância como o tempo que as crianças têm para ajudá-las a viver o que são. A infância deveria ser em si o tempo valorizado e não o tempo do investimento. Não o que pode vir a ser, mas o que se é).

Já se o foco da discussão é o futuro, família, escola e sociedade deveriam desejar um mundo de oportunidades iguais para homens e mulheres, sejam eles cis ou trans, e valorizar as relações entre diferentes identidades. Pensar sobre isso pode nos levar à conclusão de que alguns tipos de violência são socialmente aceitos e que a ideia de igualdade não é uma vontade coletiva genuína.

Para a psicopedagoga e psicanalista Cristina Silveira, em uma sociedade onde o comportamento separatista por gênero é instituído na rotina de cada um, a existência de banheiros mistos na educação infantil têm pouca validade para romper com os estereótipos e padrões de gênero. “Tal benefício na formação de meninos e meninas só seria efetivo se persistisse nas rotinas dessas crianças em todo o percurso escolar, nos ambientes familiares e sociais que incluem consumo, mídia, internet, publicidade até a fase adulta”, avalia. Uma ação única, isolada e pontual não se sustenta como ferramenta de transformação.

Cristina Silveira considera ainda que o uso conjunto do banheiro na educação infantil chama a atenção para uma prática que deveria ser estimulada nos vários contextos e níveis sociais, pois, segundo ela, o uso comum dos espaços requer o aprendizado do cuidado e do respeito pelo outro, sem distinções de sexo ou gênero.

Uma visão de fora

Maria Haider é dona de uma escola privada de educação infantil em Atlanta, nos Estados Unidos. Na ‘Crabapple Montessori School’, as salas de aula para crianças de 3 a 5 anos têm seus próprios banheiros. São dois e cada um com vaso sanitário, pia e porta. Ela conta que algumas professoras gostam de separar os banheiros de meninas e meninos “só por que os meninos às vezes se esquecem de levantar o assento da privada”. Outras não optam pela diferenciação já que, nessa fase, algumas crianças não conseguem esperar se o banheiro estiver ocupado. Assim, usam o que está disponível e evitam o que ela chama de ‘bathroom accidents‘ (ou xixi na roupa). Nesse caso, a opção nada mais é que uma maneira mais prática dentro da ‘logística’ do cuidado e atenção com as crianças pequenas dentro do ambiente escolar.

Juliana Pires é brasileira, publicitária e mãe de Lia, 8 anos, e Anitta, 1. Ela é casada com Paolo, um italiano, e desde que a filha mais velha nasceu ela vive no interior da Itália com a família. Ela fala que as filhas estão sendo criadas “no país mais tradicional que conheço”, que o valor à tradição é percebido em pequenas atitudes, da cultura à culinária, e que, apesar de o aborto ser legalizado, a homossexualidade é vista com certa dificuldade dentro do conceito de núcleo familiar. “Eu percebo que, quando o assunto é família, a ideia é faça o que quiser quando crescer, mas deixem as crianças sempre crianças, com pai e com a mãe”, relata.

A escola onde Lia estudou até os 5 anos segue o modelo de banheiro misto. “Todos usam o mesmo, que tem três vasos sanitários com pequenas divisões sem portas. Tudo muito tranquilo e natural”, conta. Já no ensino fundamental, se dá a separação.

Juliana diz que, de modo geral, as crianças são tratadas na Itália de maneira muito infantil até os 10 anos. “Por exemplo, os biquinis de meninas nunca têm a parte de cima porque é inútil”, detalha. Para ela, o banheiro é só um detalhe na vida das crianças e o problema é a importância que se dá na diferenciação de gêneros desde pequenos. “Criança deve ser criança e ter liberdade para descobrir, perguntar, vestir-se de princesa ou de pirata sem ter rótulos. Acho que podemos deixar a criatividade fluir e acho que elas viverão a sexualidade delas independentemente disso”, pondera.

Nivea Sorensen, 36 anos, é professora de inglês, mãe do Erik, 4 anos, e da Elena, 6 meses. Casada com um irlandês, a família mora em Dublin. Lá, a pré-escola termina aos 4 anos. Nessa fase, ela conta que o filho mais velho frequentou duas instituições diferentes e que, em ambas, os banheiros eram mistos.

Erik inicia agora em setembro o primeiro ano do ensino primário, que vai até os 12, e Nivea diz que o banheiro também é unissex e fica dentro da própria sala de aula. Ela conta, entretanto, que nesse caso, é uma particularidade da escola escolhida pela família e não uma regra. “Na Irlanda quase todo mundo frequenta escola pública independentemente da classe social. Mais de 90% dessas escolas públicas primárias são mantidas pela igreja católica e a maioria delas ainda hoje funciona separando meninos de meninas até a secundária”, conta.

