No momento em que escrevo, estamos prestes a completar 1 ano e meio de vidas alteradas em função da pandemia de COVID-19. Todos e todas nós já passamos por muitas coisas: medo, expectativa, angústia. Muitos perderam pessoas que amam. Outros, perderam emprego ou estão em situação de vulnerabilidade financeira. Muitas crianças seguem em aula online em função de ainda serem grupo não imunizado. O Brasil tem, neste momento, apenas pouco mais de 30% de sua população completamente vacinada. Muita incerteza. E, para piorar, um governo que se compraz em alardear o caos e a ameaça à democracia, piorando um estado emocional e psíquico de um povo que vem sendo moído como carne de segunda.

Estamos esgotados. São centenas de milhares de relatos de exaustão física e mental, um aumento exponencial de casos de transtornos psiquiátricos levando as pessoas a buscarem ajuda, tratamento, internação. Insônia, alterações de apetite, déficits de memória, dores musculares, tensão constante, afastamento do trabalho.

O que temos não é cansaço, apenas, nem são experiências individuais. Estamos vivendo uma experiência coletiva, de base fisiológica e emocional, chamada FADIGA PANDÊMICA.

Mas o que é a fadiga pandêmica?

Para entender o que é isso, é preciso entender, primeiro, o que é o estresse e o que é o estresse crônico.

Ao contrário do que pensam, o estresse não é algo ruim. Estresse são alterações fisiológicas e emocionais adaptativas que vivemos quando algo novo ou ameaçador nos acontece. Vejam, eu disse adaptativo, e é isso mesmo. São alterações fisiológicas que têm como objetivo último nos adaptar para enfrentar dificuldades. O estresse acontece, sobretudo, frente a eventos que representam ameaça à nossa sobrevivência. Envolve alterações fisiológicas, comportamentais e emocionais que têm uma função: nos proteger. Seja tornando a fuga possível, seja nos impelindo à luta. Frente a esses estímulos ameaçadores, há uma ação coordenada de estruturas como hipotálamo, hipófise, glândulas adrenais, com liberação de uma série de hormônios e neurotransmissores, como vasopressina, adrenalina e, especialmente, cortisol. Foco aqui no cortisol que vou retomar isso mais adiante.

Imagine que você está frente a uma ameaça à sua sobrevivência: a vasopressina altera sua pressão arterial para levar mais sangue e oxigênio a lugares estratégicos do corpo, a adrenalina te deixa ligado, mobilizando energia para que você se defenda, e o cortisol protege seu corpo contra possíveis injúrias. Perfeito, dessa maneira você consegue enfrentar adequadamente o que precisa enfrentar. Sempre? Não. Então quando? Apenas quando isso acontece de maneira aguda, isolada e passa rápido. Mas quando os eventos ameaçadores persistem, imagine essa bomba de substâncias alterando seu corpo e te deixando sempre preparado para o enfrentamento. Isso só funciona bem até um determinado ponto, depois passa a te prejudicar. A adrenalina constantemente liberada deixa sua frequência cardíaca e respiratória sempre a mil; o cortisol começa a diminuir sua função imunológica, fazendo com que doenças autoimunes preexistentes apareçam (alguém aí com a rinite descontrolada, dermatites atópicas aparecendo ou doenças reumáticas dando o ar da graça?); seu sono se altera (quem consegue dormir assim? Ou quem quer permanecer acordado?), seu apetite se altera, você se sente constantemente sobressaltado. Em neurociência, isso tem até um nome: sobressalto potencializado pelo medo.

Isso tudo do ponto de vista fisiológico. Mas como fica nosso comportamento? Fácil responder: ficamos irritados, com maior propensão ao descontrole emocional, beirando o ataque de nervos ou, no outro extremo, prostrados. Eis o estresse que não é bom: o estresse crônico.

Mas se a situação ameaçadora não for controlada, se ela piorar, esse panorama também avança. Porque o cortisol liberado de maneira crônica em situações perturbadoras está ligado a uma série de doenças desadaptativas, como a insônia crônica, o Burnout e a síndrome da fadiga crônica.

Pronto, cheguei onde eu queria: síndrome da fadiga crônica. Não se engane achando que é uma fadiga física, ou um cansaço, ou algo leve, porque não é. É uma fadiga profunda e duradoura, não associada ao exercício físico ou à maior atividade corporal, da qual não nos recuperamos apenas com repouso ou descanso e presente por, no mínimo, seis meses. Na síndrome da fadiga crônica, outros sintomas estão presentes, como mialgia difusa (dores musculares em diferentes partes do corpo, não associadas a causas específicas), dores nas articulações, problemas cognitivos como perda de memória ou dificuldade de aprendizado, e exaustão mental profunda, podendo levar a episódios de confusão mental aguda.

Familiar, não é? Muitas pessoas estão relatando se sentirem exatamente assim desde o início de 2021, quando a pandemia de COVID-19 completou um ano. Imagine agora, com um ano e meio de vidas alteradas… Um adicional importante é que a fadiga crônica, neste caso associada à situação pandêmica, traz por si só uma importante diminuição da resposta imunológica. E, o que é mais preocupante: estudos indicam uma baixa taxa de remissão ou de total recuperação, da ordem dos 10%.

Qual meu intuito com esse texto, te fazer desesperar e chorar mais uma noite em posição fetal? Não. Trazer algumas reflexões importantes que podem te ajudar. E, principalmente, tirar toda a carga de cima dos seus ombros quando você acha que o problema é seu, que é você que não é tão resiliente, que é você que é frágil, ou sensível, ou que está fazendo tempestade em copo d´água. Não é. A tempestade é que é braba mesmo. E é fundamental que as dimensões do cuidado – físico, psicológico, mental, outras – se preparem e se instrumentalizem para acolher tantas pessoas em sofrimento. E eu ia dizer: e que as políticas públicas foquem com urgência em criar instrumentos de acolhimento e recuperação para quem está em sofrimento – mas por um minuto me esqueci que o governo atual não tem esse interesse, bem pelo contrário. Em tanatopolítica, não importa se estão sofrendo, que morram logo.

