Por Sarah Helena

 

Comecei a escrever e reescrever esse texto uma dúzia de vezes. Na verdade, cheguei a terminar de escrever. E não era um texto ruim, não. Mas alguma coisa estava errada. Alguma coisa na estrutura dele estava me incomodando. E eu não sabia direito o que era. Estava funcionando, estava didático, então por que não parecia ser o texto certo?

Depois de quebrar um bom tanto a cabeça, percebi que era porque ele começava do lugar onde a gente sempre está acostumada a ouvir o discurso. Tudo de ruim, de problema, de tóxico. Explicando essa coisa toda de como a gente se mete nessa enrascada. E aí eu percebi que não, o que eu queria começar falando não era isso. Eu não queria falar primeiro do luto e do medo. Eu queria, eu quero, falar da sensação de liberdade.

Então vamos voltar no tempo, dezembro do ano passado. quando eu cheguei à cabelereira com o cabelão quase na cintura e saí com ele acima do ombro, repicado e raspado nos lados e na nuca. 

– Corto aqui?

– Não, mais alto.

O barulho da navalha picotando as mechas. A cabelereira segurando a maquininha enquanto eu mostrava uma foto que encontrei quase ao acaso na busca de imagens, e dizia:

 Passa a máquina zero.

Eu me olhei no espelho. E pela primeira vez em muito tempo gostei do que vi. 

Na época, sobre porquê eu tinha mantido por tantos anos um corte de cabelo do qual eu não gostava, escrevi o seguinte: 

“Mas eu não podia mudar meu cabelo. As pessoas não me amariam mais. As pessoas não iam gostar de mim. Eu precisava continuar sendo, pelo menos nisso, aquilo que as pessoas esperavam de mim. Ninguém me conhecia mais de outro jeito.”

Lembro-me de chegar em casa, radiante – e da expressão no rosto do cara que, até então, eu acreditava ser meu companheiro. Surpresa, mas não em um sentido positivo. Era a surpresa horrorizada de me ver fazendo algo que contrariava a vontade dele
E eu não me importei. 

Naquele dia, alguma coisa que estava se debatendo dentro do meu peito feito um ratinho assustado se acalmou. Já tinha se passado, então, mais de seis meses desde que eu havia percebido que não queria mais estar naquela situação. Mas ele sempre achava um jeito de me manipular para não escapar. E levaria mais quase um ano até eu conseguir sair daquela relação tóxica que já durava mais de uma década.

Mas naquele dia, tomei uma resolução. Eu não ia mais dar murro em ponta de faca. Não ia mais me diminuir para que ele pudesse se sentir superior. O tempo de me submeter às microagressões e à violência psicológica tinha acabado ali. 

Nunca fui muito de resoluções de ano novo… Mas naquele solstício de verão, eu me decidi por uma única resolução de ano novo:

As coisas seriam diferentes

Fácil não foi. O ano que se seguiu foi um pesadelo, em muitos aspectos, tanto quanto foi um ano de maravilhamento e crescimento incríveis.

Como em muitas relações tóxicas, o momento mais difícil é depois que você para de se submeter. A agressão escala. Na tentativa de te forçar a ficar no seu lugar, as coisas podem piorar muito. Ouvi muitas histórias, porque, por conta de uma sociedade estruturada em ensinar para as meninas desde a primeira infância que é preciso um amor romântico de propaganda e filme de Hollywood para sua vida valer a pena, quase toda mulher vai ter na sua vida um embuste em algum momento. Como me disse uma senhora evangélica muito querida: “Quase toda mulher encontra um atormentado para atravancar o caminho…” , e conseguir romper com isso é um livramento. 

A PRIMEIRA COISA…

Então, a primeira coisa que eu queria que tivessem me contado e que teria facilitado meu ano é que é preciso estar preparada: é muito possível que as coisas piorem quando percebem que você está segura de si, que está pronta para sair daquela situação que te envenena. 

Mas essa reação, por mais desconfortável e dolorosa que seja, não vai te atingir do mesmo jeito que as coisas que aconteceram antes. Porque agora existe essa chama miudinha alimentando você dentro do peito, e é preciso ouvir essa voz ainda fraca que começa a ficar mais alta: você é mais poderosa que isso. Você merece ser feliz. Você merece estar em paz. 

Não tem essa de “ruim com ele, pior sem ele” que tentam fazer a gente engolir. A mídia e as narrativas, as histórias que nos contam desde cedo, fazem uma mistura horrível de atitudes medonhas disfarçadas de atos de amor. Faltam exemplos de relacionamentos saudáveis em que a gente se espelhar. Crescemos acreditando que “é assim mesmo”. 