Ela diz que encontrar uma escola fora desse padrão não é fácil, principalmente para quem vive em cidades do interior. “Para nós, no entanto, era fundamental, e desde o início sabíamos que queríamos nossos filhos frequentando instituições não religiosas e de maneira alguma convivendo em ambientes separados por gênero”, reforça.

Também nos Estados Unidos, uma escola em São Francisco aboliu recentemente as placas que diferenciavam os banheiros masculinos dos femininos para incluir crianças que não se identificam com as normas de gênero. A decisão da ‘Miraloma Elementary’ foi tomada a pedido de um grupo de alunos transgêneros e, em notícia publicada no Daily Mail, a direção afirmou que espera que essa seja a tendência no futuro. Apenas os banheiros utilizados por alunos da educação infantil e do ensino fundamental foram alterados e os sanitários têm apenas uma cabine. Ou seja, apenas uma criança pode usá-los de cada vez.

Tabu por quê?

Artigode autoria de Anderson Ferrari intitulado ‘Mãe! E a tia Lu? É menino ou menina? – Corpo, imagem e educação‘ ajuda a entender a razão de o compartilhamento de banheiros por meninos e meninas ainda ser motivo de discussão: “Se os seres humanos se comportassem unicamente a partir de seus impulsos biológicos, se as condutas consideradas masculinas e femininas fossem espontâneas, naturais e predeterminadas, não seria necessário educar tão cuidadosamente todos os aspectos diferenciais; bastaria deixar que a natureza atuasse por si mesma. Ao contrário, o indivíduo humano é capaz de uma gama variada de condutas que não estão determinadas no momento do nascimento”.

A escola

Na condição de um dos atores da educação e também da socialização dos indivíduos de acordo com os valores de cada comunidade, a escola pode e deve ser um espaço para se discutir diversidade e identidades. A psicopedagoga Cristina Silveira acredita que a escola é um local em que tais questões podem e devem ser problematizadas em suas implicações culturais e de gênero. “São inegáveis as funções normatizadora e sancionadora da escola. Nela, práticas de gênero aparecem como mais um recurso de controle social. Ao se esquivar de se discutir ou de intervir em situações como a do banheiro unissex, a escola também contribui para a perpetuação de comportamentos sexuais desiguais e injustos”, afirma.

A psicóloga e doutora em educação, Anna Cláudia Eutrópio B. D’Andrea, menciona ainda a importância de não absolutizar as diferenciações de gênero sob o risco de dificultar a compreensão da criança sobre o mundo contemporâneo: “Vivemos em uma sociedade em mutação e a criança precisa ir revendo as categorias que criou e flexibilizá-las de modo a perceber que não há nada tão absoluto assim na diferenciação entre homens e mulheres”. Mulheres dirigem caminhões, homens cuidam de idosos, travesti pode ser reitora de universidade.

Para ela, é sempre importante ir desconstruindo com as crianças a visão da mulher como frágil e do homem como forte porque isso é opressor para ambos. “O que se viu recentemente com a discussão da inclusão ou não da questão de gênero nos planos municipais de educação demonstra o quanto o assunto precisa ser trabalhado com a família para que se esclareça o que é a abordagem escolar da sexualidade, como ela pode ser feita, aliada a quais perspectivas e visando que tipo de sociedade e cidadão”, sugere Anna Cláudia.

Em nota técnica publicada em 1° de setembro, o Conselho Nacional de Educação (CNE) recomendou que os planos estaduais e municipais de educação sejam revisados para tratar da questão de gênero. O documento afirma “surpresa” e “preocupação” com o fato de várias cidades terem “omitido, deliberadamente, fundamentos, metodologias e procedimentos em relação ao trato das questões relativas à diversidade cultural e de gênero“. Em agosto, o Ministério da Educação também já havia publicado texto que reforçava que os conceitos de gênero e orientação sexual devem ser usados para a elaboração de políticas públicas.

Crianças no banheiro: não é só xixi e cocô

Enquanto caminhava em direção ao banheiro para procurar pelo meu filho, passaram correndo na minha frente três coleguinhas da turma do Caetano – dois meninos e uma menina – que chegaram à cabine antes de mim para mostrar um brinquedo que tinham encontrado pelo chão e fazia um barulho engraçado. Parei para observar. Sentado no vaso sanitário e rodeado pelos amiguinhos, Caetano levantou os olhos do brinquedo quando sentiu uma nova aproximação. A gente se entreolhou. Rapidamente ele voltou sua atenção para o objeto e ria junto com os amiguinhos da turma. Intencionalmente não intervi para ver como a cena ia se desenrolar. Foi então que uma das professoras se aproximou e pediu para que os amiguinhos dessem licença para que Caetano terminasse. Ajudei meu filho, lavamos as mãos e seguimos para o fim de semana.
Em Belo Horizonte, algumas escolas também adotam o banheiro misto na educação infantil. Luciana Borges é coordenadora pedagógica da Escola da Serra, que segue esse modelo nas turmas de 2 até 6 anos. Ela explica que crianças entre 2 e 3 ainda não estão interessadas ou motivadas a investigar as diferenças físicas entre elas, a fase é ainda muito egocêntrica e perceber semelhanças e diferenças ainda não é foco de interesse. “Percebemos que quando a fralda é retirada, essas crianças podem perceber que o menino tem o pênis e a menina não (é desta forma que eles expressam a descoberta). Nessa fase, quase todos não escolhem o amigo pelo sexo, mas pelas afinidades”, explica. A partir dos 4 anos, segundo ela, as crianças começam a investigar questões de gênero que são muito pautadas pelos estereótipos sociais e familiares. Nessa idade, a maioria dos meninos ou meninas não tem vergonha de ficar pelado ou de usar o banheiro diante dos colegas. Se for o caso, é preciso respeitar o aluno ou a aluna que precisa de privacidade e também os que se mostram constrangidos diante dos outros.

