Ninfoplastia. Labioplastia. Vulvoplastia. Correção estética dos lábios vaginais. Rejuvenescimento vaginal. Preenchimento estético do tecido do canal vaginal. Criação do ponto H. E eu poderia incluir aqui uma gama de outros procedimentos que têm como objetivo “corrigir” – como se estivesse errada – a vulva ou a anatomia vaginal, e não para fins de saúde.
Sim, ao que tudo indica nossas vaginas não andam muito à altura dos maravilhosos falos e seus donos – os mesmos seres para os quais o Ministério da Saúde precisa veicular campanha para que lavem seus pintos a fim de evitar doenças.
Como dizia Michel Foucault, as palavras não são apenas palavras, elas refletem e criam realidades. Palavras também se refletem em poder e o poder se reflete em palavras. De forma que vamos começar pela palavra NINFOPLASTIA, usada para se referir à redução dos lábios vaginais. Como você pode imaginar, a palavra vem de “ninfa”, derivada etimologicamente do grego nýmphê, noiva. Na mitologia grega, as ninfas são seres mortais, mas que jamais envelhecem ou perdem a beleza, além de simbolizar a fertilidade – o sonho de consumo de uma sociedade em que mulheres são tratadas como coisas e seus corpos expostos no mercado público, presencial ou online. “Ah, são deusas”. Calma, elas não são deusas. São mortais. Só não ficam feias ou velhas, morrem bonitas e férteis – e tudo leva a crer que com lábios vaginais e canais vaginais belos e adequados, embora de minha parte eu nunca tenha lido nada sobre as vulvas e vaginas das ninfas. E tudo isso – bonitas, sempre jovens, férteis e mortais – para quem? Para os deuses? Para elas mesmas? Não, para os sátiros, os parceiros sexuais das ninfas, seres que possuem um corpo que é metade homem e metade bode. Ui, essa doeu…
A questão relevante é que a palavra “ninfa” não possui apenas um significado etimológico, há também o uso popular que se faz dela e que, em nossa cultura, faz alusão à gíria “ninfeta”. Acredito que você saiba ao que se refere essa expressão, mas para o caso de não saber, trago aqui duas definições de dicionários: “adolescente do sexo feminino que é muito sensual” ou “menina adolescente voltada para o sexo ou que desperta desejo sexual”. Bem, de onde eu venho, isso tem um outro nome, e não é nada bom, inclusive tem feito dezenas de milhares de vítimas por ano somente no Brasil: pedofilia. Então, sim, temos aí uma expressão usada pelo saber médico para um procedimento que visa, também, deixar nossas vulvas e vaginas com uma determinada aparência e para um determinado fim.
Claro que muitos profissionais da área médica se insurgem contra essa constatação com argumentos que apelam à saúde, ao risco, a patologias, aos supostos benefícios e, até, creiam, à autonomia da mulher – argumento que só defendem quando querem, de maneira bastante hipócrita, e tenho minha segunda tese de doutorado como prova documental disso, aceita inclusive pela Organização dos Estados Americanos como prova da violação dos direitos das mulheres por profissionais de saúde aqui no Brasil. Dizem que há hipertrofias que são patológicas e que isso traz legitimidade às intervenções cirúrgicas. Sim, acredito nisso, realmente podem existir alterações patológicas na anatomia da vulva ou da vagina, mas é de uma imensa desonestidade tratar isso como regra e não como exceção. Isso não passa, mais uma vez, de discurso do risco voltado para o controle, com o fim de vender técnicas e intervenções no sempre inadequado corpo da mulher.
A verdade é que os procedimentos que visam alterar a anatomia da vulva e da vagina vêm ganhando força impulsionados por dois motivos principais: a padronização/patologização dos corpos das mulheres e a satisfação sexual do homem. E os dados mostram exatamente isso: a própria Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética já registrava, em 2018, que as técnicas visando o rejuvenescimento estético da vulva e da vagina figuravam como o procedimento estético de maior crescimento em todo o mundo. E adivinha o país que apresenta o maior índice dessas intervenções?