Não é assim mesmo não, amiga. 

Não naturalizar essas atitudes e situações é um primeiro passo para nossa resolução de ano novo dar certo. Vamos olhar com atenção e encontrar as histórias de amor certas (Oi Ligia! Oi, mãe!). E, mais que isso: vamos aprendendo que não, a gente não precisa carregar o mundo nas costas. E tem muitos jeitos de ser feliz… E a maioria deles passa longe, muito longe das propagandas de margarina. 

INVERSÃO DE VALORES

Uma das coisas doloridas desse processo é o número de pessoas que se preocupam mais em querer saber o motivo de uma mulher estar em um relacionamento tóxico do que o motivo pelo qual o parceiro está tendo atitudes que ferem e fazem mal. 

“Ah, mas porque continua com ele?”  

“Se é tão ruim, porque ainda está junto?”

Nem vou entrar nos processos econômicos e sociais perversos que prendem mulheres a relacionamentos ruins. Vou focar em algo mais sutil aqui, que é a pergunta mais dolorida que fiz a mim mesma muitas vezes.

Por que eu me submeti a isso?

Por que aceitei ser diminuída?

Por que eu não vi todos os sinais de alerta – que conheço bem e que tantas vezes mostrei para outras mulheres?

A verdade é que nenhum veneno age de forma tão imediata. A toxicidade em uma relação é um cozimento em fogo brando, começa em atitudes pequenas que tentamos ignorar, ou que engolimos junto com promessas de mudança de atitude, que parecem desimportantes frente a outros aspectos que parecem positivos. Ou engolimos a outra ideia errada e ruim, de que é assim mesmo, que é nossa responsabilidade nos desdobrar em mil, carregar sozinhas toda a responsabilidade emocional da relação, que ser mulher é carregar os fardos da vida com um sorriso no rosto. Fizeram-nos acreditar que somos nós que temos que nos adaptar o tempo todo para que uma relação dê certo… E a gente tenta, mesmo que isso vá nos podando, ferindo, corroendo.

E quando estamos com alguém, expomos nossas vulnerabilidades, e não imaginamos que elas serão usadas contra nós. 

IDENTIFICANDO UMA RELAÇÃO TÓXICA

É difícil identificar uma relação tóxica quando estamos imersas nela. Um bom jeito de pensar quando algo te incomoda é: se fosse com uma amiga, com uma filha, eu aceitaria que isso acontecesse? Então, por que aceito que isso seja feito comigo?

Mas a grande arma do relacionamento tóxico é a manipulação emocional. É fazer com que você se sinta culpada, que acredite que o erro é seu. Que sua visão sobre os fatos, sobre o mundo, suas opiniões, não são do jeito que você vê. Gaslighting é um termo gringo e não tem tradução boa exatamente porque mesmo lá, esse tipo de manipulação é algo tão naturalizado, que precisamos explicar o enredo de um filme para entender o que acontece… Afinal, que mulher nunca escutou um “Você é louca!”? Que mulher nunca teve um homem ou uma pessoa mais velha dizendo “Não, meu bem, não foi isso que aconteceu, você está confusa”?

A manipulação emocional faz a gente acreditar que não vai conseguir sobreviver fora daquela situação. Que somos dependentes. Quando ouvimos outras mulheres, identificamos algo que muitas de nós ouviram, frases que são repetidas para nos manter presas:

“Você nunca vai encontrar alguém que te ame como eu, mesmo depois do seu corpo ter ficado desse jeito.”

“Outro homem já teria te largado sendo doente como você é.”

“Você é diferente das outras mulheres, e os outros caras não conseguem lidar com gente diferente.”

Spoiler: mesmo pessoas de esquerda, mesmo pessoas da militância, mesmo gente envolvida com ativismo, repete atitudes abusivas. E se é consciente ou não, se ele foi criado para ser assim ou não, deixa eu te dizer:

O ESTRAGO QUE ISSO FAZ EM VOCÊ NÃO MUDA.

Independentemente de qual ferramenta abusiva é usada, uma coisa é certa: você começa a olhar no espelho e não ter certeza de quem ali é você, e quem é que você se tornou por medo das reações de outra pessoa. Você engole suas palavras, seus desejos, as coisas importantes para você. Deixa de fazer coisas que te fazem bem por causa de comentários ferinos e julgadores. Depois de adulta, começa a perceber que está sendo controlada de um jeito, que no meu caso, eu nunca aceitei ser controlada nem pelos meus pais.