Se você está com dificuldade de se concentrar, ou tem percebido lapsos de memória, se tem precisado repetir a mesma coisa para si mesmo muitas vezes para processá-la, se não está tomando boas decisões neste momento, calma, não se culpe tanto assim nem exija tanto de você: inúmeros estudos pré-clínicos associam a exposição intensa do cortisol em eventos de estresse crônico à atrofia de uma região cerebral chamada hipocampo. O que significa isso? Significa que em situações altamente estressoras que levam à fadiga crônica, há uma diminuição do hipocampo. E é justamente essa estrutura que está diretamente envolvida na consolidação da memória e nos processos de aprendizagem, além de ser mobilizada quando precisamos tomar decisões. Não dá para exigirmos algo de nós mesmos quando o maquinário não está em boas condições.

Mas por que tantas pessoas em sofrimento enquanto outras dizem estar passando bem por todo esse caos? Porque as respostas ao estresse crônico e o tanto que nos adaptamos a ele depende de uma série de fatores individuais. Você depende do seu trabalho para sobreviver? Você tem direitos trabalhistas que te assegurem caso você adoeça? Você pode fazer seu trabalho em situação segura em meio à pandemia? Você precisa mediar o sofrimento de outras pessoas mais vulneráveis que você – como as crianças, por exemplo? Você tem uma rede de proteção física, emocional e financeira? Você se importa com os outros? As respostas a todas essas perguntas ajudam a compreender porquê alguns estão em casos graves de fadiga pandêmica, enquanto outros ainda lidam com o sofrimento coletivo como se fosse uma gripezinha…

O estresse, agudo ou crônico, bem como a fadiga crônica, são eventos biopsicossociais. Tudo o que vivemos em função deles não pode ser resumido a um cortisol e uma adrenalina. Não somos máquinas biológicas, somos seres humanos, respondemos de maneira complexa.

Há formas de tentar reduzir os danos e promover em nós mesmos uma recuperação que torne nossas vidas minimamente mais saudáveis? A excelente notícia é que, sim, existem! E não pense você que elas se restringem a medicamentos, porque não. Inúmeros estudos científicos mostram que ações comportamentais e de base emocional têm mais efeitos benéficos duradouros do que apenas com medicamentos. Quais são elas?

  • Práticas corporais que te sejam agradáveis e gentis. Não precisa ser um treino forte se você não tiver energia para isso agora. Dançar, alongar, se movimentar.
  • Insistência em horários de dormir fixos são importantes para combater os efeitos da privação de sono. Mesmo que você fique lá, com os dois olhos abertos, seu corpo está repousando, e todo é qualquer repouso é importante para poupar energia. Mas não vá ficar deitado e com os olhos nas redes sociais à procura de desgraça. Deite. Abrace quem você ama. Fique confortável.
  • Aumentar a consciência sobre si e sobre as consequências dos próprios atos, tentando antecipar os efeitos de ações impensadas sobre um corpo e uma mente já fatigados.
  • Falar sobre como se sente com alguém em quem confia, seja um profissional ou alguém afetivamente próximo. Ser escutado te ajuda a processar e a elaborar o vivido.
  • Reduza o fluxo involuntário de notícias. Silencie o celular. Saia de grupos que não se mostram positivos e construtivos neste momento. Cancele as notificações. Use o celular, mas não permita ser usado por ele e suas redes.
  • Se for possível financeiramente para você, procure psicoterapia. A escuta profissional pode te ajudar a elaborar tudo o que você está vivendo. Se você está sem dinheiro para isso, procure grupos que estejam atendendo a valores sociais, há muita gente atendendo neste momento crítico.
  • Procure se distanciar de pessoas que possam agravar seu quadro de esgotamento físico e mental. Nem toda companhia é válida. E laços sanguíneos não são aval para o desrespeito e o aumento do sofrimento.
  • Avalie profundamente o nível e a forma do cuidado de si. Como você tem cuidado de você?
  • Avalie os riscos emocionais de toda e qualquer decisão neste momento. Diga mais NÃOS. Poupe-se ao máximo.

Quer dizer que cabe a você fazer tudo isso para se sentir bem e resolver seu problema de fadiga crônica? Não. Quando estamos em profundo sofrimento coletivo como estamos, é ilusório – e cruel – imaginar que basta que tomemos decisões e tudo melhorará. Não. O que estamos vivendo é uma experiência traumática coletiva em muitos níveis, que tem nuances que variam dependendo de quem você é, de quais grupos sociais faz parte. Tudo isso são pequenas estratégias de redução de danos que podemos ir fazendo enquanto sobrevivemos, a fim de que, lá na frente, possamos, juntos, construir novas redes de acolhimento, reabilitação e cura para cuidar de todos nós. Um sofrimento coletivo não pode ser curado com decisões individuais. Mas ter consciência do que está se passando com todos é importante.

Você não está louco, nem é inadequado ou incompetente. É, apenas, humano. E está enfrentando o período mais difícil desta geração. Já dizia alguém famoso de quem não me lembro agora: quando estiver atravessando o inferno, apenas continue atravessando. Vamos nos encontrar no fim disso e vamos construir novas redes para nossa recuperação. Eu realmente acredito nisso. Não seria doutora em saúde coletiva se não acreditasse.

Siga atravessando. Fatigado. Mas siga.

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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas diversas questões de suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.