Sim, o Brasil.
São milhares de mulheres em busca de procedimentos para se tornarem cada vez mais aceitáveis, desejáveis e adequadas – e eu gostaria muito de que o principal argumento para isso fosse a busca por sua própria satisfação, para que se sentissem bem, mas sabemos que não é. Muitos estudos científicos vêm sendo realizados mostrando que a busca por padrões estéticos inalcançáveis já atingiu nossa região genital. E uma prova atual disso é um novo procedimento, que vem sendo divulgado pela mídia nos últimos dias: um tal de “preenchimento do ponto H”. E é de tal forma absurda essa proposta que, apenas para fim de registro e para que vocês saibam: ponto H nem existe. E a proposta é exatamente essa: criar uma região nova no tão pouco conhecido corpo da mulher, através da inserção de agentes químicos que alterariam o formato da cavidade vaginal, apenas para que o homem sentisse mais prazer. A Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) precisou vir à público se manifestar contra essa prática, que vem sendo incentivada e recomendada por médicos sem qualquer comprometimento com a saúde integral e a vida da mulher. A nota emitida pela instituição afirma que é um procedimento antiético, pois não tem qualquer comprovação científica, imprudente por não dispor de nenhum dado de segurança que preveja seus efeitos a longo prazo, e enganoso por promover expectativas fictícias, além de reforçar o risco de mutilação da parede vaginal das mulheres. E, ainda assim, textos incentivando o procedimento se multiplicam nas redes sociais. Feitos por supostos profissionais da saúde.
Quando falamos sobre os problemas dos procedimentos direcionados às mulheres que têm como objetivo final um suposto “aumento” da autoestima via intervenção invasiva corporal, muita gente se utiliza de falsas simetrias para tentar provar pontos de vista equivocados, como:
“mas os homens também são pressionados por supostas intervenções em seus pênis”.
E são mesmo. Prova disso são os milhares de spams disparados diariamente com apelos como “alongue seu membro”, “turbine seu pênis”, entre outras expressões menos dignas. Porém, não são questões equivalentes. Os procedimentos voltados ao pênis têm, como objetivo último, reforçar a virilidade do homem, sua masculinidade, sua posição de poder tanto com relação à mulher quanto entre si, pontos que são a gênese do patriarcado e todas as áreas de estudo tratam disso, bem como sua transferência para coisas e objetos – como carros e armas. Já os procedimentos voltados para a adequação da vulva, da vagina, do períneo, raras vezes dizem respeito às mulheres, suas escolhas, sua autonomia e sua satisfação pessoal; estão voltadas para o PRAZER DO HOMEM. E isso não é novo, só estamos falando mais abertamente. Ou você nunca ouviu falar do “ponto do marido”? Uma prática que também é violência obstétrica e que consiste em, sem consentimento da mulher ou sem que ela sequer seja consultada sobre, dar um ponto cirúrgico adicional no períneo após o nascimento do bebê. As coisas mudam de nome, se alteram no formato, mas mantêm a mesma base.
Todas essas alterações estéticas abusivas e invasivas que dizem respeito à sexualidade e ao corpo da mulher trazem outras consequências graves e uma delas é o efeito disso sobre a formação subjetiva das meninas. Como crescem as meninas que acham que suas vulvas ou vaginas podem não ser suficientemente boas? Como crescem as meninas estimuladas a se verem como material a ser adequado, corrigido, aperfeiçoado? Como crescem as meninas quando ao seu redor a cultura da inadequação e da patologização do corpo da mulher as esmaga? O que sentem, o que pensam de si, como se relacionam, como experimentam a sexualidade ao se tornarem jovens? A primeira vez que se atribuiu à vulva e à vagina características como “ser fotogênica”, “ser apresentável”, data da década de 70. Ou seja, as meninas que cresceram a partir dessa valorização têm, hoje, entre 40 e 50 anos. O que viveram essas meninas, essas jovens? O que sentem sobre seus corpos e vivências ainda hoje? Que tabus precisaram romper? Será que romperam? Como isso influenciou suas vidas? Há centenas de trabalhos mostrando como a busca por padrões patriarcais, machistas, nos machucou a todas – e ainda continua machucando.