Eu tive uma relação bem complicada com o meu corpo depois de ter virado mãe. Primeiro, emagreci de um jeito que nunca tinha sido eu. Eu olhava meu corpo e chorava, a pele solta, os ossos apontando, minha magreza reflexo da doença que fazia meu filho ficar desnutrido. Ainda assim, segui em frente porque eu precisava que ele ficasse bem. Fui uma leoa defendendo a cria e estava tão focada em manter meu filho vivo que não fui capaz de perceber que estava fazendo isso com um apoio mínimo que não era nem um fragmento do que deveria ser. 

Depois, ganhei peso. E passei a ter uma vida dupla com meu corpo. Um corpo que eu amava, uma amplitude que me fez me sentir mais segura de mim, porque não era mais uma mulherzinha pequena que as pessoas podiam ignorar a presença, era uma mulher que podia se impor fisicamente no espaço. E o sofrimento da gordofobia, das roupas que não serviam mais, da dificuldade em comprar mesmo a mais banal calcinha. E de novo, eu estava sozinha enfrentando tudo isso, quando a pessoa que estava ao meu lado na cama ignorava minha dor. 

QUANDO “NÃO SOMOS BOAS O BASTANTE”

Outra experiência que muitas das pessoas com as quais conversei sobre o tema expuseram foi sobre como somos convencidas de que não somos boas o bastante. Como querem que acreditemos que há um defeito carimbado em nossa testa e que precisamos assumir aquilo.

“As pessoas têm medo de você porque é muito agressiva”.

“Você só sabe fazer bagunça”.

“Você é burra demais para cuidar de si mesma”.

No começo, são comentários sutis. Com o tempo, vão ficando mais marcantes, mais pesados, mais intensos. Uma mentira repetida mil vezes continua sendo uma mentira, mas é fácil acreditar que ela seja verdade.

Doeu mais que tudo nos últimos meses ler um artigo sobre manipulação emocional e violência psicológica e poder marcar um x na frente de cada item, porque tinha acontecido comigo. 

É importante a gente perceber essas coisas antes que se acumulem demais, antes de sermos afogadas por elas. Porque existe um percurso que sempre funciona de maneira igual, seja lá o tempo que leve: as coisas vão ficar piores. A violência vai escalar. E quando você se der conta, a fechadura do banheiro poderá estar quebrada para que você não possa se esconder lá dentro em busca de cinco minutos de paz. No meio de uma discussão, alguém poderá agarrar seu braço com força e te chacoalhar. Você pode descobrir, minutos antes de ir para o trabalho, que a chave do seu carro foi levada para te forçar a perder a hora, e talvez o emprego. Seu celular pode ter um aplicativo espião que controla tudo o que você faz. 

E isso tudo vai te deixar mais frágil e vai parecer mais difícil se afastar… 

Deixa eu te dizer uma coisa:

FRÁGIL OU NÃO, VOCÊ CONSEGUE.

O QUE FAZ DIFERENÇA

Sabe o que faz diferença de verdade para ser feliz? E isso que vou dizer não é uma opinião minha, é coisa que pesquisadoras analisando dados já escreveram a respeito.  É ter uma rede de apoio. Uma rede de amizades. 

Eu amo muito meus meninos. Mas se tem uma coisa que faz uma diferença real no bem estar de uma mulher, é encontrar uma rede de mulheres que dê a ela suporte e apoio. 

Até hoje, as redes que mais me fortaleceram estiveram muito longe do namastê haribo e do sagrado feminino e dos círculos construídos com o objetivo de unir mulheres (que podem ser ótimos, mas estão longe de ser o caminho que as histórias que ouvi mais apontaram). As redes de amizade surgem de muitos jeitos, unidas principalmente por laços que acontecem baseados em gostos, práticas e desejos que nos unem. São as pessoas que têm uma ideia semelhante à sua e que dividem um projeto. É o clube de vapers que se encontra para soltar a fumaça de seus cigarros eletrônicos como dragoas poderosas.  São as moças no ensaio da bateria do bloco de carnaval. É o clube do livro que está lendo Jane Austen. As meninas com quem você troca receitas de tricô. O grupo de internet que se reúne uma vez por mês para discutir a vida com uma doença autoimune. É o motoclube que se encontra para beber cerveja e sujar a mão na graxa dos motores.

No meu caso, foi meu grupo de RPG, o jogo, não a terapia para a coluna. Foram as nerds que entendem minhas oitocentas citações de cultura pop por minuto. 

