Sei que não está fácil ficar com as crianças em tempo integral. Especialmente para quem está trabalhando para além do trabalho da casa, que já é muito e aumenta ainda mais quando estamos confinados, administrando trabalho, angústia, medo, cansaço, sobrecarga e tudo mais que nos acompanha nesse momento. Não é nada fácil e isso é ponto pacífico – especialmente para quem é mãe solo e não está convivendo com outros adultos. Mas gostaria de propor uma reflexão, como pessoa que há 10 anos trabalha pela infância, que tem pela infância um imenso apreço e que reconhece que, somente quando mudarmos nossa forma de tratar as crianças, estaremos prontos para mudar muitas outras coisas.
O que deve estar sendo pior? Estar com as crianças em tempo integral sendo um adulto que, supostamente, tem condições de lidar com questões complexas ou ser uma criança que não tem condições de lidar com questões complexas, não tem nenhum tipo de escapatória, estando privada de sua rotina, não compreendendo de maneira integral o que está acontecendo, com medo de perder as pessoas que ama – afinal, ouve isso o tempo inteiro sobre a doença -, com saudade dos amigos, com saudade de gente que ama, em um pequeno espaço mesmo precisando de mais espaço para se desenvolver bem e, ainda por cima, estando compulsoriamente com adultos que, vamos lá, vamos fazer a autocrítica, não estão nos seus melhores dias e estão surtando?
Pensem bem: não deve estar nem um pouco fácil pras crianças lidar com tantas complexidades e, ainda por cima, segurar a rebarba dos adultos surtados. Eu acolho dezenas de pessoas por dia, dos acolhimentos individuais em educação sem violência a dezenas de mensagens que chegam para mim em quatro canais diferentes. Adultos estão surtando, fato. Não sem razão, fato também. Já pensaram nas crianças que estão sob os cuidados de tais adultos? Pois precisamos pensar.
Uma das mágoas que tenho da forma como fui criada é o fato de que não fui poupada. O que eu quero dizer com isso? Quero dizer que ouvi muitas piadas sobre mim feitas na frente de todo mundo. Às vezes, presenciava adultos que deveriam me preservar me ridicularizando para outras pessoas, como se fosse uma brincadeirinha sem maiores consequências. Ouvi muitas vezes a frase: “Não aguento mais essas crianças! Tô de saco cheio, vou deixar essa merda e vou embora daqui!”. Sim, eu entendia o queria dizer: havia alguém muito cansado ali. Mas acontece que eu era uma das crianças que não estavam mais sendo suportadas e sobre quem alguém dizia que queria abandonar por não aguentar mais. Era um desabafo? Era força de expressão? A verdade é que eu nunca soube… Mas no momento em que ouvia, era real. “Não aguento mais essas crianças, onde posso devolver?”. Dormi chorando muitas vezes, ainda criança, por temer que isso fosse acontecer.
Não é legal crescer ouvindo isso. Não é legal ser uma criança e ouvir que não nos aguentam mais. Muitas das memórias depreciativas que temos da infância envolvem um adulto dizendo coisas negativas sobre nós, sobre as crianças.
Sei que não tá fácil pra ninguém. Beira o insuportável. Mas as crianças não têm culpa, eu só queria lembrar disso porque parece que, com frequência maior do que seria de se esperar, as pessoas se esquecem. E sinceramente, não há graça no desabafo de quem diz que vai estourar champanhe para as professoras quando as aulas voltarem e agradecer a Paulo Freire. Nenhuma graça, pra ser muito honesta. Isso fala sobre muitas coisas: sobre a infância, sobre a forma como vemos as instituições de educação, sobre o papel que creditamos aos educadores.
“Ai que chata você, era só uma brincadeira”. Sou chata há 10 anos no que eu defendo. Foi inclusive a minha chatice que ajudou e ainda ajuda a defender gestantes para que não sejam infantilizadas nem depreciadas; foi a minha chatice que ajudou a tirar da invisibilidade a questão da violência obstétrica; foi também a minha chatice que ajudou muitas mulheres a não aceitarem piadas misóginas e machistas, a não invisibilizarmos preconceitos, discriminações, opressões de todo tipo; minha chatice deu origem, inclusive, a livros em defesa da infância que ajudam milhares de famílias. Faço isso pelas mulheres. Mas faço isso também pelas crianças.
Se você está cansada, exausta, eu te entendo verdadeiramente – e estou do seu lado. Mas isso reflete uma falta de apoio social, uma falha de alguém ao seu redor, um abandono, uma insuficiência dos instrumentos que deveriam fortalecer as pessoas da linha de frente – e mães são mais linha de frente do que tudo. Mas o fato de você estar exausta não se relaciona com a existência das crianças e isso precisa ser dito.
Esse tipo de discurso reforça uma coisa contra a qual lutamos há muitos anos e que se chama pedofobia. Tenhamos calma. Vamos tentar não ferir quem já está ferido – e todos estamos meio feridos. As crianças também estão. “Ah, mas elas não vão ler o meu desabafo em tom de piada desejando que as aulas voltem o quanto antes porque eu não as aguento mais”. Pode ser mesmo que não leiam. Mas isso ajuda a construir uma cultura em que tudo bem depreciar a infância. E não está tudo bem com isso.
Eu não permito que inferiorizem as mulheres. E também não quero que o mesmo tratamento seja destinado às crianças. Porque é a mesma lógica: o reforço do patriarcado.
Vamos mudar o olhar sobre a infância, esse é o meu convite.
Ou defendemos os vulneráveis ou não defendemos.
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Parte do meu trabalho é apoiar mulheres nas mais diferentes questões das suas vidas: maternidade, educação sem violência, empoderamento, fortalecimento, carreira profissional, desenvolvimento científico. Sou Mestra em Psicobiologia, Doutora em Ciências e Doutora em Saúde Coletiva com foco na saúde das mulheres e das crianças. Se você precisa de apoio e orientação, mande um e-mail para ligia@cientistaqueviroumae.com.br que eu te explico como funciona a MENTORIA E APOIO MATERNO.