No post anterior, relatei uma situação vivida por mim pra falar sobre a epidemia de prescrição de psicofármacos, que atinge uma quantidade imensa de pessoas e enche os bolsos da indústria farmacêutica.
Hoje continuo a falar sobre isso, falando um pouco sobre a Reforma Psiquiátrica e sobre no que se transformou a expressão “somos todos loucos”.
A Reforma Psiquiátrica brasileira, que vem acontecendo há algumas décadas, visa mudar o tratamento que se dá à doença mental, estimular políticas públicas na área da saúde mental, desinstitucionalizar as pessoas – com o movimento antimanicomial – e acabar com os estigmas que acompanham aqueles que sofrem com quadros de distúrbios mentais, integrando essas pessoas à comunidade e garantindo tratamento clínico (farmacológico e psicoterapêutico) que ajude a restaurar a sua dignidade e lhe ajude a conquistar uma vida com o mínimo de qualidade e decência.
É um movimento muito complexo, mas que sintetizo brevemente nessas poucas linhas.
Com a reforma psiquiátrica e a problematização da questão, que saiu dos ambientes acadêmicos e tomou as ruas, muito se discute a respeito. A ponto de, com os anos, termos chegado à conciliadora expressão “somos todos loucos”.
Sim, somos todos loucos.
No sentido de “todos temos nossas particularidades psicológicas, nossas singularidades”.
Uns são mais agitados; outros mais tranquilos; uns tranquilos que beiram a apatia; outros extremamente preocupados; alguns não conseguem lidar bem com bagunça; outros choram e se emocionam com facilidade; e assim podemos conversar até amanhã sobre diferentes características de estados mentais e emocionais.
A partir de qual ponto o normal – comportamentos naturais e comuns – se torna patológico?
Em psicobiologia, os alunos aprendem – e tomam como verdade – que é a partir do ponto em que aquele comportamento passa a representar prejuízo de alguma espécie para o indivíduo, passando a diminuir a eficiência do seu desempenho. Mas é algo extremamente subjetivo. Existe um gráfico para isso que, inclusive, utilizei em minha dissertação de mestrado – justamente em psicobiologia, estudando os transtornos de ansiedade e seguindo, inclusive, a abordagem que critico hoje. Que bom que não permanecemos com 20 anos para sempre…
Mas quem julga a influência do seu comportamento sobre seu desempenho? O indivíduo? Não, hoje não é assim. É a ciência biomédica quem diz isso ao sujeito.
O “somos todos loucos”, criado para acolher, para incluir, para conscientizar e sensibilizar para a não distinção das pessoas em função de suas diferenças, deixou de ser uma ode ao respeito às diferenças.
E passou a ser um estímulo, um incentivo, à medicalização.
Porque, se somos todos loucos, todos temos alguma psicopatologia. E se temos psicopatologias (não mais diferenças, que precisam ser respeitadas), então precisamos ser tratados. Com medicamentos. E ponto final.
O triste virou deprimido, o que está cansado virou ansioso, o que tem sonhos românticos virou esquizóide, a criança cheia de energia que não se adapta a modelos escolares estanques virou hiperativa, o que não se interessa pela aula chata virou desatento.
E assim vamos rotulando nossos amigos, nossos familiares, nossos filhos, nossos vizinhos, nossos alunos.
Pra não dizer que estou chovendo no molhado, trago agora uma informação que, pra mim, é nova.
Assisti a um vídeo essa semana, disponível no Youtube e tudo mais, e que nem por 10 kg a menos eu divulgarei aqui, no qual profissionais renomados, reunidos em um instituto de pesquisa, falam sobre os distúrbios psiquiátricos na infância. Um vídeo relativamente forte. Onde um deles diz que “os transtornos mentais começam na infância”.
Isso me chocou um pouco.
Porque os transtornos mentais, obrigatoriamente, começam no cérebro. Se é pra falar onde começam, é no cérebro. Não na infância. Se os gatilhos são disparados na infância, ou na adolescência, ou na idade adulta, depende de uma série de fatores. Biológicos também mas, sobretudo, sociais.
Porque os transtornos mentais, obrigatoriamente, começam no cérebro. Se é pra falar onde começam, é no cérebro. Não na infância. Se os gatilhos são disparados na infância, ou na adolescência, ou na idade adulta, depende de uma série de fatores. Biológicos também mas, sobretudo, sociais.
Principalmente sociais.
Mas isso não está contemplado em nenhum momento naquelas falas, simplesmente porque ninguém ali tem formação humana ou social, ou conhece a fundo as dinâmicas sociais e a influência do meio sobre o ser humano. São profissionais que reduzem o ser humano ao biológico. Não é um instituto qualquer. É um instituto formado por pesquisadores de pelo menos oito universidades públicas brasileiras. Não são profissionais das áreas da educação, ciências sociais ou psicologia. São profissionais das ciências médicas ou biológicas.
