Trinta de julho é para mim um dia de renascimento, de celebração da vida, da alegria, dos gritinhos de entusiasmo, da criança brincando e se deslumbrando com um “céu de estêlas bilhantes”. Um dia de celebrar o pãotêga (1), o pastel de bibigão (2), o “vamos dançar juntas”, o massa-massa (3) e todas as dezenas de velhas novas coisas que vou aprendendo com minha filha. Ela está fazendo 3 anos e estou celebrando a maravilha, a beleza, o desafio, a superação, a novidade, a profundidade, a imensidão de coisas novas que a maternidade nos traz. Celebrando a capacidade que desenvolvemos de dar às coisas sua devida dimensão (ou quase), de priorizar, de abrir mão, de se entregar, de se doar, de lutar e aprender.
Julho é para mim um mês muito especial, porque comemoro três nascimentos de uma só vez. O meu
próprio, dia 27 de julho, o da minha filha, dia 30, e o meu como mulher transformada em mãe. Ter me tornado mãe foi não somente viver uma metamorfose completa mas, acima de tudo, aceitar passar por ela, aceitar as mudanças, as adaptações, as novas configurações. Aceitar de bom gosto, de bom grado, com empatia e determinação.
vivo. Não acho que ser mãe seja dos domínios da facilidade. Não é fácil aprender a ser mãe enquanto vamos sendo… Não é fácil lidar com as dúvidas, angústias, interferências, conflitos. Não é fácil. Mas algo que não se pode esperar, ao se tornar mãe, é facilidade. Aliás, de nada que se deseja e que vai mudar a vida de maneira decisiva se pode esperar facilidade. Não esperei facilidade quando decidi qual profissão seguir. Não esperei facilidade quando decidi seguir a carreira acadêmica. Não esperei facilidade quando decidi construir uma vida com meu companheiro. Também não esperei facilidade quando decidi desistir de uma carreira anterior para construir uma nova. Não esperei facilidade ao decidir trabalhar com saúde coletiva e estudar a violência no parto. Por que, então, haveria de esperar facilidade do eterno papel de mãe? Quem espera uma maternidade fácil está esperando errado. Na verdade, quem espera da vida facilidades e as busca obcecadamente, definitivamente não está buscando ser protagonista de sua própria vida mas, sim, um eterno coadjuvante da vida de outros ou, pior, de uma vida fictícia que jamais o representará verdadeiramente. Se isso está bom para a pessoa, que assim seja. Definitivamente não é algo que desejo para mim, nem é um valor (ou desvalor?) que pretendo passar à minha filha.
Clara: 3 anos Fotos: Carol Dias Fotografia |
O que pretendo passar a ela tenho esforçado-me a passar, tenho conseguido e sinto-me feliz por isso:
que seja lutadora, que seja destemida, que seja comunicativa, que diga o que pensa, que acredite que é capaz, que acredite em si mesma, que diga nãos e sins, que entenda suas próprias dificuldades, que aceite os aprendizados, que respeite seu próprio tempo, que entenda que não se faz xixi no vaso de uma hora pra outra, que “fazer sisculpe” (4) é importante, que precisamos ser amigos de quem amamos verdadeiramente, que aquilo que não nos faz bem é importante deixar ir, que tem coisa que faz mal mesmo sendo gostoso, que tem hora certa para fazer algumas coisas, que criança pequena precisa da mãe, do pai ou de quem o cuida, que colinho é bom pra passar angústia e que beijo de mãe e pai tem efeitos anestésicos. Que tudo bem chorar, que tudo bem sorrir, que tudo bem ser gente. Que alguém que chora está precisando de um abraço, que quem fica dodói merece cuidado, que café da manhã é bom de se tomar junto, que tem gente que simplesmente não vai gostar da gente, que não podemos forçar ninguém a gostar de nós e que isso não é um problema nosso. Que ter uma festa de aniversário é bom, mas melhor ainda é chamar os amigos a soprar as velinhas juntos e ter velas para todos. E Clara, essa menina tão bacana, que tem crescido de maneira muito leve e sem forçações de barra, tem aprendido cada uma dessas coisinhas. A seu tempo. De maneira natural.
Na última semana, aprendeu algo muito importante. Aprendeu que chamar alguém de “ele” ou “ela” pode não ser tão importante quanto chamá-l@ por quem é realmente. Aprendeu isso ao encontrarmos uma pessoa cujo gênero não estava tão evidente. Ao me ouvir dizer: ” Ela está colocando as coisas na sacola“, estranhou o “ela” e, ali mesmo, na cara da pessoa, disse bem alto: “ELA?! Não é ELA. É ELE“. A pessoa à nossa frente visivelmente desconfortável. Então, num lampejo, perguntei seu nome e a pessoa respondeu: “Meu nome é X“. Eu disse: “Viu, filha. X!“. Clara então, muito suavemente, exclamou: “Ah éééé! É X. Isso!“. E eu sorri. E a pessoa sorriu. E sentimos que ali estava uma pequena mostra de como as novas gerações precisam ser formadas: preocupando-se mais com quem está ali à sua frente do que com seu gênero, sua profissão, sua aparência ou qualquer coisa que o valha.
Por hora, qu
ero apenas celebrar. Celebrar e compartilhar esse sentimento tão pleno, intenso e nobre. Essa coisa verdadeira e profunda que sinto por saber que há três anos, no horário em que escrevo, eu enfrentava uma madrugada de profundo contato comigo mesma, com minha bebê, com meu corpo, com minha vida. Eu a sentia chegando e me dedicava a aproximá-la cada vez mais de mim. Senti todas as contrações com respeito, gratidão e profundo desejo de ser mãe. Lembro-me do encantamento que vivi ao vê-la pela primeira vez: olhos puxados de Björk, furinho no queixo, serena e tranquila. Foi muito forte. Tanto quanto o que sinto diariamente. Tanto quanto as pequenas imensas coisas que sinto e vivo todos os dias como mãe dela. Tanto quanto o que ouvi dela na madrugada que antecedeu sua festa, dia do meu aniversário. Eram quase 4 horas da manhã e eu estava terminando uns detalhes da festinha. Ela me chama lá do quarto. Fui. Quando cheguei, a vi sentada em sua caminha, e simplesmente me disse:
– Mãe, você ainda tá fazendo a festinha?
– Tô, filha, tô quase acabando.
– É a minha festinha?
– É, querida, é a sua.
– De três anos?
– Sim, filha, de três anos.
Então ela se deitou de novo, se aninhou e disse, abraçando meu pescoço e levando-me para junto dela:
– Mãe, sabe uma coisa? Piciso você.
Pequeno glossário
1) pão com manteiga quentinho
2) pastel de berbigão, um clássico da culinária manezinha
3) pão caseiro que a gente faz juntas
4) pedir desculpas; ela faz questão de que peçamos desculpas quando acha que fizemos algo errado (como repreendê-la por ter feito alguma coisa não muito bacana…)