Há alguns dias, assistindo a uma reportagem sobre nem me lembro mais o que, um sujeito estava sendo entrevistado e, embaixo da tela, apareceu seu nome. “Raimundo Nonato”.
Bateu a curiosidade sobre o fato de tantos brasileiros receberem esse nome. E lá fui eu googlear o nome do sujeito.
Raimundo Nonato. E… “Até tu, Google?!”
Sim.
Tem a ver com partos e variações sobre o tema. Incrível como o assunto vem espontaneamente quando estamos realmente envolvidos…
Então tá. Vamos falar sobre quem foi Raimundo Nonato.

Foi um santo. São Raimundo Nonato. Um catalão que viveu no século XIII, membro da ordem dos mercedários (de Nossa Senhora das Mercês) e ajudava a resgatar os cristãos capturados pelos mouros ou islâmicos e levados para as prisões da Argélia, onde eram escravizados.Libertou mais de 150 escravos! Algumas vezes, se oferecia para o cativeiro no lugar de outras pessoas, e acabou sendo muito torturado. Ainda assim, conseguiu converter muitos ao cristianismo e, por conta disso, os muçulmanos mandaram que furassem sua boca e a fechassem com cadeados, para que não divulgasse mais o cristianismo. Sofreu 8 meses assim, até que foi resgatado.

Voltou à sua terra natal e, lá, foi nomeado cardeal pelo Papa Gregório IX. Quando saiu para uma missão em direção a Roma, com a saúde muito fraca em função das torturas anteriores, adoeceu, foi acometido por febres muito fortes e morreu, aos 40 anos. Morreu no dia 31 de agosto de 1240.
Então hoje, 31 de agosto, é comemorado o dia de São Raimundo Nonato.

Guardei essa notinha para escrever exatamente hoje, dia desse santo.
História emocionante, não? E olha que nem católica sou. Mas vale pela história de altruísmo, de amor e respeito ao próximo.
E onde é que fica o parto nisso tudo?
No nome.
Nonato. Do catalão Nonat, o que nasceu do ventre de uma mãe morta. Ou “não-nascido” de mãe viva. Sua mãe morreu durante o trabalho de parto. E, ainda assim, ele foi retirado do útero da mãe mesmo após seu falecimento, o que era raríssimo até então.
Um Santo nascido de “cesárea” em 1200!
Em função do parto difícil, ele foi nomeado o patrono das parturientes, parteiras e obstetrizes.
Achei muito curioso isso… E uma pulguinha pulou bem atrás da minha orelha.
Fui a fundo na história. Bem a fundo. E compartilho aqui a minha análise crítica-reflexiva. E nada ingênua.
Quer dizer então que justamente um santo cujo nome vem do fato de sua mãe ter morrido no parto é que foi designado como patrono das parteiras?!
Mas será que o patrono das parteiras, responsáveis oficiais pelos partos e nascimentos desde que o mundo é mundo, não deveria ser um santo ou santa nascido de mãe que pariu com louvor? Quiçá de uma mãe que pariu sozinha, ou com seu marido, em sua casa – quem sabe até num estábulo (hein? conhece alguém famoso nascido assim?) -, uma vez que sempre foi esse o trabalho de uma parteira? Mas não…
Escolheram como patrono das parteiras um cuja mãe morreu em trabalho de parto e que só pôde realizar tudo de bom que realizou porque, ó glória científica!, foi salvo por uma barriga aberta após a morte de sua mãe. O santo das parteiras é um santo nascido por cesariana.

Não seria, portanto, o caso de se analisar quando foi que São Raimundo Nonato, o “não-nascido” de mãe viva, foi nomeado patrono das parteiras pela Igreja Católica?
Bem, se minha análise crítica estiver certa, aposto que foi no Renascimento.
Aposto que um santo que nasceu em 1204, de uma mãe falecida em trabalho de parto, foi nomeado patrono das parteiras 400 anos depois.
Bingo!
Foi em 1681.
Tempos renascentistas! Auge da ciência médica! Auge do conhecimento científico!
Auge também do descrédito àqueles que representavam ameaça ao saber técnico, científico, controlador, limitador. Parteiras viraram bruxas. Curandeiros, profundos conhecedores dos remédios e práticas restauradoras naturais – os verdadeiros farmacologistas de outrora -, viraram seres dominados por demônios.
Mata todo mundo! Queima todo mundo!
Agora é a vez e a hora da ciência médica.
Mata tudo que não for ciência médica. Queima. Diz que é louco e trancafia.

