Muitas amigas e companheiras de maternidade me marcaram em um vídeo que rolou pela rede. É um vídeo lindo e delicado de uma bailarina que faz uma coreografia com a filha pequena, que deve ter no máximo uns dois aninhos.  A princípio, achei que a presença da bebê havia sido um imprevisto –  algo como a mãe precisando começar sua apresentação e a filha querendo ficar com ela de todo jeito. Quem já não passou por isso? Que mãe já não precisou adiar um compromisso ou levá-la junto em um dia em que a criança simplesmente se recusou a ficar sem ela – ou em dias em que não havia nenhuma outra alternativa (a grande maioria dos casos, acredito…)? Mas com o desenrolar do vídeo percebi que não, que era uma coreografia pensada para incluir a bebê.

Tenho certeza de que todas que me marcaram assim o fizeram em função da beleza do vídeo. E ele é bonito mesmo, ambas parecem muito à vontade, a interação entre elas é belíssima, é delicado, a música ajuda bastante e venhamos e convenhamos que a simples presença da bebê recém caminhante o torna mais delicado ainda.

Mas ao contrário do que tantas esperavam, não foi bem um sentimento de alegria que tive ao vê-lo, ou de pura e simples contemplação. Confesso que em determinados momentos o que senti foi um certo desconforto…

Assim que terminou, fiquei pensando sobre o possível motivo de ter me sentido desconfortável. E cheguei a uma conclusão: PROJEÇÃO.  Projetei reflexões e vivências minhas naquele vídeo. Projeção é essa coisa que faz a gente jogar pra cima do outro sentimentos que são nossos, que falam sobre nós e nossas vidas, e que não necessariamente estão de fato representadas no que achamos que está. E que acontece com grande frequência, inclusive (ou principalmente) quando não nos damos conta de que estamos fazendo isso. 

Aquele vídeo me fez lembrar de quantas e quantas vezes precisei levar minha filha comigo em compromissos profissionais. Quantas horas de palestras, aulas, reuniões, ela viveu comigo. Especialmente nos últimos dois anos. Especialmente depois que me tornei uma mãe que não vive com o pai da filha. Participamos, juntas, de horas e horas, dias sucessivos de atividades formativas – para a conclusão do meu doutorado,  para a construção do novo site, para que eu pudesse estar presente nas minhas atividades profissionais. Estivemos – e ainda estamos – dias e dias trabalhando juntas, horas a fio, no planejamento de tantas coisas. Quantos dias e dias ela passou ao meu lado me vendo estudar pra terminar uma tese. Quantas horas nos sentamos juntas, eu em minha mesa, ela na mesinha dela, eu trabalhando, ela criando suas histórias, aprendendo a ler (e isso daria um texto só para ela, contado sobre como minha filha de 5 anos, sem que eu a estimulasse, se alfabetizou praticamente sozinha…), cantando, colando, inventando coisas. De quantas reuniões ela participou… De quantos encontros e rodas de conversa… De quantos eventos. Não digo isso com tristeza ou pesar, pelo contrário. Digo com alegria, pois confio plenamente no poder avassalador do exemplo e tenho visto como todas essas vivências têm tornado minha filha uma criança que interage com qualquer pessoa, em qualquer situação, destemida, fluente, desinibida e que se vira muito bem quando precisa se expressar na ausência da mãe ou do pai. Vejo o orgulho que ela tem ao falar do trabalho da mãe, ao contar para os amigos que participa de tudo comigo, ao inserir elementos das nossas vidas em suas brincadeiras. Sinto-me feliz por isso.

Mas essa felicidade não me impede de refletir ou de me questionar sobre quanto tudo isso de fato é bom, e sobre quanto reflete a sobrecarga que como mães vivemos, quanto atesta uma relativa falta de rede social de apoio – e olha que a minha é ampla, e olha que frequento lugares onde – OBRIGATORIAMENTE – minha filha sempre será bem vinda (não sei se dei sorte ou se sou chata pra burro na escolha dos lugares que frequento). No ano passado, ela participou intensamente de atividades de imersão comigo. Se ficou feliz? Extremamente feliz. Se fez novos amigos? Muitos. Se recebeu carinho e apoio de todos? Sempre. Se acabou ajudando a criar ambientes inclusivos às crianças? Muito. A presença dela nesses lugares por si só ajudou a criar um espaço acolhedor às crianças. Porém, isso não representa a realidade da maioria das mulheres nem dos espaços onde vivem as mulheres. Crianças – bem como mulheres mães – não são bem vindas em todos os espaços e todos nós sabemos disso.