Nessa fase, Luciana diz que as crianças já comparam mais as diferenças sexuais, querem verificar o corpo do colega para saber se é igual ou diferente e é comum acontecerem investigações das zonas erógenas e a manipulação dos órgãos genitais. Talvez nesse ponto esteja outra dificuldade das famílias que, em sua grande maioria, não consegue desvincular o olhar adulto de uma descoberta que é natural.

Anna Cláudia afirma que a sexualidade infantil ainda é muito negada: “Como culturalmente o banheiro é um local de descoberta do corpo – seja na masturbação, seja na observação do corpo de outras pessoas -, o controle sobre os banheiros vira uma forma de tentar controlar a sexualidade”.

(E aqui outros parênteses para refletirmos sobre a dificuldade do adulto em lidar com o interesse de meninos e meninas pelos genitais. Como esse olhar é marcado pela carga cultural que envolve o erotismo, é difícil para muitos pais e mães compreenderem que, no caso de crianças, a experiência com a genitália é apenas sensorial. Uma forma de encarar esse assunto sem tanto medo é compreender que a curiosidade é natural, além de ajudar meninos a meninas a entenderem que esse tipo de contato com o próprio corpo é do âmbito da intimidade.)

Psiquiatra com especialização em psiquiatria da infância e adolescência, Cláudio Costa observa ainda que o comportamento repressor e culpabilizante do adulto, pautado pela moral, faz com que a curiosidade infantil pela diferença anatômica entre menino e menina seja repreensível.  “A ‘vergonha’ do próprio corpo ou do corpo do outro é uma variável introduzida pela tentativa de controle social da sexualidade”, afirma. Para ele, o compartilhamento bem orientado do banheiro pode ser um fator de estímulo à naturalidade e dignidade do corpo, sem os ranços moralistas e, principalmente, sem alimentar a postura de ‘demonizar’ as diferenças.

Luciana Borges lembra ainda que, para uma criança, a ida ao banheiro nunca é apenas para fazer xixi ou cocô: “O universo é bem mais amplo e atraente. As crianças menores têm mil curiosidades e adoram fazer companhia para o amigo ou amiga que está usando o vaso sanitário”, diz. Ela cita situações divertidas como a de duas meninas tentarem fazer xixi ao mesmo tempo, no mesmo vaso e em pé como os meninos.

Para ela, a relação que cada aluno vai desenvolver com o uso do banheiro é muito particular e também pautadas pelas percepções familiares. Luciana diz considerar o banheiro unissex mais democrático e que esse modelo contribui para a desestereotipização de gêneros, mas revela perceber a resistência por parte das famílias.

Ela conta que a instituição na qual trabalha realizou uma reforma no banheiro do ensino fundamental, na 1ª série. “Ele seria unissex, mas percebemos grande preocupação por parte de alguns pais. Sendo assim, fizemos o masculino e o feminino lado a lado. Eles não têm placa, mas um deles tem o mictório (a grande diferença). Os alunos usam um e outro sem tanta discriminação, que vem sempre a partir do olhar ou da orientação do adulto. É, portanto, cultural”.

Luciana Borges considera importante que a escola contribua na formação de sujeitos mais críticos e justos. “Penso que toda a comunidade escolar deve estar atenta a manifestações de preconceito, machismo. O trabalho pode e deve ser desenvolvido com crianças de todas as idades e com suas famílias. Não acredito que devemos impor nosso ponto de vista, mas que devemos tentar promover reflexões que contribuam para quebramos tabus”, completa.

Já na primeira infância, ela nota uma “necessidade” em estereotipar o comportamento masculino e feminino, mas observa uma facilidade das crianças de 2, 4 ou 6 anos em aceitar as diferenças. “Penso que essas vivências estão intimamente ligadas ao modelo da nossa cultura e é importante que a escola sempre apresente questões para os alunos com o objetivo de desestabilizar um pouco as certezas e possibilitar a ampliação da percepção do gênero. Será que toda mulher gosta de maquiagem? Será que futebol é só para meninos?”.

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