E, então, foi justamente quando a ciência médica seguia sua caminhada em direção ao esmagamento de tudo o que não era considerado técnico, que um santo nascido de mãe morta foi nomeado patrono das parteiras.

Nós poderíamos pensar que a ciência médica daquela época estivesse de mãos dadas com a Igreja, a ponto de conseguir que um santo nascido naquelas condições simbolizasse o trabalho de uma parteira. Mas seria um ledo engano. A ciência médica e a Igreja não poderiam se dar as mãos, fazer uma parceria, um trabalho colaborativo. Simplesmente porque elas eram a mesma coisa.

Ciência médica, por muitos e muitos anos, foi um saber restrito ao clero. As bibliotecas médicas e científicas ficavam trancadas a dezenas de chaves dentro dos mosteiros – conventos não, porque convento é coisa de mulher e mulher não é de confiança, mulher pode virar bruxa a qualquer momento – e abadias. A Igreja manipulou, por muito tempo, o conhecimento científico que ia sendo obtido, atribuindo os resultados das práticas científicas realizadas a efeitos divinos, a castigos, a pecados, a justos merecimentos. Lembre-se de Umberto Eco e de sua obra, “O Nome da Rosa”… 
Só consegui fazer o link entre o nome do santo, sua história e o fato de ser patrono de quem é, em função de ter finalizado nesta semana a leitura do livro “Do Mágico ao Social”, do Moacyr Scliar. Li esse livro para a disciplina de “Ciências Sociais, Saúde e Sociedade”, que estou cursando no doutorado, e recomendo fortemente. Sensacional.
Fica aí minha manifestação contra o fato do santo padroeiro das parteira ser um santo nascido de mãe morta.
Mais uma para o rol das mensagens subliminares que vão moldando nossas crenças sem nem nos darmos conta…
É assim que as coisas são feitas…
Mensagens cifradas são mandadas em formas de “homenagens”.
Se você não é muito crítico, nem muito investigativo, nem percebe. Mas o fato de não perceber não significa que a mensagem não tenha sido dada. Ela foi dada. Seu cérebro captou mesmo sem pass
ar pelo nível da consciência.
Tanto é assim que a maioria das pessoas se apavora ou saber que uma mulher vai parir fora do hospital, com auxílio de parteiras. O inconsciente, que aprende muito bem as lições, rapidamente se coloca apostos, gritando: “Cuidado! Com parteira é perigoso, com médico é seguro!”. 
Veja um exemplo.

É uma matéria dessa semana tirada de um jornal de Lisboa, para mostrar que não é só aqui no Brasil que isso acontece:

Marido ajuda mulher no parto do quinto filho

Uma mulher deu à luz na sua própria casa, em Vandoma, Paredes, ontem à tarde, e teve como parteiro o marido. Só a parte final do parto foi assistida por três bombeiros da corporação de Baltar. Com 34 anos, a mulher foi mãe pela quinta vez e revelou aos bombeiros que não sentiu qualquer contracção ou dor antes de entrar em trabalho de parto. “Encontrámos a mãe sentada na beira da cama e o marido a segurar em metade da bebé. Ela disse que foi tudo muito rápido”, recordou António Moreira, de 33 anos e que, em menos de um ano, fez o segundo parto fora do hospital. Vera Lúcia, assim se chama a recém-nascida, foi transportada para o Hospital de Penafiel, e, tal como a mãe, encontra-se de boa saúde.

Agora te pergunto: quem foram os protagonistas desse parto? Resposta: a mulher (a maior protagonista), o bebê e o marido. E quem está na foto pagando de herói?
Pois é.
É sempre bom estar atento pra saber se o nome da rosa é o que estão querendo te mostrar, ou se é só um apelidinho.

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