O que é isso então?
Achei que estava sendo, realmente, paranóica ao pensar que poderia ser uma forma de incentivo à medicalização da infância. Mas foi quando, conversando sobre o assunto com pesquisadores, com gente que estuda isso, e fuçando nos sites disponíveis, descobri que o instituto autor do vídeo promove, também, treinamento a professores de educação infantil.
Oferecem treinamento para a identificação precoce de possíveis psicopatologias na infância, com orientação para os pais e encaminhamento a um profissional de saúde!
Treinar professores para que eles identifiquem, nas crianças com quem trabalham, traços de doenças psiquiátricas!!
Onde estamos vivendo?! Que época é essa?! Isso faz parte do fim do mundo que havia sido prometido para 2012?! Isso faz parte do som das trombetas?!
Profissionais de alto gabarito. Gente sobre quem ouvi falar durante muitos anos, em minha formação como farmacologista, deixada de lado, também, por não mais conseguir conviver com determinadas situações. Ainda que eu tenha sido tratada muitas vezes como a classe C da farmacologia por estudar, por 15 anos, plantas medicinais utilizadas pela população, com forte tendência etnofarmacológica, eu fui farmacologista. Estudando plantas psicoativas. Plantas ansiolíticas, antidepressivas, calmantes naturais, tranquilizantes tradicionais. Pra saber o que tinha lá dentro daquela planta, se ali havia uma substância psicoativa ou se os efeitos poderiam ser placebo, associados à crença das pessoas em seus efeitos. Sofri, por inúmeras vezes, pressão para patentear os resultados que fui obtendo. Consegui resistir a isso. Mas não consegui permanecer. Porque mudei como pessoa e, consequentemente, mudei como profissional.
Psicofármacos tornam possível a muitas pessoas uma vida em comunidade. Pessoas que não conseguiriam, sem a ajuda do medicamento, ter uma vida digna, porque os terríveis sintomas de algumas doenças as assolariam. Psicofármacos já salvaram a vida de muitos indivíduos que estavam pensando em acabar com ela. E porque eles representam alívio, menos sofrimento e tornam vidas possíveis, eu ainda sou uma apaixonada por esse estudo em sua vertente teórica, não mais pela prática. Mas fui bastante romântica e sonhadora. Até o dia em que enxerguei que, por mais que existam excelentes pesquisadores – e pesquisadoras -, realmente comprometidos com a função social da pesquisa psicofarmacológica, a grande maioria se preocupa apenas com o status da profissão, com o número de publicações, em competir com o grupo de pesquisa da sala ao lado. Sou assessora ad hoc e avalio projetos de pesquisa nessa área em duas instituições de fomento que destinam verba à pesquisa. E fico pasma com as justificativas que são usadas por alguns pesquisadores para dizer que seu projeto é relevante. Quando nem mesmo se preocupou com a questão da qualidade dos recursos humanos que irá formar, ou que tipo de atividade de extensão aquela verba ajudará a viabilizar, levando à comunidade um pouco do que investigam dentro das paredes brancas dos laboratórios. São poucos os que se mostram realmente preocupados com a função social de sua prática.
Atualmente, os psicofármacos são usados mais para enriquecer determinados segmentos industriais que para diminuir o sofrimento. São receitados como se fossem chicletes Adams, aqueles que vinham, aos montes e bem pequenininhos, num pacotinho sorridente.
São prescritos indiscriminadamente, a quem quer que seja que adentre as instituições de saúde relatando algum tipo de desconforto que os equipamentos médicos não conseguem mensurar.
Tanta gente deixando de aprender mais sobre si próprio…
Tanta gente recebendo sua dose diária de Soma* sem sequer se questionar.
Tanto pai sendo chamado na sala do diretor, pra ouvir que seu filho provavelmente tem TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) ou algum outro distúrbio psiquiátrico que somente um profissional da saúde mental, com muitas horas de observação atenta, poderia diagnosticar.
Num mundo onde se fala cada vez mais em se respeitar as diferenças, é terrível observar que essas mesmas diferenças estão sendo utilizadas para patologizar, ao invés de libertar. Para rotular, ao invés de promover a aceitação. Para limitar, ao invés de expandir.
Os tempos atuais estão muito estranhos, com valores muito distorcidos e prioridades alteradas. Conversando esses dias com pós-graduandas bolsistas, e que também são mães, falamos sobre o fato de que as agências de fomento à pesquisa destinam muito mais bolsas às ciências biológicas e médicas do que às sociais. Taí a consequência: tudo sendo considerado como função do biológico, enquanto o social vai sendo relegado a segundo plano, mesmo sendo prioritário – ainda que não gere riquezas materiais a curto prazo.
Triste é saber que a maioria, entorpecida, talvez nem esteja sentindo.
Enquanto dorme pesadamente sob o jugo do seu Rivotril…