Quando foi que deixamos de ser humanas, com nossas diferenças, nossas diversidades, nossas peculiaridades, particularidades, ineditismos e delícias? Quanto tempo mais vamos permitir que sejamos tratadas dessa maneira? Assim como as palavras não são só palavras, nossas vulvas e vaginas não são somente nossas vulvas e vaginas. Elas são parte de nós, têm significado para além do anatômico e fisiológico, não nos definem nem limitam. Essa vulva e essa vagina de ninfas não nos cabem, não são nossas, não nos pertencem. Elas pertencem a seres míticos que se relacionam com seres que são metade homens-metade bodes, são lindas, férteis – mas ainda assim, morrem. Nosso ser mulher não está atrelado a lábios vaginais ou canais vaginais mas nem de longe. Há tantos espaços e áreas e partes de nossos corpos capazes de nos dar prazer, não precisamos construir nada que vise dar prazer ao outro. Especialmente quando o nosso próprio prazer ainda é tema de segunda ordem, especialmente quando nosso clitóris ainda continua a ser mais mítico que as próprias ninfas para tantas de nós, quanto mais para os que não o possuem. Que servidão é essa que continua a nos mutilar em prol do prazer alheio?
Eu levei muito tempo para ter acesso a esse debate e aprender que meu corpo me pertence, que meu prazer me pertence. Como professora de fisiologia humana, não me lembro de ter havido sequer uma aula curricular oficialmente destinada a falar sobre as possibilidades de prazer físico, sobre a descolonização dos corpos, sobre as potencialidades fisiológicas que se abrem para nós quando nos abrimos para elas – e se falei sobre isso com meus alunos – e eu falei – foi porque assumi esse compromisso. Mas venho ensinando minha filha sobre isso desde que ela era pequena, falando sobre respeito ao corpo da mulher, sobre consentimento, sobre padrões e suas pressões, sobre machismos embutidos em exigências naturalizadas, sobre corpo, vida, sexualidade e amor. Com respeito, com empatia, com delicadeza e reparação histórica. Mas não sou suficiente enquanto mãe, e nenhuma de nós é, quando ao nosso redor reina uma cultura mutiladora e castradora de nossos corpos, prazeres e vivências, que nos violenta com práticas institucionalizadas que são tornadas desejáveis pelas redes sociais.
Não existe ponto H. Nem vai existir. O que existe é o total desconhecimento do corpo da mulher e sua potência. E as múltiplas tentativas de manutenção de nossa colonização, com caras e roupas novas. Mas sempre colonização.
Para finalizar, uma recomendação deliciosa: assistam à série Sex Education, disponível na Netflix. Toda a série é um primor, mas a terceira temporada ainda mais. Não apenas por dar às diferentes vulvas e vaginas um lugar de destaque, mas também por isso. E aproveitem para conhecer o projeto mencionado em um dos episódios: The Vulva Gallery.
E para não dizer que não respondi à pergunta que abre este texto: seriam sua vulva e vagina suficientemente boas para dar prazer o homem? Mas que pergunta ridícula. Jamais pensem nisso. E aos homens que se veem contemplados por essa padronização violenta das mulheres, uma pergunta: já lavou seu pinto hoje?
******
Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas diversas questões de suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia pelo Departamento de Psicologia e Educação da USP, Doutora em Ciências/Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutora em Saúde Coletiva também pela Universidade Federal de Santa Catarina, com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.