Redes de apoio são onde você vai se sentir acolhida e ouvida. Onde histórias são partilhadas. Mulheres juntas são muito poderosas. Por isso somos ensinadas desde pequenas a não confiar em outras mulheres, e como esse ensinamento é absorvido, quebramos a cara tantas vezes tentando confiar umas nas outras. Uma sociedade baseada no controle da mulher, como é a nossa, tem medo do que mulheres juntas podem fazer, e de como mulheres que apoiam umas às outras podem ir mais longe. 

E é nesse apoio de outras mulheres que começa a se romper a teia onde um relacionamento tóxico nos prende. E então essa rede se amplia. Amigos, familiares, pessoas de todos os tipos, mas que te amam e se importam com a sua felicidade. Próximas ou geograficamente distantes. E você percebe que não, você não depende daquele relacionamento tóxico. Você pode encontrar pessoas que vão tornar sua vida muito mais rica do que você imaginou.

Às vezes, é uma única pessoa que te estica a mão. Às vezes, são as personagens dos livros e dos seriados. As mulheres históricas que te tocam com suas biografias. Porque crescemos sendo ensinadas a ser sozinhas e pode ser muito difícil confiar em alguém quando estamos fragilizadas.  E porque um dos pontos que parceiros (e parceiras) abusivos usam para controlar é afastar quem poderia te ajudar a enxergar o pântano onde você está enfiada, e como é importante sair dele. 

São as histórias compartilhadas por outras mulheres que já romperam amarras que nos lembram que sim, nós podemos. 

OS FILHOS COMO FORÇA

E quando se é mãe, existem os filhos. 

A gota d’água, para mim, envolveu minha cria sendo afetada pela atitude do pai. E essa é a realidade de muitas mulheres mães (ou homens que se tornaram o cuidador principal em um relacionamento entre dois homens). É perceber que sua cria precisa de você inteira, não despedaçada. Que do mesmo jeito que aquilo te faz mal, também faz mal para seus filhos. Ou mesmo o temor de ver um filho repetindo os passos do pai. 

Não mexa com a cria dessas pessoas se não quiser ter uma loba rosnando na sua garganta. 

Mas tem a velha propaganda da margarina… Tem todas as histórias de que as pessoas cresceram sofrendo por causa do divórcio dos pais. Tem o medo de ter seus filhos tirados de você (porque sim, isso ainda acontece). No começo, enfrentamos uma barreira de “e se?” e de pequenas culpas sem sentido. Enfrentamos o luto do fim de uma relação, e encaramos fantasmas que estavam trancados dentro de cada porta de armário e gaveta. 

Eu fui professora durante treze anos. Lidei com milhares de crianças e posso garantir uma coisa: mesmo que o processo possa ser, em alguns casos, inicialmente doloroso, o que você vê quando uma criança ou adolescente tem uma mãe que se reconstruiu e que está mais feliz, é que as crias ficam muito, muito melhores. Ficam mais felizes também. Brilham junto com a gente. 

E quando forem adultas, não vão querer se meter nas situações ruins pelas quais nós passamos. E se passarem, não vão achar que precisam suportar uma relação que as envenena, porque nós mostramos que era possível romper o ciclo.
 

“SIM, EU SOU UMA PORRA DE UMA RAINHA!”

Olho em volta. Minha escrivaninha embaixo da janela do quarto. Minha cama queen size (porque, sim, eu sou uma porra de uma rainha!). Minha parede cheia de imagens coloridas e alegres, e as lanternas japonesas penduradas na minha cabeceira. 

Cada pequeno conforto em poder ser eu mesma. E sei que vale a pena. Porque nestes poucos meses, já mudou tanta coisa. Sinto-me confortável na minha própria pele, me sinto em paz comigo mesma. 

Agora, ao invés de ser um fardo, chegar em casa passou a ser um alívio para o cansaço. 

Em dezembro de 2016, decidi que não ia mais negar quem eu sou, que não ia mais fugir de mim mesma, que ia me libertar. E este dezembro me pegou fazendo planos para o futuro. Destilando desejos. Me reencontrando. Acreditando de novo que mereço e que é possível ser feliz. Sozinha, ou acompanhada. Com uma família composta de mim, minha cria, minha mãe e meus amigos e amigas. Nada hollywoodiana. E muito boa, exatamente por isso. Meu clã e minha matilha.

Vale a pena. Meu ano começou diferente. Melhor. Em paz. Os desafios agora são outros, sem ninguém me puxando para baixo e me impedindo de tentar ser melhor. 

E estou aqui. Esperando de mão estendida para você, que vai passar pelo mesmo caminho, para dançar nessa ciranda viva de mulheres livres. 

Por anos e anos construíram paredes em torno de nós, tentando nos impedir de ver horizontes. É hora de derrubar os muros. 

Venha.