Certa vez, eu e muitas amigas, todas mães, todas com os filhos, fomos a um restaurante que já frequentávamos por sabermos que bem acolhiam as crianças. Uma mesa.  5 mães. 4 crianças. As crianças brincando próximas ao banheiro. O lugar com apenas três ou quatro mesas ocupadas, sendo duas com crianças. Pois em meio à nossa conversa, uma senhora visivelmente alterada nos interrompe, olha diretamente para mim e diz: “ESSAS CRIANÇAS ESTÃO NOS INCOMODANDO. NÓS PAGAMOS TANTO QUANTO VOCÊS PARA ESTARMOS AQUI. NÃO QUEREMOS MAIS QUE ELAS NOS INCOMODEM”. E simplesmente saiu como se nada tivesse dito, sem nos dar oportunidade de diálogo. Nossas crianças estavam brincando no espaço ao lado do salão principal do restaurante. Não estavam incomodando ninguém, inclusive porque todas somos mães que se preocupam em bem orientá-las.  Mas acontece que a simples presença de crianças elicia em muitas pessoas gatilhos emocionais que a torna insuportável. Mas as pessoas só se sentem confortáveis em agir dessa maneira grotesca e antipática porque os alvos são as crianças. E porque naquela mesa só estavam mulheres. E porque o machismo, inclusive o que está enraizado nas próprias mulheres – como nesta senhora – anda de braços dados com a pedofobia – essa espécie de aversão que tantas pessoas nesta sociedade adultocêntrica sentem pelas crianças. Obviamente, levantei-me e fui até a mesa onde estava sentada a senhora, junto com sua filha e seu genro. E a primeira pergunta que fiz, em voz baixa e de maneira bastante educada, foi: “Se nossas crianças não estão incomodando vocês e, se ainda assim, vocês estão se sentindo incomodados, o que isso diz sobre vocês como pessoas? Por que a simples presença delas incomoda vocês?”. Na mesma hora, o rapaz se levantou e se posicionou com a distância de um dedo de mim, tentando me intimidar. Pois onde eu estava, eu fiquei, ainda mais calma. E quanto mais calma eu ficava, mais ele se alterava (um estranho fenômeno que acontece com quem não tem argumentos plausíveis). Pois ali ele me agrediu verbalmente de uma série de palavrões e destratos, ameaçou partir para a violência física, eu impassível dizendo “Calma, meu senhor. O senhor está descontrolado e há crianças neste recinto”, a esposa dele já brigando com ele e a senhora tentando contê-lo. E toda esta cena horrível só finalizou porque o pessoal do restaurante o fez sentar e se acalmar, e eu voltei para nossa mesa. As crianças continuaram a brincar, respeitando todos no lugar – embora tendo sido desrespeitadas.

E por que aquele vídeo tão delicado eliciou em mim memórias desagradáveis como essa ou a reflexão sobre como mães e crianças são mal recebidas em diferentes lugares? Porque ali, naquela coreografia, uma mãe e uma bebê interagiam lindamente, delicadamente, docemente. Pessoas compartilharam em massa. Muitas mulheres marcaram umas às outras. Todos acharam lindo. Mas talvez apenas porque era algo coreografado. Porque na dança da vida, infelizmente as coisas ainda não são assim…

Mas ao contrário do que pode parecer, esse não é um texto de tristeza ou descrença. É um texto de esperança. Porque estamos falando cada vez mais desse assunto, porque estamos desconstruindo muitas coisas antes naturalizadas, porque cada vez mais espaços inclusivos estão sendo criados. Para que não tenhamos que fazer malabarismos. Para que não tenhamos que coreografar uma vida com crianças, que sabemos que não pode ser coreografada. E para que mães possam assistir a um vídeo lindo como aquele e somente contemplar… Sem se sentirem desconfortáveis por lembrarem que, tantas e tantas vezes, não tiveram escolha. E tiveram que dançar com seus filhos uma dança nem tão calma, nem tão bela. Juntos e de improviso.

O vídeo é lindo e eu recomendo que assistam. Mas que não deixem de refletir que talvez a beleza se dê justamente na raridade de ver uma criança em ambientes onde geralmente elas não são vistas – ou não são bem vindas. E que quando se impede uma criança de estar em um lugar, é uma mulher que também está impedida de frequentá-lo. E é assim que se perpetua uma cultura de exclusão de gênero que não nos favorece nem como mulheres, nem como mães. Muito menos às crianças.

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